Por quanto você vende seu direito de não ser violentado ou torturado? Por quanto vende seu modo de vida, sem o qual perde a identidade? Não somos genocidas, mas vamos negociar o etnocídio? Qual o seu preço? Quantos chocolates? Quantos carros populares?
Temos aqui uma arejada câmara de conciliação para tentarmos um meio-termo. Vamos fazer um grupo de trabalho para o consenso, um grande acordo que honre a bonita tradição brasileira da pacificação e do eufemismo. Nunca fomos radicais nas palavras. Colonizadores e colonizados devem conversar, encontrar convergências, priorizar o que os une.
Parte do debate constitucional sobre direitos territoriais indígenas tem sido feito nesses termos. Seu guru espiritual é Gilmar Mendes. Seu aliado político é Arthur Lira. Lideram Câmara dos Deputados e STF no contrabando dessa filosofia pré-constitucional. Que ambos sejam fazendeiros não vem ao caso. Vida privada.
Na história dos tribunais constitucionais, nunca se ouviu falar de um que tenha, abertamente, convertido a jurisdição constitucional em negociação de constitucionalidade e leilão de direitos. Parece originalidade democrática, mas é só pusilanimidade magistocrática.
O artigo 231 da Constituição reconhece a povos indígenas "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". Um longo e exigente processo de verificação de tradicionalidade precede toda demarcação.
A tese do "marco temporal" foi tirada da cartola por ministros do STF para resolver caso específico da Raposa Serra do Sol, em 2009. A tese afirma que "terras que tradicionalmente ocupam" significa "terras que ocupavam no dia da promulgação da Constituição de 1988".
Exige dos indígenas um tipo de prova cartorial da ocupação. Prova quase impossível, ainda por cima. O STF também disse que a tese se aplicava àquele caso, não a qualquer caso futuro.
Seria forma de "equilibrar" o conflito entre indígenas e fazendeiros em nome da segurança do direito de propriedade. Na leitura de ruralistas jurídicos, portanto, esse artigo permitiria eliminar direitos territoriais indígenas da mesma maneira que o artigo 142 permitiria aos militares eliminar a democracia. Fraudes hermenêuticas que Luís Roberto Barroso chamou, mui afetuosamente, em deferência a Ives Gandra, de terraplanismo.
O drama: em desobediência ao STF, e sob sua complacência, a tese se espalhou para novos casos de demarcação desde então.
Com base na tese, por exemplo, o estado de Mato Grosso pediu, em 2013, anulação de demarcação já homologada (ACO 2224). Fux e seu ímpeto conciliador, seguido por Toffoli, mandou o caso para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. Estão até hoje no aguardo das "tratativas conciliatórias".
Há sete anos, em outra ação (RE 1017365), o STF deve decidir sobre a constitucionalidade da tese grileira. Permanece sem decisão, após sucessivos adiamentos da presidência de Luiz Fux, o não pagador de promessas. Rosa Weber agora promete julgar em 7 de junho.
A cada novo adiamento, a cada nova traição da agenda constitucional, irrompem novas invasões de terras indígenas, ondas de estímulo informal ao crime organizado e violações de direitos humanos. A resposta que o STF tem dado a crises humanitárias como essa é "esperem". Depois, "esperem mais um pouco".
Nesse meio tempo, a Câmara correu, afrontou a autoridade do STF e aprovou projeto de lei que define o marco temporal como critério de demarcação.
Ministros do STF não podem escolher frivolamente as urgências constitucionais do país. No intervalo entre um churrasco com o presidente no Palácio da Alvorada, um encontro da agência de lobby empresarial em Nova York, um evento da empresa educacional de ministro em Lisboa com lideranças partidárias, há coisas importantes a fazer, lados inconciliáveis a assumir.
Se, no longo prazo, estaremos todos mortos, no tempo do STF, pretos com dois gramas de maconha estarão todos presos, comunidades indígenas estarão extintas.
Não cabe ao STF conciliação, mas Justiça Constitucional. Não se pacifica a Constituição com atores que a rejeitam. O STF não tem poder legítimo de não decidir.
Sem direito à diferença, não há Constituição de 1988. Sem direitos territoriais indígenas, não há direito à diferença.
Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo.
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