Toda semana, quando entrego o texto desta coluna, penso se é isso mesmo ou se estou devaneando. Realmente aconteceu comigo aquilo que eu planejei aos dez anos de idade? Aos 20, 30, 39, ontem? Não existiu um único dia da minha vida em que eu não tenha desejado com cada célula do meu corpo ser uma escritora lida. Eu não sei fazer arroz, eu não sei fazer divisões matemáticas simples, eu não sei mais fazer amor, mas eu escrevo —e, além de criar a minha filha, essa é a única atribuição que me importa.
Contudo, ontem, liguei para o editor desta Folha e me demiti (calma, não comemore, já voltei atrás). Quando o encontro com o outro deixa de nos empolgar ou emocionar, escrever torna-se tão sem sentido quanto aparar os pelos. Eu estou desgostando das pessoas de que gosto, e isso é desesperador.
É tanto cansaço e desesperança que concatenar qualquer pensamento me enche de ânsia e enxaqueca. Eu queria deitar no escuro e no silêncio por meia hora e mais meia hora e mais uma meia horinha até melhorar. Se o maior saco cheio do mundo pudesse chegar à Lua, o meu, neste momento, daria mil voltas em torno dela.
Os tempos soam irremediavelmente sombrios quando parte importante dos seus queridos de outrora não mais te interessam. Eles só falam em dinheiro, eles enfiam Venezuela em frases que não têm nada a ver com a Venezuela, e por cima do rosto deles visualizo a escada ensanguentada do filme "Carandiru": uma metáfora do que acabou de acontecer com a amizade. Quantas viagens, fotos, madrugadas, ataques de risos, ombros melecados de choro, para o amor acabar num post espúrio, opressor e reacionário.
Percebi que 95% da minha família só me causa algum aprazimento quando permanece a milhares de quilômetros dos meus olhos, ouvidos e falta de tato. Nunca trazem livros ou frases doces, nunca trazem graça ou acolhimento, nunca trazem aceitação ou sentimento de orgulho, nunca trazem dúvidas ou desculpas, nunca é a mim que eles visitam, mas sim ao que, solitária e perversamente, julgam ser o mais correto de mim. Apenas me pedem, demandam, invadem, levam, julgam, culpam, cobram, não me enxergam, tentam me afogar na lama grossa de seus lamentos não elaborados, planejados ou digeridos.
Às quintas-feiras, quando estudo psicanálise, disponho de duas magníficas horas com sujeitos que se empenham de verdade em encontrar um sentido menos doloroso para a troca de ar travada com o mundo. Esses colegas não sabem, mas são, hoje (e eu nem lembro direito o nome deles), uma espécie de família possível. Freud é, hoje, apesar de certa misoginia incômoda (um homem do seu tempo) a única figura paterna conciliadora, o terceiro que liberta meu seio da minha própria fome neurótica. A literatura é, hoje, apesar da pilha de livros não terminados ao lado da cama, o único colo materno que recebo quando fico assustada demais nas madrugadas.
De resto, peguem seus "bons-dias", "durmam com Deus" e "fiquem em paz" e tenham vergonha na cara. Em tempos umbrosos, quanto menos divino e generoso é um coração, mais ele transbordará memes insuportáveis de fé, equilíbrio e amor. Eu desejo que os grupos de WhatsApp "do bem" comecem a propagar sífilis, e não esse ódio nojento travestido de desejo de um mundo melhor.
Estou em busca de novos amigos, de novos parentes, sedenta por encontros que nos elevem em vez de encher-nos de uma vontade assustadora de fenecer. Que possamos nos conhecer e começar tudo de novo.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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