Sim, o amor não acaba. Onde? Nunca? Como? Numa esquina, por exemplo, em mais um domingo em que corri para longe da armadilha ambivalente dos seus braços tensos e sedativos, e que ainda vinham com a folclórica súplica “sou sem futuro”. O amor não acaba nas minhas corridinhas deselegantes e enjoadas até a janela, na esperança de que um pouco de vento me estapeie definitivamente a cara: “Não percebe que até essas bochechas coradas são mais uma invenção solitária?”.
O amor não acabou depois do teatro ao qual não fomos. Depois da exposição que perdemos (e que sempre encerrava antes de a gente começar o dia). Do parque ensolarado que não alcançamos (e que sempre morria antes de a gente viver um pouco). O amor não acabou em livrarias geladas —e a gente preferindo se demorar ali a se esquentar na cama. A mania de nos agarrarmos a capas com medo de naufragar em peles e línguas. E nem assim o amor acabou.
O amor não acabou quando você me deu uma lista impressa de problemas e uma Bic velha sem tampa, e falou: “Cola na sua geladeira e, conforme for caindo a sua ficha, vai ticando os itens”. A lista está lá, inteiramente rabiscada, suja, rasgada. Acho que desenhei casinhas, depois risquei seus tetos. Furei as portas. Meti tapetes grosseiros e escuros no lugar onde antes havia desenhado cortinas meio românticas (do tipo que se prendem com um laço no canto). E o amor não acabou.
O amor não acaba quando apareço me dizendo breve e finalmente livre e declarando que agora, é certeza, acabou tudo, não dá mais. E no dia seguinte mudo de ideia. E depois mudo de novo. E eu mesma canso mais da minha voz e da minha cara do que você. E canso porque a minha voz e a minha cara estão impregnadas desse amor falido, aborrecido, desse amor que nunca foi ou acabou tão rápido e impostor como começou —e que nem assim acaba.
O amor não acaba em promessas de que nunca se poderá fazer alguma. Não acaba num dia inteiro sem saber o que você quis dizer. Implorando que explique. Nem em outro dia inteiro sem saber o que você quis dizer. Nem em outro dia inteiro implorando que você explique. Não acaba nem quando, mesmo sem merecer (e aqui mora a maior das minhas tristezas), sempre saio das histórias me sentindo chata e infantil.
Esse amor que precisa lutar tanto e diariamente para ser desassombrado, e é justamente na ousadia dessa batalha que existe alguma verdade. E alguém vai sempre dizer: “Ah, não, isso é paixão! O amor é calmo e maduro!”. Isso é o que os robôs cacarejam em lives. E antes falavam na revista Caras. O amor é um inferno. E mesmo eu tendo 20 anos de terapia, nem assim o amor acaba.
O amor não acaba em jogos de futebol (e meu peito, ao seu lado, uma várzea; e você insistindo que eu o amasse mesmo quando seus passos parecessem amadores, e eu insistindo que era mesmo por isso que eu o amava tanto), em copos com mancha de outros batons (não falei nada) e nos desejos intensos e repentinos de que eu aparecesse ou ficasse justamente quando, depois de tanto esperar que você pedisse para que eu aparecesse ou ficasse, eu cansava.
O amor não acaba porque desistimos de ver juntos o filme italiano da moto, não acaba porque era tanto desejo sem objeto que eu tive que conter em mim hidroelétricas de emoções e afetos e voltei a ter crises de pânico.
Ah, Paulo Mendes Campos, quisera eu ter tido um cinema para o desenlace das mãos, a sorveteria da moda e a tristeza de tantos espelhos, um café ensebado cheio de pombas e a representação por excelência da finitude de qualquer beleza. Não tive nem sequer uma chance, e nem por isso o amor acabou.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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