Imagine a cena em que casais com filhos ainda jovens comentam a situação do Brasil hoje. O horror que é termos candidatos populistas viáveis nessa eleição. As crises econômicas contínuas. A insegurança das ruas. A corrupção! Essa então é um horror. O estado da educação, então, uma vergonha! O trânsito mal educado. Os evangélicos! Os evangélicos, então, dá vontade de vomitar. Como são ignorantes! Imagine que são contra o aborto e a favor da pena de morte! E toda essa gente é brasileiro que nem eu?
Agora imagine que, ainda no momento queijos e vinhos, pré jantar, alguém, portador de algum passaporte europeu, começa a falar dos preparativos para mandar sua filha para estudar na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Só gente vira-lata como o brasileiro precisa ficar mil dias na fila esperando uma permissão pra entrar nos EUA —aquele país que todo mundo critica, mas no qual todo mundo quer ir morar.
O grupo à mesa concorda em voz alta com argumentos do tipo “aqui não há futuro mesmo”, “o Brasil nunca teve futuro”, “maldita hora que meu avô, italiano, não foi para os EUA ou ficou na Itália” —ainda que, naquele momento, a Itália fosse um lixo também. “Brasileiro é mal educado mesmo, na Europa é outra coisa...”. Se alguém fosse escrever um dicionário de frases bregas, essas deveriam constar na lista dos favoritos.
Há que se notar que, em situações como essas, concordar com o que alguém rico e/ou “inteligente” diz, significa que você também é rico e/ou “inteligente”. Comentários sobre arte são fundamentais. “O povo brasileiro não dá valor à cultura, olha só o que aconteceu no museu no Rio!”. Aposto que quase ninguém que surtou nas mídias sociais quando o “museu no Rio” pegou fogo nunca pisou nele, ou nem mesmo sabia da sua existência. Nada mais brega do que fingir amor à “arte” em nome da autoimagem.
Num jantar inteligente como esse, sempre alguém solta uma pérola do tipo “prefiro tal candidato porque ele dá valor à arte”. Risadas? Você conhece algum povo que dava mais valor à “arte” no começo do século 20 do que os alemães? Risadas? O ridículo é destino em vira-latas que falam.
Amor à “arte” nunca garantiu nada em termos de comportamento. “Artistas” em geral são tão canalhas quanto canalhas que odeiam a “arte”. Pessoas que trabalham em padarias têm, em geral, mais caráter do que quem mexe com arte e cultura.
Seria importante lembrar a esses vira-latas que essa forma de auto-ódio é tão venenosa para o Brasil quanto os políticos corruptos. Aliás, suspeito que há alguma forma de conexão entre as duas condições.
No fundo, o vira-lata queria ser europeu ou americano e, por isso, lambe a moçada de lá. Essa baixa autoestima nacional inunda o país com pequenos atos de desprezo pelo mundo à sua volta. A pergunta é: de onde vem esse ódio que o vira-lata nutre contra si mesmo? Essa vontade de arrancar a própria pele é acompanhada, na grande maioria dos casos, pelos bolsos cheios de dinheiro que esse vira-lata ganha nesse mesmo “país de merda” do qual seu filho deverá fugir.
No fundo, o vira-lata queria ser europeu ou americano e, por isso, lambe a moçada de lá. Essa baixa autoestima nacional inunda o país com pequenos atos de desprezo pelo mundo à sua volta. A pergunta é: de onde vem esse ódio que o vira-lata nutre contra si mesmo? Essa vontade de arrancar a própria pele é acompanhada, na grande maioria dos casos, pelos bolsos cheios de dinheiro que esse vira-lata ganha nesse mesmo “país de merda” do qual seu filho deverá fugir.
Alguém precisa ensinar modos para essa moçada que gosta de xingar o Brasil enquanto vive graças à grana que ganha nesse mesmo Brasil. A rigor, não há diferença de natureza (há de grau, claro) entre quem rouba o país roubando capital público e quem rouba o país roubando o próprio capital simbólico do país, dizendo que quer mandar o filho embora porque aqui não há futuro. Claro, depois de ter enchido os bolsos de dinheiro com esse “país de merda”. A repetição é pedagógica.
Essa ideia aparece, por exemplo, no modo de pensar como o filho lavando roupa em Barcelona é chique, enquanto que o filho lavando roupa aqui seria maus tratos com a pobre criança. É a mesma diferença entre andar de bicicleta na marginal Tietê porque não se tem grana e andar de bike na ciclovia da Faria Lima por opção política haddadiana. Ou ser “contra carros” e só andar de Uber e não ter carro e andar de trem-metrô-ônibus.
As sutilezas da realidade, normalmente, escapam à cognição de quem é wanna be por natureza. A condição wanna be é caracterizada por uma enorme privação de amor próprio que torna a pessoa incapaz para atividades cognitivas e morais mais sofisticadas.
Há cura para essa condição? Não creio. Talvez daqui a mil anos mude. A elite brasileira é, em geral, um lixo mesmo. Além de sempre ter compactuado com formas péssimas de governo, é ela mesma, e não o “povo”, que condena o país à condição atual.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.
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