Um dos mil relatos destes dias: uma amiga, linda, desce no metrô de São Paulo usando uma camiseta que diz "Lute como uma garota", na qual ela colou uma fita com o seguinte escrito: "#EleNão".
Um homem levanta o dedo em riste e grita na cara dela: "Fraquejada! Suja! Ridícula!".
Minha amiga respira fundo e segue seu caminho desejando amor e luz. De amor, não sei, mas de luz, certamente, o idiota que a agrediu estava precisando.
Tente passear pela cidade com uma camiseta vermelha ou entrar no shopping Bourbon com uma bandeira arco-íris, só para ter um antegosto do estranho futuro que é prometido a gays, transgêneros, negros e mulheres "suspeitas" de feminismo.
Talvez você se console com a ideia de que você não é gay, trans, mulher, negro. Lembre-se do fim da famosa poesia do pastor Niemöller: "Quando eles vieram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar".
Hoje, terça (16), aliás, recebi o vídeo de um aloprado que denuncia psicanalistas e psis em geral por eles serem todos membros do PSOL. Talvez alguém devesse avisar a Boulos.
Enfim, o boçal que queima livros quer reduzir a cinzas textos que não consegue ler por ineptidão ou preguiça.
Aquele que bate em trans e gays tenta punir seu próprio desejo homossexual e suas próprias incertezas de gênero. Aquele que persegue negros está apavorado com a possibilidade de perder os supostos privilégios de sua "raça" branca.
Mas de onde vem o ódio pelas mulheres?
Recebo um post de rede social com várias mulheres na manifestação do #EleNão: elas estão seminuas, com #EleNão escrito no peito, nas pernas, no ventre. Pensei que o post fosse a favor da manifestação, porque achei as mulheres lindas.
Logo, dei-me conta de que a imagem fora postada por uma mulher recatada e do lar, a qual queria expor ao opróbrio público essas fêmeas seminuas e sem vergonha.
Bizarro. Talvez a primeira mulher que inspirou meus sonhos de adolescente tenha sido a Liberdade do quadro "A Liberdade Guiando o Povo", de Delacroix. Eu me identificava com o menino (talvez a origem de Gavroche dos "Miseráveis", 30 anos mais tarde) e admirava os seios perfeitos da liberdade.
Alguém me perguntará: e sua mãe, você gostaria que ela se mostrasse pelada com #EleNão escrito nas coxas abertas? Claro que sim, se esse fosse o posicionamento dela.
Lembro-me de uma foto da minha mãe em 1944 ou 45. Ela está com roupa para alta montanha, encostada num casebre alpino, esquentando os ossos no sol. Um passeio? Não: não longe dela, está encostada contra o muro uma submetralhadora Sten.
Meu ideal de mulher nasceu assim, na admiração pela coragem de viver e desejar. Detalhe: minha mãe era estudante de grego antigo, liberal e monarquista. Ela e meu pai apenas achavam os fascistas boçais.
A boçalidade não corresponde a uma doutrina econômica ou política. À força de estudar o comportamento das massas nos regimes totalitários, descobri que, para mim, a boçalidade é a paixão abstrata de impor aos outros que eles ajam e pensem como a gente.
Não quero transar com pessoas do mesmo sexo. Sem problema, mas por que quer isso para todos? Como nasce a estranha vontade boçal de controlar os outros? E o que isso tem a ver com o ódio pelo desejo feminino, um dos fundamentos de nossa boçalidade?
Primeiro, um mínimo de bibliografia: "Ascensão e Queda de Adão e Eva", de Stephen Greenblatt (Companhia das Letras) e "Les Aveux de la Chair" (as confissões da carne), de Michel Foucault (Gallimard). Ou, nesta época tensa, algo mais leve e bem humorado: "A Origem do Mundo", de Liv Strömquist (Quadrinhos na Cia), uma irresistível HQ sobre a história da vulva (e, por extensão, do desejo feminino no Ocidente). Eu adotaria o livro para o ensino fundamental, sem hesitar.
Enfim, armado dessa bibliografia básica, considere este argumento:
1) o homem ocidental persegue há tempos um sonho de controle de si mesmo;
2) esse sonho fracassa diante do caráter involuntário e incontrolável do seu desejo sexual;
3) esse fracasso é atribuído à mulher, malvada Eva, por ela ser fonte constante de tentação --ou seja, a culpada pelo descontrole do desejo masculino.
Conclusão: o ódio pelo desejo feminino é a pedra angular da paixão de se controlar, a qual, ao fracassar, transforma-se em vontade de controlar os outros.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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