quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Contas de mentiroso (sobre o mercado da arte)


Contas de mentiroso 

OS ECONOMISTAS gostam de lembrar a famosa febre das tulipas, que acometeu os investidores holandeses no século 17.
Variedades cada vez mais raras da flor eram negociadas no mercado; especulava-se sobre o seu preço futuro; bulbos virtuais e sementes derivativas entraram nos leilões, até o dia em que a bolha estourou.
Os preços no mercado de arte não param de subir, e no ramo das produções contemporâneas a febre parece ainda mais inexplicável.
A antropóloga Sarah Thornton animou-se a investigar essa mania, e o resultado foi traduzido agora no Brasil. "Sete Dias no Mundo da Arte" (ed. Agir) vendeu bastante nos Estados Unidos e traz alguns depoimentos interessantes sobre esse especial delírio de mercado.
O livro dedica seus capítulos a pontas diferentes do processo: o leiloeiro, o marchand, o colecionador, o crítico, o artista -e acompanha desde um rápido leilão de arte contemporânea na Christie's até um megaevento como a Bienal de Veneza, passando por um interminável seminário numa escola de arte.
Nova febre das tulipas? Bolha econômica?
Antigamente, diz um dos entrevistados por Sarah Thornton, as pessoas tinham um só automóvel. Depois, passaram a ter dois, três ou mais. E ele arremata, confiante: alguém acredita que exista uma "bolha" no mercado automotivo?
Nessa interpretação, o preço altíssimo das produções contemporâneas veio para ficar. Simplesmente surgiram milionários demais nos últimos dez anos e as obras-primas do passado não são em número suficiente para se distribuírem de Vladivostok a Lisboa, de Xangai a Nova York.
Claro que o que se compra não é simplesmente um rabisco, uma superfície vermelha ou um badulaque qualquer. O que se compra é o direito de pertencer a esse mundo -com suas festas, fofocas e celebridades.
Não é apenas divertido, mas também a maneira mais rápida de dar dignidade "cultural" a fortunas obtidas rapidamente demais e de forma suspeita.
Um traficante de armas ou um banqueiro golpista podem, em pouco tempo, dar seu nome a fundações beneméritas ou a grandes museus em sua cidade natal.
Por isso mesmo, comprar obras famosas numa galeria é coisa dificílima. Determinado artista se desvaloriza se for comprado pelas pessoas "erradas" e outro triplica de preço se cair nas mãos do colecionador "certo".
Cabe aos marchands, então, manipular suas listas de espera. Não vender, nesse mercado, é tão importante quanto vender.
De resto, o preço altíssimo de cada obra, raciocina um dos entrevistados do livro, "é correto pelo número final de usuários que o apreciarão. A lógica é a de que as pessoas que entrarem no meu museu/mausoléu ficarão excitadas com esta pintura. Há 10 milhões de pessoas na face da Terra capazes de pagar dez libras para vê-la, então ela vale 100 milhões de libras"."
Há mais. Os leilões dão a ilusão de que os preços sempre estão subindo, mas na verdade se esquecem depressa dos artistas que passaram de moda violentamente ou que não se beneficiaram da manipulação constante desse mercado.
Donos de muitas obras de um artista, por exemplo, compram outra a preços astronômicos num leilão, apenas para evitar que entre num "viés de baixa"... Diferentemente do que acontece na Bolsa de Valores, por exemplo, não há reguladores nesse mercado.
Essa mistura de racionalidade e de delírio, de fé e de cinismo, talvez não seja característica apenas da época atual.
No passado, piratas e criminosos de guerra usaram seus pintores e escultores para limpar o próprio nome. Celebraram Jesus Cristo e Maria Madalena do mesmo modo que agora se celebra o "pensamento crítico" e o "pós-feminismo".
O livro de Sarah Thornton dá uma pincelada em tudo isso -mas está longe de tratar o assunto como merece.
A autora está tão fascinada e comprometida com esse meio, que acaba perdendo, embora finja que não, o seu senso crítico.
Apresenta-se como antropóloga, mas faz um livro com aqueles velhos truques de descrever a cor da gravata do entrevistado.
Pior: ela dedica um capítulo bem publicitário à revista "Artforum", a Ferrari das revistas de arte, pelo que ela dá a entender. A orelha do livro informa que ela colabora para a mesma revista.
Se isso é "observação participante", e se Sarah Thornton faz antropologia social, podem me chamar de Andy Warhol.


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