sexta-feira, 30 de julho de 2021

O amor não acaba


Sim, o amor não acaba. Onde? Nunca? Como? Numa esquina, por exemplo, em mais um domingo em que corri para longe da armadilha ambivalente dos seus braços tensos e sedativos, e que ainda vinham com a folclórica súplica “sou sem futuro”. O amor não acaba nas minhas corridinhas deselegantes e enjoadas até a janela, na esperança de que um pouco de vento me estapeie definitivamente a cara: “Não percebe que até essas bochechas coradas são mais uma invenção solitária?”.

O amor não acabou depois do teatro ao qual não fomos. Depois da exposição que perdemos (e que sempre encerrava antes de a gente começar o dia). Do parque ensolarado que não alcançamos (e que sempre morria antes de a gente viver um pouco). O amor não acabou em livrarias geladas —e a gente preferindo se demorar ali a se esquentar na cama. A mania de nos agarrarmos a capas com medo de naufragar em peles e línguas. E nem assim o amor acabou.

O amor não acabou quando você me deu uma lista impressa de problemas e uma Bic velha sem tampa, e falou: “Cola na sua geladeira e, conforme for caindo a sua ficha, vai ticando os itens”. A lista está lá, inteiramente rabiscada, suja, rasgada. Acho que desenhei casinhas, depois risquei seus tetos. Furei as portas. Meti tapetes grosseiros e escuros no lugar onde antes havia desenhado cortinas meio românticas (do tipo que se prendem com um laço no canto). E o amor não acabou.

O amor não acaba quando apareço me dizendo breve e finalmente livre e declarando que agora, é certeza, acabou tudo, não dá mais. E no dia seguinte mudo de ideia. E depois mudo de novo. E eu mesma canso mais da minha voz e da minha cara do que você. E canso porque a minha voz e a minha cara estão impregnadas desse amor falido, aborrecido, desse amor que nunca foi ou acabou tão rápido e impostor como começou —e que nem assim acaba.

O amor não acaba em promessas de que nunca se poderá fazer alguma. Não acaba num dia inteiro sem saber o que você quis dizer. Implorando que explique. Nem em outro dia inteiro sem saber o que você quis dizer. Nem em outro dia inteiro implorando que você explique. Não acaba nem quando, mesmo sem merecer (e aqui mora a maior das minhas tristezas), sempre saio das histórias me sentindo chata e infantil.

Esse amor que precisa lutar tanto e diariamente para ser desassombrado, e é justamente na ousadia dessa batalha que existe alguma verdade. E alguém vai sempre dizer: “Ah, não, isso é paixão! O amor é calmo e maduro!”. Isso é o que os robôs cacarejam em lives. E antes falavam na revista Caras. O amor é um inferno. E mesmo eu tendo 20 anos de terapia, nem assim o amor acaba.

O amor não acaba em jogos de futebol (e meu peito, ao seu lado, uma várzea; e você insistindo que eu o amasse mesmo quando seus passos parecessem amadores, e eu insistindo que era mesmo por isso que eu o amava tanto), em copos com mancha de outros batons (não falei nada) e nos desejos intensos e repentinos de que eu aparecesse ou ficasse justamente quando, depois de tanto esperar que você pedisse para que eu aparecesse ou ficasse, eu cansava.

O amor não acaba porque desistimos de ver juntos o filme italiano da moto, não acaba porque era tanto desejo sem objeto que eu tive que conter em mim hidroelétricas de emoções e afetos e voltei a ter crises de pânico.

Ah, Paulo Mendes Campos, quisera eu ter tido um cinema para o desenlace das mãos, a sorveteria da moda e a tristeza de tantos espelhos, um café ensebado cheio de pombas e a representação por excelência da finitude de qualquer beleza. Não tive nem sequer uma chance, e nem por isso o amor acabou.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Por trás da boçalidade


Você já viu pelo menos um pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro. Ele fala sentado a uma mesa numa sala, tendo ao fundo uma indefesa bandeira nacional e uma simulação de biblioteca. Os livros, comprados pelas cores das lombadas, estão ali para sugerir compostura e reflexão. Inútil, porque o que sai pela boca do orador, em forma, conteúdo, expressão, timbre e dicção, revela um analfabeto funcional —aquele que, tecnicamente alfabetizado, capaz de reconhecer as letras, despreza o pensamento abstrato, por não lhe servir para nada. Segundo pesquisas, o brasileiro médio lê 4,96 livros por ano. Já é pouco, mas Bolsonaro deve levar 4,96 anos por livro.

Nesses pronunciamentos, Bolsonaro se faz acompanhar de um dois de paus, que não abre a boca, e de um tradutor ou tradutora de libras, cuja função é levar os palavrões e grosserias de Bolsonaro aos deficientes. Há dias, quando ele evacuou sua imortal declaração "Caguei! Caguei pra CPI!", a intérprete de libras era uma patusca senhora de óculos. Conhecendo Bolsonaro, e pelo desembaraço com que traduziu o desaforo —nem sombra de titubeio—, já deve ter um estoque de porras, não f.... e PQPs em seu vocabulário. A não ser que emita uma tradução asséptica, caso em que merecerá um sonoro esporro por desfigurar o estilo do patrão.

Não quer dizer que Bolsonaro seja um ignorante. Seus poucos e inglórios anos de Exército só lhe serviram para aprender a lavar cavalos, pintar postes e atirar, mas os quase 30 de Câmara dos Deputados, mesmo na Terceira Divisão, o ensinaram a mentir, corromper e mamar.

Ensinaram-lhe também a se cercar de ideólogos que, estes, sim, leitores atentos, lhe sopram o que fazer para invadir legalmente as instituições e dominá-las por dentro —os instrumentos da democracia que permitem trabalhar contra ela própria.

O Bolsonaro boçal é só uma frente. O perigo está no que isso esconde.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Em vez de tirar o atraso, uma costela quebrada e a vida sexual escancarada


É fato que pouca gente gosta de expor a vida íntima. Por essa razão se chama vida íntima. Já diz o dicionário, o que é íntimo é privado, pessoal e particular. É tão íntimo falar da vida íntima, que o simples fato de falar a expressão "vida íntima" já soa íntimo.

Não foi o que aconteceu alguns dias atrás. Isso após um acidente doméstico, quando minha vida, digamos, íntima foi exposta a pelo menos uma dúzia de pessoas completamente estranhas.

O que levou a essa circunstância começou quando eu e meu marido nos tornamos pais de dois bebês gêmeos. Nossas atividades entre quatro paredes ficaram menos intensas comparadas às de um casal jovem, cheio de hormônios. A falta de prática também deixou minha flexibilidade e desenvoltura durante as performances entre quatro paredes nada acrobáticas.

Foi justamente quando tentei fazer uma mudança de posição apressada na nossa vida, como posso dizer, íntima, a ser exposta a uma dúzia de pessoas. Mirei a Daiane dos Santos, acertei no Mr. Bean e acabei dando uma joelhada na costela do meu marido.

A tirada de atraso virou uma ida ao pronto socorro com suspeita de costela quebrada ou, sabe-se lá, infarto.

Logo na triagem, a enfermeira tentou imaginar o acidente: "Mas ela tentou passar a perna e te chutou?". "Esquisito. Melhor encaminhar para o cirurgião."

O cirurgião olhou para o teto, desenhando a cena mentalmente: "Mas uma joelhada não poderia quebrar uma costela. Vamos chamar o cardiologista?".

Cardiologista para o cirurgião: "Mas deixa eu entender, ela passou a perna por cima e deu com o joelho nele? Melhor ver com o ortopedista".

Ortopedista para cardiologista e cirurgião: "Deve ter sido uma baita pancada. Vamos fazer uma tomografia?".

Enfermeiro da tomografia, para outros enfermeiros, ao lado do cirurgião, cardiologista e do ortopedista: "Tudo isso por causa de uma joelhada?".

Diagnóstico: uma costela quebrada e nossa vida sexual escancaradamente compartilhada a uma equipe hospitalar.

Saímos pela sala, aliviados por nunca mais compartilhar nossa, digamos, intimidade, encontramos meu chefe ao lado da esposa: "Ela quebrou o pé jogando tênis. E vocês, o que estão fazendo aqui?".


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Brasil dominaria Olimpíadas de Várzea, com pipa e carrinho de rolimã


Já vou logo avisando: não entendo nada de esporte. O leitor já deve ter percebido que não é o assunto que domino. Minha ignorância é renascentista —abrange todas as áreas de conhecimento humano. Mas de todas as áreas em que nunca me aprofundei, o universo do esporte se destaca porque faz muito tempo que tenho me especializado em não estudá-lo.

Por isso, considero-me apto a comentar as Olimpíadas. Caso entendesse minimamente, não me atreveria a incomodá-los com a opinião enfadonha de um especialista.

Enquanto leigo, me parece que existe uma conspiração mundial visando nos prejudicar. Explico: o Comitê Olímpico Internacional boicota todos os esportes nos quais somos imbatíveis. Tenho a impressão de que o critério que usam pra incluir um esporte parece ser o fato de que ele não é muito popular no Brasil.

Não faz sentido nenhum ter hóquei na grama, mas não ter futsal. Aposto que tem muito mais gente no mundo jogando futebol de salão do que batendo com uma bengala numa bola de tênis. Aliás, não faz sentido o tênis de mesa valer medalha, mas o futebol de mesa não. Qual o preconceito com o nosso pebolim?

Nas Olimpíadas tem cinco tipos diferentes de ciclismo. Nada contra. Mas defendo que tenha pelo menos oito tipos de futebol —futebol de campo, soçaite, de salão, de praia, de mesa, futevôlei, gol a gol e, é claro, altinha, também conhecida como futebol artístico. E não vou nem falar no clássico porém letal porradobol, aquela mistura de pelada com taekwondo —praticada com maestria no Brasil por Felipe Melo. Taekwondo que, por mim, podia muito bem ceder seu lugar ao jiu-jítsu, ao MMA ou à capoeira.

A entrada do skate nos garantiu umas medalhas, mas imagina se incluíssem também o body-board e o jacaré, também conhecido como bodysurfe. Trata-se de um esporte sem idadismo, onde o ouro cairia, aposto, nas mãos de um septuagenário de Copacabana. Mesma coisa pra sinuca, um esporte onde você poderia torcer pro seu avô.

Acabo de perceber que vamos muito bem em todos os esportes que não precisam de muito investimento do poder público. Sugiro que a gente crie uma competição paralela, as Olimpíadas de Várzea. Imagina se empinar pipa valesse medalha. Enquanto as Olimpíadas de Inverno tem o bobsled, as nossas teriam o carrinho de rolimã.

Rapidinho traríamos pra casa todo o ouro que nos foi levado.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Orlando Drummond deu rosto a um personagem icônico e voz a dezenas de outros


“Te dou o maiorrr apoio!”, dizia o Seu Peru, quando queria agradar a algum colega da Escolinha do Professor Raimundo. Cheio de trejeitos e usando roupas coloridíssimas, o personagem tinha orgulho de suas origens – “Peru com mel, de Vila Isabel!” – e, na ânsia da paquera, chegava a ser inconveniente – “Use-me e abuse-me!”. Na maior parte do tempo, era um doce de pessoa: “Peru é cultura, cheio de ternura!”. De vez em quando, também se enfurecia: “Estou porrr aqui!”.

Esses bordões estão marcados na memória de quem assistiu à televisão brasileira nos últimos 30 anos. Mas o Seu Peru, na verdade, surgiu no rádio, em 1952, na primeiríssima versão da Escolinha. É sintomático que o único personagem marcante de Orlando Drummond na TV tenha começado pela voz, antes de ganhar um visual. Dono de uma garganta elástica, o ator e dublador deu alma a criaturas tão díspares como o cachorro Scooby-Doo, o alienígena Alf e o vilão Vingador, de “Caverna do Dragão”.

Orlando Drummond Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1919. Entrou na carreira artística pela beirada, em 1942, como contrarregra na Rádio Tupi. Não demorou para ter sua voz percebida por Paulo Gracindo (1911-1995), um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos. Começou a fazer participações em programas de humor até que, em 1946, passou a trabalhar como radioator em tempo integral.

Naquela época, a dublagem era incipiente no Brasil. Apenas os longas em animação da Disney ganhavam vozes nacionais, além de um ou outro filme voltado ao público infantil. Mas a chegada da TV, em 1950, fez com que a demanda por conteúdo dublado explodisse. E foi nesse novo mercado que Orlando Drummond encontrou as maiores oportunidades de sua carreira.

Seu currículo é longuíssimo e impressionante. Drummond foi o primeiro dublador contratado pela Herbert Richers, que, de produtora de cinema, tornou-se o maior estúdio de dublagem do país. Seu primeiro trabalho lá foi o sargento Garcia, o atrapalhado antagonista da série “Zorro”.

Seguiram-se clássicos da Hanna-Barbera: Pepe Legal, Bibo Pai, Dum-Dum (o comparsa da Tartaruga Touché). Mais tarde, entre 1988 e 1995, Drummond também dublou duas figuras fundamentais dos desenhos da Warner: Patolino e o gato Frajola.

Durante muito tempo, foi a voz do marinheiro Popeye. Na série em animação “Os Smurfs”, fez o vilão Gargamel. Nos filmes baseados na série, o Papai Smurf.

Sem falar na Lebre de Março (“Alice no País das Maravilhas”), no Gato Guerreiro (“He-Man”), no Professor Girassol (“As Aventuras de Tintim”), no sr. Wilson (“Dennis, o Pimentinha”), no Atchim (na segunda dublagem de “Branca de Neve e os Sete Anões”). Ou no papel-título de “Alf, O ETeimoso”, uma das sitcoms de maior sucesso da década de 1980.

Mas foi com Scooby-Doo que Orlando Drummond entrou para o Livro Guiness dos Recordes, como o dublador que por mais tempo deu voz ao cão: nada menos do que 35 anos.

Também dublou centenas de atores de carne e osso, como Gary Cooper, Cary Grant e Gene Hackman. Era uma unanimidade entre os colegas de ofício: todos o adoravam.

Na televisão, Orlando Drummond participou de diversos humorísticos desde os anos 1960. Construiu inúmeros tipos, e um deles fez história: Seu Peru, um homossexual espalhafatoso e de bem com a vida. Na nova versão do programa, em que atores mais jovens reinterpretam os personagens clássicos, Seu Peru caiu com Marcos Caruso, e Drummond aprovou: “agora eu tenho um sucessor”.

Casado desde 1951 com Glória, teve com ela dois filhos, cinco netos e três bisnetos. E fundou uma dinastia de dublagem: seus netos Alexandre, Eduardo e Felipe também são dubladores.

Orlando Drummond nasceu no final da pandemia da gripe espanhola e se foi durante outra, a da Covid-19, sem ser atingido por nenhuma delas. Foi o primeiro idoso carioca a ser vacinado contra o novo coronavírus, e chegou a tomar a segunda dose. Deixa um legado imenso, admirado por diversas gerações.


Texto de Tony Goes, na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

O trem que passa por cima


Pobre general Luiz Eduardo Ramos! Respeitou o regulamento do Exército que reprova a presença de oficiais da ativa em cargos comissionados e, a um ano e meio da aposentadoria, abriu mão de uma digna reforma para ser ministro do governo Bolsonaro. Ele não sabia que não precisava disso —poderia ter feito como o general Eduardo Pazuello, que foi de farda e tudo para um ministério de bilhões sob vista grossa de seus superiores. E como o general Ramos poderia imaginar que Bolsonaro, tão seu amigo, iria virar-lhe as costas, como já fizera com outros sem os quais não teria chegado à Presidência?

Ramos não precisava ser um estrategista como Napoleão ou Nelson para saber o que o esperava. Bastar-lhe-ia computar as bofetadas verbais que Bolsonaro estalava todos os dias na cara de seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro, principal avalista de sua eleição. Ou o chute que Bolsonaro aplicou no ex-senador Magno Malta, cuja oração ao pé do seu leito no hospital o levantara dos mortos depois da facada em Juiz de Fora. Ou em seu cabo eleitoral Gustavo Bebianno, que, ao se ver traído por Bolsonaro, literalmente morreu de desgosto.

Ramos poderia ter observado também o que Bolsonaro reservara a seus camaradas, os generais Rego Barros, Santos Cruz, Azevedo e Silva e Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antonio Carlos Bermudez. Todos foram despachados por Bolsonaro, talvez por não se provarem golpistas. Pois o fiel Ramos levou o bilhete azul por motivo ainda mais humilhante —porque, em troca de proteção, Bolsonaro teve de entregar seu cargo a um político daqueles que os militares acreditaram que ele iria combater.

Que pena, nunca mais teremos pela TV a expressão de deslumbramento com que o general Ramos olhava para seu líder Bolsonaro —tão compenetrado que nem viu o trem que, como ele confessou, lhe passaria por cima.

Bem feito.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Dono da Riachuelo é indicado ao prêmio Maria Antonieta de asneira rica


Temendo que a reforma tributária tire qualquer centavo de seu patrimônio, o empresário Flavio Rocha fez um pedido de socorro. Em entrevista à Folhao dono da Riachuelo alertou: “Taxar grandes fortunas reduz a desigualdade, mas empobrece os ricos”.

Rocha é um grande candidato ao prêmio Maria Antonieta de asneira dita por ricos. Talvez nem a imperatriz francesa fosse capaz de dar tal declaração. Pelo menos, ela oferecia brioches aos súditos. Mesmo assim, a gente sabe no que deu.

Mas, como disse Rocha, se aumentassem os impostos, a vida ficaria muito dura para os ricos. Se taxassem grandes fortunas, talvez alguns milionários não pudessem mais comprar jatinhos particulares à vista. Provavelmente teriam que parcelar em cinco ou seis vezes. Ou encarariam a dura realidade de viajar de primeira classe. Realmente, seria difícil dividir uma luxuosa cabine de avião com outros ricos, enquanto a maioria da população mal consegue pagar o transporte público.

Ao aumentar os tributos dos milionários e bilionários, alguns deles teriam que adiar, só por alguns meses, o sonho de comprar um apartamento com elevador de carro, para estacionar o próprio veículo na sala. Seria dura a realidade dessas pessoas, de ter que pegar um elevador a pé e não dormir junto com o carro, enquanto 6,9 milhões de famílias estão sem um teto para morar.

Caso os ricos pagassem mais impostos, alguns deles teriam de enfrentar o drama de fazer um downgrade no modelo de helicóptero. Imaginem quão duro seria ir ao trabalho com uma aeronave com apenas uma turbina, em vez de duas. Ou, pior, ter que encarar uma Faria Lima de carro. Isso enquanto quase 15 milhões de brasileiros em idade ativa estão desempregados.

Se taxassem grandes fortunas, alguns brasileiros, poucas dezenas, não acumulariam US$ 219,1 bilhões, quase o PIB do país. Seria muito trágico ter que pagar 10% a mais de impostos, o que geraria R$ 122 bilhões para os cofres públicos.

Se pagassem mais impostos, alguns milionários ficariam um pouco mais pobres. Mas veriam mais pessoas com moradia, vacina, comida e escola. Quem sabe, assim, almas como a de Flavio Rocha ficariam um pouco mais ricas.


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

Por que os psicopatas genocidas não usam máscara?


Sempre me perguntam: “Será que os brasileiros ficarão melhores depois que a pandemia terminar?”

Sinceramente, não sei como responder. Gostaria de dizer que sim, que a tragédia que estamos vivendo provocou uma profunda transformação e seremos melhores no mundo pós-pandemia.

Mas, pelo que observo ao redor, não tenho muita esperança.

Sabe aquele amigo que só te procura quando precisa de algum “favorzinho”? E que quando recebe um sonoro não, reage indignado: “Nossa, como você é egoísta. São só cinco minutinhos. O que custa?”. E que, apesar de mais de 540 mil mortes, repete como um fanático negacionista que a Covid é só uma gripezinha?”

Conhece aquela amiga que só liga para reclamar que o restaurante favorito dela fechou e que está exausta de tanto procurar uma cozinheira? E se faz de vítima porque engordou dez quilos e o marido não quer mais transar? E se vangloria de ter tomado a Pfizer e “não a porcaria da vacina comunista”?

E o vizinho que grita “mito” quando todos estão batendo panelas? E entra no elevador sem máscara e te xinga de cagão pois acha frescura e mimimi cumprir as recomendações da ciência? E ainda faz festas barulhentas para atormentar os vizinhos?

Ou a cunhada que posta vídeos no grupo da família no WhatsApp exibindo a bunda no espelho: “A bundinha continua durinha apesar dos brochas e maricas”? E dissemina fake news sobre “a mamadeira de piroca” e discursos velhofóbicos: “Os velhos têm que morrer mesmo. Vai ser até bom para a previdência. Eles são um peso para o Brasil”?

E por aí vai. Eles se tornaram piores com a pandemia? Ou sempre foram assim?

Os psicopatas genocidas e seus cúmplices saíram do armário. Tiraram as máscaras e passaram a exibir a “pior versão de si mesmos”: egoístas, mesquinhos, mentirosos, covardes, desumanos, asquerosos, insensíveis, intolerantes, ignorantes, inúteis, tóxicos, destrutivos, preconceituosos, abusivos, violentos e sádicos. Eles fazem mal para a saúde e gozam com a dor dos brasileiros.

Estou fazendo uma “faxina ampla, geral e irrestrita” na minha vida e deletando todos os egoístas, inúteis, vampiros, parasitas e sanguessugas que só reclamam, odeiam e destroem; que se acham o centro do universo e só se preocupam com o próprio umbigo; e que não sabem escutar, compreender e cuidar de quem mais precisa.

Você com certeza conhece algum vampiro, não é mesmo? Se quiser falar sobre a “faxina pandêmica” que precisa fazer para se proteger dos que sugam a sua saúde física e emocional, prometo que não conto para ninguém.

Felizmente, tive a sorte de conhecer mulheres e homens maravilhosos que se tornaram parceiros no meu projeto de vida: construir uma bela velhice e lutar contra a velhofobia no Brasil. Eles escolheram ser “a melhor versão de si mesmos”: cuidam de muita gente; alimentam a alegria, o amor e a saúde dos amigos e familiares. Não gastam tempo com bobagens, reclamações e brigas, e buscam ter uma vida com significado. Eles me provaram que, apesar da proliferação dos psicopatas genocidas, existem brasileiros que valorizam a reciprocidade, o reconhecimento, a compreensão, o cuidado, a generosidade, o caráter e o propósito de vida. Eles me ensinaram a arte de “escutar bonito”.

Em um momento de tristeza, sofrimento e desesperança, sou grata por ter amigos e amores com quem posso compartilhar o meu mantra: “Unidos venceremos! Tamojuntos!”


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

A África de Laurentino Gomes é um continente pujante e sem pieguismo


Devoro o volume um do “Escravidão”, de Laurentino Gomes.

No Brasil, o tráfico de humanos nos deixou de legado tanto a cultura e o conhecimento africanos quanto o progresso movido à chibata, à miséria, ao racismo e uma dívida social impossível de ser quitada.

Ignoro muitos aspectos da África que nos fundou e creio não ser um caso isolado. Inúmeros fatores contribuíram para o alheamento, inclusive decisões equivocadas de brasileiros doutos.

Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, mandou incinerar os arquivos dessa “instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral”.

A limpa destruiu os registros da origem ancestral de milhões de brasileiros.

A escravidão é um assunto espinhoso para uma descendente de portugueses transmontanos e italianos sardos como eu. Atraídos pela propaganda governamental, que prometia enriquecimento rápido numa terra onde o ouro brotava do chão, meus antepassados cruzaram o Atlântico no fim do século 19.

A campanha escondia o projeto de embranquecimento do país, por meio da substituição da mão de obra afrodescendente, recém-liberta pela abolição, por europeus pobres.

A minha existência, portanto, é resultado de uma política de viés racista. Livres do preconceito de cor, grande parte dos netos e bisnetos da imigração europeia conseguiram, em três ou quatro gerações, se transformar em doutores, intelectuais e até presidentes; destino raro entre os herdeiros dos africanos imigrados à força.

Na escola, aprendi que os portugueses aportaram no Brasil por acaso e que os povos indígenas, por preguiça inerente à raça, não se prestavam ao trabalho duro dos engenhos de açúcar. Para solucionar o problema, abomináveis comerciantes de escravos traficaram uma massa passiva de trabalhadores braçais, capturados na África primitiva.

Conheço as críticas feitas a Gilberto Freyre por sua visão ambígua, muitas vezes adocicada, do período escravocrata. Freyre teria ajudado a perpetuar a falácia da democracia racial brasileira.

Confesso, no entanto, que devo a “Casa-Grande e Senzala” a descoberta da potência, da ciência, da alegria e do vigor fundador da cultura africana no Brasil. O livro sepultou o aspecto débil e fantasmagórico dos escravizados a mim transmitido em sala de aula.

No que se refere ao caráter inocente e infantil dos povos originais das Américas, Claude Lévi-Strauss teve o mesmo efeito de Freyre na minha formação. “Tristes Trópicos”, “O Pensamento Selvagem”, “As Estruturas Elementares do Parentesco”, “Mitológicas” e “A Oleira Ciumenta” me revelaram a complexidade dos ameríndios, aposentando a versão pueril pregada na escola.

Tardiamente, enxergo a África pelos olhos de Laurentino Gomes. Eu, que mal nomeio ou localizo os países de um continente que nos pariu, identifico agora na sua costa oeste, entre o Atlântico, o Saara e as florestas equatoriais, o curso dos rios Gâmbia, Senegal e Níger, onde floresceram os impérios de Gana, Mali e Songai.

E compreendo a relação dessa região com o lucrativo tráfico de escravos, motor econômico das descobertas marítimas desde antes da chegada dos ibéricos ao Novo Mundo.

Gomes descreve as duas engrenagens circulares de ventos e correntes do Atlântico, uma girando no sentido anti-horário, na parte de baixo do equador, e outra a favor do relógio, no hemisfério norte.
O domínio dos dois sistemas permitiu aos portugueses tanto contornar o cabo da Boa Esperança quanto inaugurar uma rota triangular de comércio entre a Europa, a África e o Brasil, sustentada pela carga dos navios negreiros.

A África de Laurentino Gomes é sólida, realista e pujante. Sem pieguismo, o autor insere o continente africano na história oficial da Europa, do mundo árabe, do Oriente e das Américas e, ao fazê-lo, a modifica.

Promulgadas em 2003 e 2008, as leis 10.639 e 11.645 exigem a inclusão da história das culturas afro-brasileira, africana e indígena no currículo do Ministério da Educação.

Percebo, pelo meu filho mais novo, o empenho das instituições de ensino em cumprir com a obrigação, embora note, na abordagem do tema, certa afetação folclórica, um exotismo raso que tanto a clareza de Gomes quanto a ciência de Lévi-Strauss ajudariam a evitar.

Se o objetivo é educar crianças avessas ao racismo e dotadas de compreensão ampla da diversidade humana, Gomes, Lévi-Strauss e até Freyre, mesmo que com ressalvas, deveriam constar do currículo do MEC, junto à pré-história do território brasileiro contada por Niède Guidon. “Conhecereis a verdade”, molecada, “e a verdade vos libertará”.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 7 de julho de 2021

É preciso ter muita burrice para reclamar do apoio tucano às manifestações


Contra um genocida, toda aliança política se justifica. Foi assim que Churchill e Stálin se uniram contra Hitler, com os americanos de lambuja.

É preciso ter muita burrice política, portanto, para reclamar do apoio tucano às manifestações pelo impeachment de Bolsonaro. E é preciso ser pior que um bolsominion para fazer como alguns militantes do PCO, que no domingo passado partiram para a agressão contra quem também estava contra Bolsonaro na avenida Paulista.

Dito isso, fico um pouco incomodado com as adesões mais recentes à luta pelo impeachment.

Há bastante tempo o presidente vem dizendo que não aceitará uma derrota nas urnas eletrônicas; ele xinga o Supremo Tribunal Federal; estimula manifestações de fanáticos na frente de um quartel do Exército; usa um general pateta para intimidar outros generais —que engolem em seco. Motivos mais que suficientes para o impeachment.

Mas não. Para alguns setores saírem da inércia, foi necessário que aparecessem sinais de corrupção na compra de vacinas.

Bolsonaro faz campanha pela cloroquina, milita contra as máscaras, desrespeita a lei, ironiza as mortes pela pandemia. Outro motivo óbvio para um impeachment.

Mas não. Algumas pessoas só se mexem porque agora surgem denúncias de prevaricação em contratos farmacêuticos.

Tudo bem: nada mais abominável, nada mais criminoso do que boicotar a vacinação de todos os brasileiros para encher o próprio bolso.

Casos de vilania desse tipo são coisa de filme (penso em “O Terceiro Homem”, de Carol Reed); algo que se situa entre Hitler e o dr. Mengele. Mas será que é preciso saber do dr. Mengele para desejar a queda de Hitler?

Imagino bem o que se passa na mente dos que produziram as últimas peças de propaganda contra Bolsonaro. “Vamos procurar apoio nos que votaram nele... Vamos investir na classe média que se sentiu enganada pensando que ia acabar com a corrupção.”

Certo; não há como fazer coisa diferente. O que me deprime é pensar nesse tipo de eleitor. Não se trata nem mesmo do bolsonarista arrependido, que engulo a contragosto. Não se trata simplesmente do cidadão que quer o fim da pilantragem petista (também quero).

É um caso mais sério. É o caso de quem tacitamente aceita a morte dos mais pobres, aceita qualquer ditadura, aceita a destruição da Amazônia —mas corrupção, isso nunca! Considera a tortura menos grave do que a propina.

Prevejo que possam me dizer: “você tolera a propina”. Não, claro que não. É você, meu caro, que tolera golpes, massacres e genocídios. Fez pouco, admita, para provar que não.

Uma pausa para eu respirar um pouco.

Pronto, já me acalmei.

Passo para outra coisa.

Adoro tudo que Antonio Prata escreve neste jornal, mas tenho minhas reservas quanto ao seu artigo do último domingo.

Ele observa, com razão, que bolsonarismo e trumpismo são sintomas de uma crise mais profunda; uma “grande mentira” vem minando, há décadas, o sistema político que estávamos acostumados a ter.

Qual é essa “grande mentira”? Prata diz que muitas pessoas acreditaram “que as democracias liberais, este nosso mundo com eleições, Netflix, cartão de crédito, Peppa Pig, politicamente correto, cross-fit, Carteira de Trabalho, McFlurry, habeas corpus, Fuvest e afins iria melhorar suas vidas, garantir seus direitos básicos e introduzi-las numa sociedade justa, onde todos teriam as mesmas oportunidades.”

Simplesmente não entendo a razão de juntar eleições com Netflix, habeas corpus com Peppa Pig. Uma coisa é democracia, outra é sociedade de consumo neoliberal.

Os pobres não têm direitos garantidos e descreem do sistema. Concordo. Veem-se manipulados pelo populismo de direita. Certo.

Mas será que vem “dos pobres” a maior ameaça ao sistema democrático?

Quando vejo manifestantes a favor de Bolsonaro, o que reconheço são fanáticos de classe média. Contra a democracia, de forma militante e histérica, estão alguns donos de redes varejistas. Sustentando Bolsonaro, o máximo que der, está o pessoal do mercado financeiro.

São esses os golpistas. E, quando se luta por uma “democracia mais inclusiva”, como diz Antonio Prata, ou simplesmente para que se mantenham eleições e habeas corpus, é essa gente que se encarrega de melar o jogo, como já vimos que faz. 


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo