No último dia 30, o projeto de lei que cria o marco temporal foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora depende de aprovação no Senado. O projeto propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal (5/11/1988).
Além disso, impossibilita a ampliação de áreas já demarcadas e propõe que estas possam ser retomadas pela União caso traços culturais do povo indígena tenham se alterado. Propõe, ainda, que projetos de infraestrutura (tais como estradas e hidrelétricas) possam ser implementados em áreas demarcadas sem consulta às comunidades indígenas que ali habitam.
Essa proposta é letal em várias dimensões.
É letal aos povos indígenas. É um absurdo usar a data da Constituição, ou qualquer outra data, para definir direito de posse de uma terra que sempre foi dos indígenas. Ao longo de séculos, povos indígenas sofreram com doenças trazidas pelos colonizadores, invasões e exploração predatória de recursos naturais, trabalho escravo e massacres cruéis como o ocorrido em 1963, em que cerca de 3.500 membros do povo indígena Cinta Larga foram assassinados e suas aldeias queimadas.
Se mesmo em áreas demarcadas, como a do povo Yanomami e dos povos isolados no Vale do Javari, as invasões ilegais, exploração, conflitos e violência se intensificaram durante o último governo, imagine nas áreas não demarcadas. Isso se agrava com a medida provisória (MP dos Ministérios) aprovada pelo Senado no último dia 1 que transferiu a atribuição de demarcar áreas indígenas do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça.
O marco temporal é letal ao meio ambiente. Dados de desmatamento mostram que a demarcação de terras indígenas é um fator determinante para preservação da floresta, contribuindo para a manutenção da biodiversidade e a regulação do clima. Áreas mais desmatadas ao sul da Amazônia já recebem menos chuva.
O marco temporal é letal ao agronegócio. A ideia de que a mudança traria segurança jurídica aos proprietários rurais é enviesada e não considera as consequências de longo prazo, já que a redução das chuvas em áreas desmatadas afeta o agronegócio.
Uma análise de 2021 estimou que a produção de soja e gado pode ter uma perda de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,9 bilhões) anualmente devido ao desmatamento acelerado no sul da Amazônia. Um relatório recente do Banco Mundial estima que o valor da Amazônia preservada, mais de US$ 317 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhões) ao ano, é cerca de sete vezes maior do que o valor estimado de exploração ligada à agricultura extensiva, madeira ou mineração.
O marco temporal é letal à visão do Brasil como um país que respeita os direitos humanos, comprometido com a preservação ambiental e dos povos originários. Depois do enfraquecimento dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas (MP dos Ministérios), a aprovação do marco temporal seria um golpe letal para o futuro da Amazônia e do Brasil e um vexame para o país que vai sediar a Conferência do Clima em 2025.
Hoje, um ano após a morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, cruelmente assassinados por protegerem a floresta amazônica, o Brasil sofre um retrocesso na causa ambiental e indígena com a aprovação da MP dos Ministérios, que pode se agravar ainda mais caso o marco temporal seja aprovado.
A boiada continua passando, conduzida por parlamentares que ao invés de representar a vontade do povo brasileiro e prezar pelo futuro da nação, priorizam interesses gananciosos e predatórios.
Que os senadores tenham o bom senso e a sabedoria de vetar o marco temporal
Texto de Marcia Castro, na Folha de São Paulo.
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