segunda-feira, 5 de junho de 2023

Ao exigir culturas imutáveis, projeto do marco temporal de terras indígenas é ignorante e desonesto


As premissas centrais do projeto de lei que estabelece o "marco temporal" de 1988 para demarcação de terras indígenas já são suficientes para classificá-lo como uma das coisas mais escrotas já produzidas pelo Legislativo brasileiro (e olha que a concorrência é brava). Mas, como a história e a observação da natureza humana ensinam, não há nada ruim que não possa ser piorado.

O detalhe mais estapafúrdio do texto aprovado pela Câmara dos Deputados é este: a possibilidade de que o governo federal possa invalidar demarcações feitas anteriormente "em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo".

A ironia desse trecho seria hilária, se não fosse tão cruel. Afinal, a ideologia por trás desse projeto é exatamente a mesma que se diz solidarizar com os povos indígenas porque "ONGs", "antropólogos", "esquerdistas" e outros bichos-papões supostamente querem mantê-los presos em "zoológicos humanos no meio do mato", sem poder usufruir das benesses da civilização.

Mas o texto do projeto legislativo que acabo de citar determina que o único indígena válido e legítimo é o que não sofrer "alteração dos traços culturais". Quem é mesmo que quer criar zoológicos de gente na mata?

A peculiar combinação entre ignorância e desonestidade intelectual desse raciocínio –uma combinação que, sabemos, ajuda muito o sujeito a se dar bem na política nacional– deixa de lado um fato básico. Os traços culturais dos indígenas sofreram incontáveis alterações ao longo dos cerca de 15 mil anos que seus ancestrais têm ocupado este pedaço do mundo.

Isso pode parecer surpreendente para quem acha que os portugueses invadiram um território congelado no tempo a partir de 1500. Mas é o que arqueólogos, antropólogos e outros pesquisadores estão demonstrando com cada vez mais clareza nas últimas décadas.

Os caçadores-coletores que foram os primeiros seres humanos a viver no território brasileiro por volta do fim do Pleistoceno (a Era do Gelo) não demoraram a adequar seu modo de vida às possibilidades da nova terra. Isso desencadeou, em primeiro lugar, uma "antropização" de muitas das florestas brasileiras, cuja distribuição de espécies vegetais, das castanheiras e açaizeiros do norte às araucárias do sul, revela a intervenção milenar dos seres humanos.

Relativamente poucos descendentes desses primeiros pais e mães, porém, continuaram vivendo exclusivamente como caçadores-coletores. Eles aprenderam a cultivar plantas que hoje têm importância global, como a mandioca, o amendoim, o cacau e o milho (um item importado da Mesoamérica que passou por uma rodada crucial de melhoramento genético na Amazônia).

Durante milhares de anos, os monumentos funerários conhecidos como sambaquis se ergueram feito sentinelas nos litorais catarinense e fluminense. Represas domaram as cheias de Marajó, estradas e aldeias fortificadas se espalharam pela Amazônia. E até o tupi falado no litoral do Nordeste até São Paulo na época de Cabral era, ao que tudo indica, um fenômeno relativamente recente, fruto da expansão de guerreiros de origem amazônica que ainda estamos começando a compreender.

Mas todas essas e vindas, como as análises de DNA deixam cada vez mais claro, são fruto dos mesmos grupos pioneiros da Era do Gelo. Roubar os descendentes deles de sua herança, por meio da negação de que tenham direito a modificar suas culturas, equivale a negar sua humanidade.


Texto de Reinaldo José Lopes, na Folha de São Paulo

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