A visita e o visto
OBAMA VEIO e foi embora, sem fazer o anúncio histórico que todo brasileiro estava a desejar.
Não me refiro à aceitação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Belgas e suecos vivem bem sem isso, e não gostaria que o preço por uma "decisiva influência brasileira nas questões internacionais" fosse cobrado em mais gastos militares e em brasileiros morrendo e matando em algum cafundó ditatorial do Oriente Médio.
O que faltou na visita foi a decisão de abolir a exigência de visto para os brasileiros entrarem nos EUA. Aliei-me a Elio Gaspari, colunista da Folha, nessa expectativa, expressa em artigo recente.
Para mim a decisão já não serviria mais, em todo caso. Acabei de passar pela fila do consulado americano e, aparentemente, eles foram com a minha cara.
Cheguei lá às sete e pouco da manhã. Do lado de fora, a fila se estendia por um bom quarteirão. Estava "tranquila", avaliou, dando uma olhada pela janela, o despachante que me ajudava no processo.
O escritório dele, na mesma rua do consulado, faz parte da pequena indústria do visto americano que floresce por ali: ponto de táxi, guarda-volumes, lugares para tomar café da manhã e até floristas.
O escritório, ou "posto avançado", do despachante existe para você deixar guardado, num envelope pardo com seu nome, o telefone celular -que não é admitido nas dependências do consulado. Lá também você pega o seu passaporte, fotos e formulários que havia deixado anteriormente com a sede central do escritório de despachos. Tudo já foi conferido, para evitar surpresas.
Verifica-se, por exemplo, se está preenchido a contento o questionário final de sua requisição. As autoridades americanas perguntam seriamente: "Você faz parte de alguma organização terrorista?". Há uma casinha para o "sim", outra para o "não".
Pretende traficar drogas nos Estados Unidos? Não, certamente não. É sua intenção prostituir-se em território americano? No, I am not that type. Já torturou alguém? Não, por quê? Estão ainda precisando de gente em Abu Ghraib?
A irracionalidade de todos esses cuidados de segurança salta aos olhos. Mas há também o componente da humilhação.
Não sei o que faria se eu fosse ministro. Mas é duro engolir que autoridades de primeiro escalão do governo brasileiro consintam em ser revistadas antes de se encontrarem com Obama, assim como o chanceler nosso que teve de tirar os sapatos para passar pelo controle num aeroporto americano.
O melhor, em casos assim, seria dizer "não vou", e pronto. A frase serviria, de qualquer modo, para todos aqueles que, singelamente carregando nos braços a prova de possuírem carro e casa própria, esperam horas para obter seu visto.
Se quisessem arranjar algum tipo de emprego clandestino, não seria mais fácil viajar até a Inglaterra ou a França, que não pedem visto nenhum? Difícil imaginar que a lista de documentos e a entrevista sirvam de filtro eficiente para barrar os brasileiros ilegais.
No fundo, aquilo é pior para as pessoas do consulado do que para nós. É necessária uma grande quantidade de funcionários só para organizar a fila (uma só, não; quatro filas diferentes, conforme a etapa do processo).
Americanos reais, atrás de um grosso vidro, finalmente entabulam rápida conversação com os postulantes ao visto. O que me atendeu foi mais do que simpático: tinha um humor leve e feliz, como se não estivesse condenado a realizar centenas, talvez milhares de entrevistas daquele tipo por mês.
Óbvio que, em todos os graus da hierarquia, o pessoal do consulado não pode despertar a menor suspeita de estar sendo antipático. Quanto aos brasileiros, por outro lado, não querem de jeito nenhum parecer que estão criando caso.
Atrás de mim, um homem mais velho compreendia tudo: "Claro, eles vivem com ameaça de terrorismo... Claro, eles têm o maior problema com clandestinos... Claro, a fila é grande, com tanto brasileiro querendo viajar...".
Foi essa frase que me deu o clique. Humilhação? Mas não seria justo um sinal de força? Eis uma fila imensa de brasileiros, só agora neste horário das sete, em São Paulo. É uma invasão, a nossa. Cuidai-vos, califórnias, disneylândias: nossas forças, sem radares nem combates, avançam, num misto de desleixo e avidez.
OBAMA VEIO e foi embora, sem fazer o anúncio histórico que todo brasileiro estava a desejar.
Não me refiro à aceitação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Belgas e suecos vivem bem sem isso, e não gostaria que o preço por uma "decisiva influência brasileira nas questões internacionais" fosse cobrado em mais gastos militares e em brasileiros morrendo e matando em algum cafundó ditatorial do Oriente Médio.
O que faltou na visita foi a decisão de abolir a exigência de visto para os brasileiros entrarem nos EUA. Aliei-me a Elio Gaspari, colunista da Folha, nessa expectativa, expressa em artigo recente.
Para mim a decisão já não serviria mais, em todo caso. Acabei de passar pela fila do consulado americano e, aparentemente, eles foram com a minha cara.
Cheguei lá às sete e pouco da manhã. Do lado de fora, a fila se estendia por um bom quarteirão. Estava "tranquila", avaliou, dando uma olhada pela janela, o despachante que me ajudava no processo.
O escritório dele, na mesma rua do consulado, faz parte da pequena indústria do visto americano que floresce por ali: ponto de táxi, guarda-volumes, lugares para tomar café da manhã e até floristas.
O escritório, ou "posto avançado", do despachante existe para você deixar guardado, num envelope pardo com seu nome, o telefone celular -que não é admitido nas dependências do consulado. Lá também você pega o seu passaporte, fotos e formulários que havia deixado anteriormente com a sede central do escritório de despachos. Tudo já foi conferido, para evitar surpresas.
Verifica-se, por exemplo, se está preenchido a contento o questionário final de sua requisição. As autoridades americanas perguntam seriamente: "Você faz parte de alguma organização terrorista?". Há uma casinha para o "sim", outra para o "não".
Pretende traficar drogas nos Estados Unidos? Não, certamente não. É sua intenção prostituir-se em território americano? No, I am not that type. Já torturou alguém? Não, por quê? Estão ainda precisando de gente em Abu Ghraib?
A irracionalidade de todos esses cuidados de segurança salta aos olhos. Mas há também o componente da humilhação.
Não sei o que faria se eu fosse ministro. Mas é duro engolir que autoridades de primeiro escalão do governo brasileiro consintam em ser revistadas antes de se encontrarem com Obama, assim como o chanceler nosso que teve de tirar os sapatos para passar pelo controle num aeroporto americano.
O melhor, em casos assim, seria dizer "não vou", e pronto. A frase serviria, de qualquer modo, para todos aqueles que, singelamente carregando nos braços a prova de possuírem carro e casa própria, esperam horas para obter seu visto.
Se quisessem arranjar algum tipo de emprego clandestino, não seria mais fácil viajar até a Inglaterra ou a França, que não pedem visto nenhum? Difícil imaginar que a lista de documentos e a entrevista sirvam de filtro eficiente para barrar os brasileiros ilegais.
No fundo, aquilo é pior para as pessoas do consulado do que para nós. É necessária uma grande quantidade de funcionários só para organizar a fila (uma só, não; quatro filas diferentes, conforme a etapa do processo).
Americanos reais, atrás de um grosso vidro, finalmente entabulam rápida conversação com os postulantes ao visto. O que me atendeu foi mais do que simpático: tinha um humor leve e feliz, como se não estivesse condenado a realizar centenas, talvez milhares de entrevistas daquele tipo por mês.
Óbvio que, em todos os graus da hierarquia, o pessoal do consulado não pode despertar a menor suspeita de estar sendo antipático. Quanto aos brasileiros, por outro lado, não querem de jeito nenhum parecer que estão criando caso.
Atrás de mim, um homem mais velho compreendia tudo: "Claro, eles vivem com ameaça de terrorismo... Claro, eles têm o maior problema com clandestinos... Claro, a fila é grande, com tanto brasileiro querendo viajar...".
Foi essa frase que me deu o clique. Humilhação? Mas não seria justo um sinal de força? Eis uma fila imensa de brasileiros, só agora neste horário das sete, em São Paulo. É uma invasão, a nossa. Cuidai-vos, califórnias, disneylândias: nossas forças, sem radares nem combates, avançam, num misto de desleixo e avidez.
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