terça-feira, 27 de junho de 2023

Banqueiro de 34 anos vai faturar R$ 2,5 bilhões com baixa renda


Sete a cada dez brasileiros deixam de ir a algum lugar porque sentem que "não é pra eles". Essa sensação de não ter dinheiro suficiente para frequentar um bom restaurante ou entrar em um shopping de luxo é a mesma que impede 45 milhões de brasileiros de ir a um banco, apesar de movimentarem R$ 800 bilhões na economia.

"É desse público que o Will Bank vai atrás", diz o fundador Felipe Felix. Aos 34 anos, ele afirma que o faturamento de seu banco deve chegar a R$ 2,5 bilhões com uma base de cinco milhões de clientes. Todos ingressaram no sistema bancário via cartão de crédito e hoje fazem até investimentos.

Os bancos preferem não atender a baixa renda, mas vocês ganham muito dinheiro com esse público. Qual é a fórmula? Para eles não vale a pena porque esse cliente gasta pouco, R$ 800 por mês no nosso caso. A estrutura de custo operacional não permite que um banco [tradicional] aprove esse cliente —que precisaria ter ao menos um título de capitalização, um consórcio ou uma poupança [para isso]. As fintechs surgiram, num primeiro momento, para atender clientes insatisfeitos com o banco tradicional. Ou seja, ninguém está disposto a bancarizar esse cliente potencial.
No Will Bank, a porta de entrada é o cartão de crédito. Cerca de 70% dos nossos clientes são multiplicadores, usam o cartão para comprar algo e pagar em 30 dias, fazer capital de giro. O Nordeste concentra 60% de nossos clientes, região onde vive 40% da população desbancarizada do país. Um terço desses clientes nunca teve um cartão de crédito. A gente está chegando em um cliente que ninguém consegue chegar.

São quantos clientes? A gente tem 40 milhões de pedidos [de cartões de crédito] e quase 5 milhões emitidos. Quando ele é aprovado, abre-se uma conta digital. Em 2022, foram R$ 12 bilhões transacionados via cartão e mais R$ 30 bilhões em contas digitais.

Seu produto parece ser o mesmo dos bancos tradicionais. O que é diferente? Veja. Por que 80% da população coloca dinheiro na poupança? A justificativa é que a população não é educada para tomar opções de investimentos melhores. Bem, a realidade é que a alternativa à poupança é muito complexa: CDB, LCA, LCI, debêntures. Há uma barreira para o cliente tomar uma decisão [de investimento diferente] e o mercado financeiro não tem iniciativa para mudar essa realidade. Cria produtos para o mercado financeiro, não para as pessoas.
Fizemos uma pesquisa para entender nosso cliente, o porquê de ele escolher a poupança. Descobrimos que a sensação que o fator dinheiro gera nas pessoas é muito negativa. Não só pela falta, mas porque elas têm medo. É tentando vencer esse medo que a gente atua.

Medo de que exatamente? A pesquisa mostrou que 71% das pessoas têm medo de ir a alguns lugares por conta da questão financeira. Pense no Banco Safra. Não é qualquer pessoa que vai chegar ali e entrar para abrir uma conta. Mudar esses gatilhos não racionais que todos temos em algum nível é o que buscamos.
Nossos clientes disseram que o Will Bank foi o primeiro que confiou neles ao dizer sim. É uma questão de constrangimento. Pense em uma família que nasceu de pais que não foram aprovados no banco. Isso é muito ruim, começa-se a se construir uma estrutura na qual as pessoas acreditam que aqueles produtos não são para elas. O crédito deveria estar a serviço das pessoas, e não o contrário.
Isso tem de mudar, mas a gente precisa entender os mecanismos que impedem as pessoas de tomar a decisão [de buscar crédito]. A oferta até já existe, mas as pessoas acreditam que não é para elas.

Como vocês mudaram isso? Nossa pesquisa mostra que as mulheres têm vergonha de pedir empréstimo. Os homens sentem tristeza. A experiência digital [via aplicativo ou site] então ajuda. As pessoas acham que não podem ter dívida com ninguém quando, às vezes, é um passo necessário para alavancarem seus negócios. São variáveis emocionais.
Basicamente, o que percebemos no mercado financeiro é que o produto, em si, tem uma diferença marginal. O investimento não deixa de ser um CDB como o do Itaú. A questão é como ele é apresentado.
No nosso CDB não falamos de rendimento em percentagem de CDI, por exemplo. Quanto da população sabe o que é o CDI? Dizer para esse cliente ‘saia da poupança e invista em 100% do CDI não ajuda. Agora é mais fácil dizer ‘saia da poupança, pegue R$ 1 mil e ganhe R$ 150'. Nossos produtos são títulos pré-fixados que facilitam o entendimento.
Outro exemplo. O sistema [financeiro] faz campanha contra, mas a gente reconhece um comportamento que nosso público tem: o compartilhamento de um cartão de crédito. Um cartão com um limite dividido entre cinco pessoas às vezes é capaz de fazer uma transformação. O Brasil é formado mais por essas pessoas.

Por que entrou nesse mercado? Sou nordestino e foi trabalhando no Avista que percebi a existência de 45 milhões de desbancarizados, que movimentam R$ 800 bilhões [na economia], um problema gigantesco que ninguém estava disposto a resolver. Hoje vamos chegar a R$ 2,5 bilhões em receitas com esse negócio.

Por que o banco tem esse nome? Há muitos Willians, Williana no país. Will é abreviação de um nome. Então, é como se nosso cliente estivesse falando com uma pessoa.

RAIO-X
QUEM É O BANQUEIRO

Idade: 34
Formado em Engenharia Naval pela Universidade de São Paulo, Felipe Felix fez mestrado em Economia na Fundação Getúlio Vargas. Sua carreira foi consolidada no mercado financeiro, passando pelo Banco Original antes de se juntar ao grupo Avista cartões onde atuou como CFO [diretor financeiro]. Fundou o Will Bank há seis anos. Recentemente, foi escolhido como empreendedor Endeavor.


Reprodução da Folha de São Paulo

terça-feira, 20 de junho de 2023

Exército mantém cargo de militares citados em relatório da PF; saiba quem é quem


Exército mantém cargo de militares citados em relatório da PF; saiba quem é quem

Força quer esperar desdobramentos na Justiça; promoção ao generalato deve ser dificultada



O comandante do Exército, general Tomás Paiva, decidiu esperar os desdobramentos judiciais antes de tomar medidas administrativas contra os militares da ativa citados em relatório da Polícia Federal sobre os celulares do tenente-coronel Mauro Cid.

A avaliação, segundo interlocutores de Tomás ouvidos pela Folha, é a de que não é possível somente com o relatório analisar a conduta de cada militar. Como resultado, a decisão interna é cooperar com as investigações e agir somente após a repercussão dos casos na Justiça.

Generais afirmam, porém, que os militares investigados deverão ter mais dificuldade para progredir na carreira e chegar ao generalato, já que o caso se tornou um constrangimento para a cúpula militar.

Procurado pela Folha, o Exército afirma que ainda não foi "oficiado sobre as apurações realizadas nas investigações em andamento".

"Somente após ter conhecimento oficial acerca dos fatos citados será possível fazer uma avaliação da situação e a adoção de eventuais medidas administrativas que se façam necessárias", disse a Força em nota.

Folha identificou 11 militares da ativa no relatório da Polícia Federal. São oficiais que trocaram mensagens com Cid, foram citados por outros militares ou se manifestaram em grupo de WhatsApp.

O documento sobre a existência do grupo de WhatsApp foi revelado pela Folha no sábado (17).

Todos os oficiais foram procurados pela reportagem. O coronel Gian Demario da Silva respondeu que o grupo é antigo e mantém apenas "conversas e opiniões". A defesa de Cid disse que se manifestará somente nos autos. Os demais não se manifestaram.

Veja quem é quem no relatório:

Tenente-coronel Mauro Cid

Ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), estava lotado no Comando de Operações Terrestres. Era responsável pela chefia do Preparo da Força Terrestre. Está preso desde maio, suspeito de adulterar cartões de vacinação do ex-presidente, de sua esposa, Gabriela Cid, e filhas, com o objetivo de viajar aos Estados Unidos.

Os advogados de Cid afirmaram que "por respeito ao Supremo Tribunal Federal, todas as manifestações defensivas serão feitas apenas nos autos do processo".

Tenente-coronel Marcelino Haddad Aquino Carneiro

Formou-se na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) em 2000, mesma turma de Cid, e foi promovido para tenente-coronel em 2020. Ocupa cargo de comando no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva no Rio de Janeiro.

Segundo o relatório da PF, Haddad enviou em 16 de novembro de 2022 a um grupo de WhatsApp do qual Cid faz parte três documentos sobre a possibilidade de as Forças Armadas atuarem como uma espécie de poder moderador.

Segundo os investigadores, os documentos podem ter dado embasamento jurídico para uma tentativa de golpe.

Tenente-coronel Fabiano da Silva Carvalho

Foi colega de Cid e Haddad na Aman. Assumiu no início do mês o comando da 17ª Brigada de Fronteira, em Corumbá (MS).

Ele é apenas citado no relatório da Polícia Federal por ter trocado emails com o advogado Ives Gandra Martins, em 2017, quando escrevia artigo sobre a atuação das Forças Armadas como garantidoras dos Poderes Constitucionais.

Coronel Jean Lawand Junior

Primeiro colocado na turma da Aman de 1996, é supervisor do Programa Estratégico Astros do Escritório de Projetos do Estado-Maior do Exército.

Lawand é o principal interlocutor de Cid nas mensagens destacadas pela Polícia Federal no relatório enviado ao STF (Supremo Tribunal Federal). Ele insistentemente pede ao então ajudante de ordens para orientar Bolsonaro a dar um golpe contra a democracia: "Convença o 01 a salvar esse país!", escreveu em uma das conversas.

Pelas mensagens trocadas, o Exército decidiu anular a nomeação de Lawand para ocupar cargo na embaixada do Brasil nos Estados Unidos.

Tenente-coronel Jorge Alexandre Oliveira de Medeiros de Souza

Foi promovido ao atual posto em 2021. Antes, trabalhou na 12ª Região Militar, no Amazonas, quando o general e ex-ministro Eduardo Pazuello comandava a unidade.

Ele fazia parte do grupo "Dosssss!!!", composto majoritariamente por militares da ativa. Jorge Alexandre só enviou duas mensagens entre as destacadas pela PF. Uma é o anúncio de que os oficiais-generais escolhidos por Lula para o comando das Forças tomariam posse em dezembro.

Coronel Gian Dermario da Silva

Formado na Aman em 1996, Gian é atualmente comandante do Centro de Instrução de Operações Especiais, onde são formados os Forças Especiais, considerada a ala mais radical do Exército.

Nas mensagens do grupo "Dosssss!!!", ele afirma que esperava para os próximos dias uma "ação por parte do PR e FA" contra a eleição de Lula.

Gian diz ainda que pretendia dar "muita ênfase" no curso de formação dos Forças Especiais para questões ligadas ao "globalismo/progressismo socialista". Para ele, o Exército sabia como derrotar a esquerda, mas "ficamos amarrados no POLITICAMENTE CORRETO".

Procurado pela Folha, Gian disse que não há nada de mais nas trocas de mensagens. "Esse é grupo muito antigo, de mais de dez anos de conversas e opiniões. Por um acaso o militar está nele. Somente isso", escreveu.

Coronel Anderson Corrêa dos Santos

Assumiu o atual posto em 2020, após ter atuado por mais de um ano no comando do Batalhão de Apoio às Operações Especiais, em Goiânia. Trabalhou no gabinete de intervenção federal do Rio de Janeiro, em 2018.

No grupo de WhatsApp, ele fez poucas intervenções destacadas pela PF. Disse que poderia estar errado, mas "acho que estamos caminhando para uma crise interna muito forte".

"A ruptura institucional já ocorreu a muito tempo. Tudo que for feito agora, da parte do PR, FA e tudo mais, não vai parar a revolução do povo que cansou de tudo isso".

Coronel Rodrigo Lopes Bragança Silva

Foi promovido a coronel em 2022. É oficial de cavalaria, lotado na Escola Preparatória de Cadetes do Exército.

Nas mensagens trocadas no grupo de WhatsApp, Rodrigo incentiva os colegas a assinar uma carta de oficiais superiores ao comandante do Exército Brasileiro. Trata-se de texto apócrifo, de tom golpista e escrito na esteira dos acampamentos antidemocráticos em frente aos quartéis, conforme a a Folha revelou

"E aí, agora todos colocaremos o nome nessa rela aí né?", disse. "Ou seremos leões de Zap", completou.

Tenente-coronel Helio Ferreira Lima

Ferreira Lima trabalhou no GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no governo Bolsonaro e retornou ao Exército para comandar a 3ª Companhia de Forças Especiais, em Manaus (AM).

É um dos mais ativos no grupo de WhatsApp. Ele reclama que as Forças Armadas não iriam se comprometer com o governo Lula porque "ficou gostosinho demais sermos só isso".

"Salário garantido, guerreiro com absoluta certeza de não guerrear, uma escapada ou outra ganhando bem por aí … ficou bom demais para queríamos sair desse conforto", escreveu.

Coronel Marcio Nunes de Resende Junior

Formado na Aman em 1996, Marcio foi comandante do 1º Batalhão Logístico de Selva, em Boa Vista (RR). Hoje está no Estado-Maior do Exército.

No grupo, ele endossa o discurso de que houve fraude eleitoral. "Se a gente não tem coragem de enfrentar o cabeça de ovo e uma fraude eleitoral, vamos enfrentar quem???".

Marcio ainda disse que "se o Bolsonaro acionar o 142, não haverá general que segure as tropas. Ou participa ou pede pra sair!!!".

Coronel Felipe Guimarães Rodrigues

Formado na Aman em 1997, Felipe foi comandante do 63º Batalhão de Infantaria em Florianópolis (SC). Hoje, atua como assessor parlamentar do Exército no Senado.

No grupo, manda somente uma mensagem. "Outros bravateiros…não conseguiram deter uma fraude eleitoral clara dentro do território deles !!!", disse, sem deixar claro se a referência era ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ou aos militares que participaram da fiscalização do processo eleitoral.


Reprodução de reportagem de Cézar Feitosa, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Membros do sistema de justiça estrelam cenas bem brasileiras


Nos últimos dias, membros do sistema de justiça estrelaram três cenas bem brasileiras. Uma delas trouxe para a frente das câmeras nacionais uma procuradora de Goiás. Carla Fleury de Souza cometeu o crime do desabafo. Reclamou ao vídeo de seu parco salário de 37,5 mil reais. Insuficiente, declarou, para sustentar seu estilo de vida de princesa: "Meu dinheiro é só para fazer minhas vaidades, graças a Deus. Só para os meus brincos, minhas pulseiras, meus sapatos." Graças a Deus e ao marido, que, depreende-se da fala da esposa, arrecada bem mais.

A franqueza foi bisonha, coisa de quem ainda não se acostumou à vida filmada. Mas o franco exprime o que pensam os dissimulados. A procuradora delatou o sentimento de uma fração da elite social que, ilhada com seus iguais, nem mesmo imagina como vive a maioria dos habitantes de seu país. Na ilha da senhora Fleury, os proventos são muito, muito mais altos do que o da média dos brasileiros.

Outro distanciado da realidade, desta vez a jurídica, é um seu colega de beca de Santa Catarina. O desembargador Jorge Luiz de Borba é acusado de manter uma mulher com deficiência auditiva em condição análoga à escravidão por duas décadas.

A vítima, decerto, nunca teve tempo ou recursos para cultivar "vaidades" como a procuradora. Contou, contudo, com o que há de mais valioso, a afeição. Ao menos foi assim que o encarcerador se defendeu: "aquilo que se cogita, infundadamente, como sendo 'suspeita de trabalho análogo à escravidão', na verdade, expressa um ato de amor. Haja vista que a pessoa, tida como vítima, foi na verdade acolhida pela minha família". Ser "da família", na escravidão, como no serviço doméstico, é o mesmo que estar sob o jugo dela. A PF suspeita que a "tida como vítima" era vítima de fato e que o tratamento amoroso incluía maus tratos, jornadas de trabalho estafantes e restrição da liberdade.

Outro episódio a reverberar a escravidão foi aqui em São Paulo. A protagonista inicial foi a polícia. Sua maneira de deter um homem negro acusado de furtar duas caixas de bombons foi atar mão com mão e pé com pé. Com cordas. Depois, dois representantes da lei dividiram o peso, carregando o detido como se fosse um fardo, infensos aos seus gemidos de dor. A imagem é do escravismo redivivo. Debret pintou cena parecida.

O fato só veio a público porque uma testemunha o filmou, já que os policiais não usavam câmeras nos uniformes. Depois da desdita, Robson Rodrigo Francisco, o amarrado, passou por outra. Caiu na vara da juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, que não viu nada demais na forma da detenção. Nem tortura, nem maus-tratos, nem qualquer atentado aos direitos constitucionais, de modo que a prisão foi mantida.

Cada um desses casos recebeu atenção imediata, intensa e passageira. A indignação suscitada gerou desdobramentos diferentes. A vaidosa submergiu no anonimato de onde surgira, o desembargador declarou a intenção de adotar formalmente a pretensa filha e o amarrado está preso.

Desfechos desparelhados apenas de face. Daqui a pouco tudo volta aos seus lugares costumeiros na sociedade brasileira. Logo ninguém mais, salvo as almas como a do Padre Lancellotti que denunciou o caso, se lembrará de Robson. Pode bem ficar esquecida também a promessa de adoção do desembargador de olhos azuis. E apesar de seus parcos dividendos, a senhora Fleury retornará tranquila ao seu roteiro de compras.


Texto de Angela Alonso, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 15 de junho de 2023

É um pesadelo ver a pressão do centrão pelo Ministério da Saúde


Semana passada, passei quatro dias gravando o atendimento médico que a ONG Zoé presta aos habitantes das margens dos rios Tapajós, Guarapiuns e Amazonas.

Sair da correria infernal de São Paulo e cair no mundo silencioso dos ribeirinhos, gente simples que vive em contato íntimo com a natureza, devolve a paz que a cidade grande teima em nos negar. O Tapajós é um rio imenso, que chega a ter 18 km de largura, o Amazonas, nem se fala. Que geografia generosa a nossa.

Estava nesse estado contemplativo quando tive a infelicidade de receber um sinal de internet. Maldita hora. Os jornalistas comentavam a notícia de que o assim denominado centrão pressionava o presidente para derrubar a ministra Nísia Trindade, com a intenção de entregar o comando do Ministério da Saúde aos deputados que compõem esse grupo. Se possível "de porteira fechada", termo grosseiro que empregam quando pretendem preencher com apadrinhados todos os cargos com acesso às verbas governamentais.

Parecia um pesadelo: depois dos atentados criminosos que a Saúde sofreu nos últimos quatro anos, vamos retroceder dessa forma humilhante? Justamente quando nos enchíamos de esperança de que uma profissional respeitada pelos que atuam na área iria organizar a reconstrução do ministério arrasado pela incompetência administrativa, pela estupidez e pelos desmandos de gente prepotente e despreparada para conduzi-lo?

O SUS é o maior programa de saúde pública do mundo. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou oferecer assistência médica a todos os habitantes. Em pouco mais de 30 anos, fizemos a maior revolução na história da saúde pública brasileira.

O que mais me dói quando vejo o mau gerenciamento do sistema, a falta de financiamento, as interferências políticas da pior espécie, a roubalheira desavergonhada e o desinteresse daqueles que contam com os planos de saúde, é que o SUS dispõe de tudo o que é necessário para funcionar bem.

Não há que inventar nada. Está tudo aí: o programa Estratégia Saúde da Família, em que os agentes batem de porta em porta, mais de 42 mil Unidades Básicas de Saúde, os pequenos hospitais dos municípios para os atendimentos rotineiros, os regionais para os casos mais graves e os hospitais terciários para os procedimentos de alta complexidade, além de programas nacionais como os de imunizações, transplantes de órgãos, hemodiálises, medicamentos de alto custo, o resgate e tantos outros elogiados mundo afora.

O que nos falta são recursos financeiros mínimos, gerenciamento e uma política de saúde pública digna desse nome.

Anos atrás escrevi neste espaço que, apenas no período de 2008 a 2018, o país teve 13 ministros da Saúde. A média de permanência no cargo foi de dez meses. O que dá para construir em período tão curto? Quando eles começam a entender os problemas enfrentados nas grandes cidades e no Brasil profundo, são trocados por outros.

E, pior: não são substituídos por sanitaristas mais competentes, mas por políticos carreiristas que asseguram aos governos maioria no Parlamento. Por esse caminho, já tivemos ministros sabidamente corruptos, outros eram ignorantes, alheios às dificuldades de acesso à saúde que atormentam o dia a dia dos mais pobres. Um deles confessou não ter ideia do que era o SUS, uma vez que sempre foi atendido em hospitais militares. O que leva um cidadão a aceitar um cargo nessas condições? Não seria o mesmo que eu aceitar o convite para ser comandante das Forças Armadas sem nunca ter entrado num quartel?

Os desmandos que ocorrem na esfera federal se repetem nos estados e nos municípios. Quem anda pelo Brasil é testemunha da incompetência dos gestores, das interferências de políticos da pior espécie, dos roubos e dos desmandos que castigam os usuários do SUS. E enxerga a diferença abissal existente nas cidades em que o secretário municipal e o prefeito são comprometidos com o atendimento à população.

Reconstruir o SUS exigirá trabalho árduo e anos de dedicação dos melhores especialistas em saúde pública. E estes felizmente existem, embora tenham sido afastados ou rebaixados para posições subalternas, chefiadas por gente com interesses duvidosos e nenhum compromisso com a saúde dos brasileiros.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

terça-feira, 13 de junho de 2023

Junho de 2013 e a falência do sistema político


Ainda hoje, muita gente continua sem entender junho de 2013.

Na época, uma entrevista com o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, era anunciada com a seguinte manchete: "Ministro de Dilma diz que ainda não entendeu protestos pelo Brasil".

Na entrevista, realizada no dia 18 de junho, quando teve lugar o sexto ato organizado pelo Movimento Passe Livre, Carvalho afirmava que os atos eram baseados em "novas formas de organização de mobilização que ainda não compreendemos".

Acostumado a lidar com o que classificou como manifestações tradicionais, munidas de carros de som e lideranças claras, o ministro não conseguia entender como era possível que atos pudessem ocorrer de outra forma.

Apontou que todos no governo haviam sido pegos de surpresa e, ao procurar receber manifestantes que protestavam em Brasília, se deparou com a presença de apenas duas pessoas, uma estudante de 21 anos, que havia sido agredida por um policial, acompanhada pelo pai.

Para além da descentralização e da horizontalidade, a crescente ambiguidade ideológica dos manifestantes à medida que os protestos se alongaram no tempo dificultou ainda mais a tarefa de discernir o que se protestava afinal.

Os atos iniciados pelo Movimento Passe Livre no dia 6 de junho possuíam uma pauta bastante clara: tarifa zero no transporte público. No entanto, com o passar do tempo, demandas das mais diversas foram se avolumando nas ruas e nas redes digitais.

No dia 18, por exemplo, mesmo dia em que Carvalho concedeu sua entrevista, o grupo Anonymous Brasil divulgou nas redes sociais um vídeo intitulado "As cinco causas".

O vídeo, que rapidamente alcançou 2 milhões de visualizações, demandava: "não à PEC 37", "saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso Nacional"; "imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal", "por uma lei que faça da corrupção crime hediondo" e "fim do foro privilegiado para políticos".

No dia 20 de junho, quando mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em 388 cidades brasileiras, uma pesquisa de opinião pública conduzida pelo Ibope procurou mapear, afinal, o que queriam os manifestantes.

A sondagem revelou que a motivação principal de 37,6% estava relacionada ao transporte público, dentre os quais 27,8% se posicionavam a favor da redução da tarifa.

Em seguida, 29,9% dos respondentes afirmaram que estavam nas ruas por conta de demandas relacionadas ao sistema político, sobretudo contra a corrupção (24,2%).

Os demais protestavam por melhorias na saúde (12%), educação (5,3%), contra a PEC 37 (5%), contra os gastos com a Copa (4,5%) e contra a violência policial (1,3%), entre outros motivos.

Assim é possível concluir que, independentemente da coloração ideológica, os manifestantes reunidos em junho de 2013 protestavam, em sua larga maioria, por um aprofundamento de direitos previstos na Constituição de 1988.

Contudo, como aponta Dilma Rousseff no livro "Junho de 2013: A Rebelião Fantasma", se depararam com um sistema político falido, pouco democrático e que "serve de contenção à soberania popular".


Texto de Camila Rocha, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Como o centrão sobreviveu e ganhou força após Junho de 2013


Meses antes do terremoto de Junho de 2013, havia gente na rua gritando "fora, Renan". O senador era símbolo da política fisiológica. Manifestantes de direita viam Calheiros como ícone da corrupção e amigo do governo de esquerda, enquanto a esquerda acreditava que ele puxava o governo Dilma Rousseff para a direita.

Renan Calheiros e seu PMDB faziam parte do centrão da época. Protagonizavam os arranjos de Brasília que seriam alvo do sentimento antipolítica que se tornou dominante nos megaprotestos de junho e se fortaleceu nos anos seguintes.

O papel de Calheiros e o tamanho do PMDB mudaram, mas o centrão continuou fazendo sua política às claras. Apesar de acomodações internas, o grupo não apenas sobreviveu a 2013 como se tornou, nas palavras de Celso Rocha de Barros, "o grande vencedor desses dez anos de contestação sistêmica".

O centrão resistiu à onda da antipolítica dobrando a aposta na velha política. Depois que a fúria das ruas drenou a popularidade presidencial, cardeais do Congresso aproveitaram para reforçar seu poder de barganha, ampliar o acesso aos cofres do governo e despejar dinheiro em suas bases eleitorais para facilitar a preservação de seus cargos.

Os agentes do centrão também foram poupados porque seriam úteis para a turma da antipolítica. Sem base social, o grupo foi adotado pela direita que prevaleceu nos protestos. Eduardo Cunha ganhou força, liderou o impeachment de Dilma, foi tratado como herói e só acabou descartado após a queda da petista.

O ocaso do ex-presidente da Câmara oferece uma explicação extra para a resistência do centrão. O grupo foi favorecido por um sistema eleitoral personalista, que fez com que as jornadas causassem danos a figuras específicas. Presidente, governadores e prefeitos tiveram prejuízo imediato. No Legislativo, a conta demorou a chegar e abateu velhos líderes com imagens já desgastadas.

O centrão de 2013 manteve e aperfeiçoou seus métodos. Seus sucessores dão as cartas até hoje.


Texto de Bruno Boghossian, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Ao exigir culturas imutáveis, projeto do marco temporal de terras indígenas é ignorante e desonesto


As premissas centrais do projeto de lei que estabelece o "marco temporal" de 1988 para demarcação de terras indígenas já são suficientes para classificá-lo como uma das coisas mais escrotas já produzidas pelo Legislativo brasileiro (e olha que a concorrência é brava). Mas, como a história e a observação da natureza humana ensinam, não há nada ruim que não possa ser piorado.

O detalhe mais estapafúrdio do texto aprovado pela Câmara dos Deputados é este: a possibilidade de que o governo federal possa invalidar demarcações feitas anteriormente "em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo".

A ironia desse trecho seria hilária, se não fosse tão cruel. Afinal, a ideologia por trás desse projeto é exatamente a mesma que se diz solidarizar com os povos indígenas porque "ONGs", "antropólogos", "esquerdistas" e outros bichos-papões supostamente querem mantê-los presos em "zoológicos humanos no meio do mato", sem poder usufruir das benesses da civilização.

Mas o texto do projeto legislativo que acabo de citar determina que o único indígena válido e legítimo é o que não sofrer "alteração dos traços culturais". Quem é mesmo que quer criar zoológicos de gente na mata?

A peculiar combinação entre ignorância e desonestidade intelectual desse raciocínio –uma combinação que, sabemos, ajuda muito o sujeito a se dar bem na política nacional– deixa de lado um fato básico. Os traços culturais dos indígenas sofreram incontáveis alterações ao longo dos cerca de 15 mil anos que seus ancestrais têm ocupado este pedaço do mundo.

Isso pode parecer surpreendente para quem acha que os portugueses invadiram um território congelado no tempo a partir de 1500. Mas é o que arqueólogos, antropólogos e outros pesquisadores estão demonstrando com cada vez mais clareza nas últimas décadas.

Os caçadores-coletores que foram os primeiros seres humanos a viver no território brasileiro por volta do fim do Pleistoceno (a Era do Gelo) não demoraram a adequar seu modo de vida às possibilidades da nova terra. Isso desencadeou, em primeiro lugar, uma "antropização" de muitas das florestas brasileiras, cuja distribuição de espécies vegetais, das castanheiras e açaizeiros do norte às araucárias do sul, revela a intervenção milenar dos seres humanos.

Relativamente poucos descendentes desses primeiros pais e mães, porém, continuaram vivendo exclusivamente como caçadores-coletores. Eles aprenderam a cultivar plantas que hoje têm importância global, como a mandioca, o amendoim, o cacau e o milho (um item importado da Mesoamérica que passou por uma rodada crucial de melhoramento genético na Amazônia).

Durante milhares de anos, os monumentos funerários conhecidos como sambaquis se ergueram feito sentinelas nos litorais catarinense e fluminense. Represas domaram as cheias de Marajó, estradas e aldeias fortificadas se espalharam pela Amazônia. E até o tupi falado no litoral do Nordeste até São Paulo na época de Cabral era, ao que tudo indica, um fenômeno relativamente recente, fruto da expansão de guerreiros de origem amazônica que ainda estamos começando a compreender.

Mas todas essas e vindas, como as análises de DNA deixam cada vez mais claro, são fruto dos mesmos grupos pioneiros da Era do Gelo. Roubar os descendentes deles de sua herança, por meio da negação de que tenham direito a modificar suas culturas, equivale a negar sua humanidade.


Texto de Reinaldo José Lopes, na Folha de São Paulo

O marco temporal é letal


No último dia 30, o projeto de lei que cria o marco temporal foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora depende de aprovação no Senado. O projeto propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal (5/11/1988).

Além disso, impossibilita a ampliação de áreas já demarcadas e propõe que estas possam ser retomadas pela União caso traços culturais do povo indígena tenham se alterado. Propõe, ainda, que projetos de infraestrutura (tais como estradas e hidrelétricas) possam ser implementados em áreas demarcadas sem consulta às comunidades indígenas que ali habitam.

Essa proposta é letal em várias dimensões.

É letal aos povos indígenas. É um absurdo usar a data da Constituição, ou qualquer outra data, para definir direito de posse de uma terra que sempre foi dos indígenas. Ao longo de séculos, povos indígenas sofreram com doenças trazidas pelos colonizadores, invasões e exploração predatória de recursos naturais, trabalho escravo e massacres cruéis como o ocorrido em 1963, em que cerca de 3.500 membros do povo indígena Cinta Larga foram assassinados e suas aldeias queimadas.

Se mesmo em áreas demarcadas, como a do povo Yanomami e dos povos isolados no Vale do Javari, as invasões ilegais, exploração, conflitos e violência se intensificaram durante o último governo, imagine nas áreas não demarcadas. Isso se agrava com a medida provisória (MP dos Ministérios) aprovada pelo Senado no último dia 1 que transferiu a atribuição de demarcar áreas indígenas do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça.

O marco temporal é letal ao meio ambiente. Dados de desmatamento mostram que a demarcação de terras indígenas é um fator determinante para preservação da floresta, contribuindo para a manutenção da biodiversidade e a regulação do clima. Áreas mais desmatadas ao sul da Amazônia já recebem menos chuva.

O marco temporal é letal ao agronegócio. A ideia de que a mudança traria segurança jurídica aos proprietários rurais é enviesada e não considera as consequências de longo prazo, já que a redução das chuvas em áreas desmatadas afeta o agronegócio.

Uma análise de 2021 estimou que a produção de soja e gado pode ter uma perda de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) anualmente devido ao desmatamento acelerado no sul da Amazônia. Um relatório recente do Banco Mundial estima que o valor da Amazônia preservada, mais de US$ 317 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhões) ao ano, é cerca de sete vezes maior do que o valor estimado de exploração ligada à agricultura extensiva, madeira ou mineração.

O marco temporal é letal à visão do Brasil como um país que respeita os direitos humanos, comprometido com a preservação ambiental e dos povos originários. Depois do enfraquecimento dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas (MP dos Ministérios), a aprovação do marco temporal seria um golpe letal para o futuro da Amazônia e do Brasil e um vexame para o país que vai sediar a Conferência do Clima em 2025.

Hoje, um ano após a morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, cruelmente assassinados por protegerem a floresta amazônica, o Brasil sofre um retrocesso na causa ambiental e indígena com a aprovação da MP dos Ministérios, que pode se agravar ainda mais caso o marco temporal seja aprovado.

A boiada continua passando, conduzida por parlamentares que ao invés de representar a vontade do povo brasileiro e prezar pelo futuro da nação, priorizam interesses gananciosos e predatórios.

Que os senadores tenham o bom senso e a sabedoria de vetar o marco temporal


Texto de Marcia Castro, na Folha de São Paulo

Resistências aos direitos das mulheres


O governo passou aperto na Câmara na semana passada. A oposição está com a faca nos dentes. Sobretudo em tema que lhe é caro, a moral privada. Aí é nula a chance de entendimento.

Os primeiros governos Lula dão testemunho. A regulamentação do aborto, tentada nos dois mandatos, malogrou. A aliança com o ativismo feminista foi insuficiente face à resistência. Movimentos sociais contrários se organizaram e protestaram, com a Marcha Nacional da Cidadania pela Vida e a Marcha contra a Legalização do Aborto. Era o braço da sociedade.

O outro operava no Congresso. A Campanha Nacional por um Parlamento em Defesa da Vida e frentes parlamentares de nomes variados ("contra a legalização do aborto", "da família e apoio à vida", "em defesa da vida") foram uníssonas na guerra ao aborto. Esses braços, o institucional e o societário, contavam com pernas religiosas —e não só as evangélicas.

Dilma Rousseff foi pressionada a nem pautar o assunto e sofreu contínuo chauvinismo misógino ao longo de seus mandatos.

Os anos Bolsonaro foram o reinado do tradicionalismo, com as feministas hostilizadas e os movimentos antiaborto incorporados ao governo. Uma de suas lideranças ganhou ministério de nome condizente, o da Família. O fato de Damares Alves ser agora senadora evidencia que nada disso é página virada. A questão de gênero nunca saiu da agenda e segue tão divisiva como antes.

A atual configuração de forças não é impeditiva apenas para o aborto. A resistência aos direitos das mulheres é palpável até na etiqueta dos debates políticos.

As sessões de comissões e CPIs são termômetro de que o simples respeito às parlamentares anda difícil. Na semana passada, a deputada Sâmia Bomfim foi duplamente silenciada, pelo tenente-coronel Zucco e pelo ex-ministro Ricardo Salles. O delegado Éder Mauro já fizera o mesmo com Talíria Petrone. Não é acaso, é reiteração da truculência bolsonarista contra as mulheres.

A indicação de Eliziane Gama para comandar a comissão dos atos golpistas soa como prova de novos tempos. Mas ganhou o cargo porque é espinhoso a ponto de queimar uma reputação. E, como logo chegarão à senadora os apupos distribuídos às deputadas, seria até o caso de se poupar. Mas, a própria explicou a esta Folha, cargo desta relevância uma mulher não pode se dar ao luxo de recusar.

Poucos são os postos altos de fato acessíveis. A ministra Rosa Weber o frisou ante a nova indicação para o STF: "Temos muitas mulheres na base da magistratura", mas, "nos tribunais superiores, o número é ínfimo". Há sempre uma boa razão circunstancial para preterir as mulheres, sem negar a igualdade de gênero como princípio. E, de circunstância em circunstância, fica tudo como está. E assim lá vai mais um homem para o Supremo.

No caso Sâmia, o Ministério Público Eleitoral abriu investigação. Mas haverá punição? Na legislatura passada, o mesmo Éder Mauro avisou Maria do Rosário e Fernanda Melchionna: "E vou dizer mais, senhoras deputadas de esquerda: eu, infelizmente, já matei sim, não foi pouco, não, foi muita gente. Tudo bandido. Queria que estivessem aqui para discutir olho no olho. Vão dormir e esqueçam de acordar!".

Como nada se fez ante a medonha ameaça, o deputado concluiu aquele mandato e ganhou o novo. Aí está, leve e solto, exibindo seu barbarismo em pleno Parlamento.


Texto de Angela Alonso, na Folha de São Paulo

domingo, 4 de junho de 2023

Marco temporal é boçalidade explícita da Câmara de Deputados


Chegou a hora de a onça beber água. Com o marco temporal aprovado na câmara dos desqualificados, em breve o Brasil todo saberá se ainda existem juízes em Brasília e se o STF (Supremo Tribunal Federal) conseguirá lancetar o tumor maligno que gerou em 2008 no acórdão da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.

O principal deflagrador da metástase hoje disseminada pelo corpo político foi o ministro Carlos Alberto Direito, já falecido. Que sua alma não se perca pelo sobrenome.

Relator da TI em Roraima, o ministro do STF inventou a tese do marco temporal. Ou seja, a noção de que o Estado só deve reconhecer terras indígenas (TIs) efetivamente ocupadas por etnias em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

A carta garante a povos indígenas, no seu artigo 231, "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Para não haver dúvidas, o parágrafo primeiro desenha:

"São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural".

Mais claro, impossível. O próprio Direito concedeu em seu voto: "Não há índio sem terra. Tudo o que ele é o é na terra e com a terra". Citou Darcy Ribeiro, veja só, e disse que "o índio é ontologicamente terrâneo. É um ser de sua terra. A posse da terra é essencial a sua sobrevivência".

O corolário: não tem pé nem cabeça limitar no tempo a ocupação permanente. A presença de um povo em determinado território só deixa de ser permanente em caso de migração (hipótese em que a lei maior reconheceria o direito à ocupação mais recente), extermínio ou fuga de violências e doenças.

Considere o caso dos panarás. O primeiro contato em 1973, por força da abertura da rodovia BR-163, levou a uma sequência de mortes por gripe e outras doenças levadas por não índios que reduziu a população de 400 para 70 pessoas.

O governo federal determinou então a remoção para o Parque Indígena do Xingu. Só em 1997 os panarás conseguiram recuperar o território antes ocupado, com a criação da TI que leva seu nome, na serra do Cachimbo, divisa de Mato Grosso com Pará. Hoje são sete aldeias e 705 habitantes.

Se em 1997 o marco temporal estivesse em vigor, como pretende agora a bancada rural-bolsonarista, eles não poderiam mais ter a terra demarcada e homologada. Deixariam de existir, segundo o critério paradoxal do ministro Direito.

O texto da Câmara não se limita a dificultar ou mesmo inviabilizar a demarcação de novas TIs. Os 283 deputados que inscreveram seus votos na história da ignomínia nacional pretendem ainda permitir revisão daquelas já homologadas em caso de "alteração de traços culturais" da comunidade.

Não demoraria para promotores, procuradores e magistrados conservadores saírem em defesa dos direitos de grileiros para reverter TIs, alegando que os índios dessa ou daquela terra usam celular e dirigem camionetes. Notas de repúdio não terão o poder de sustar esse genocídio 2.0.

Chegou a hora de a onça beber água. Ou o Supremo se põe do lado das vítimas da boçal e perene história colonial do Brasil, ou se alinha com seus próprios parentes, amigos e aliados na vanguarda do atraso que não mais se peja de ser racista.


Texto de Marcelo Leite, na Folha de São Paulo