sábado, 31 de dezembro de 2016

Por que escrevo romances noir?

Quando um jornalista me pergunta qual será o futuro de Cuba ou quanto Cuba vai mudar nos próximos anos, ou, na versão mais recente, como será Cuba sem Fidel, lamento o estado de calamidade de um jornalismo (ou será o de apenas alguns jornalistas?) que toma os escritores por adivinhos e procura resolver sua missão do modo mais pedestre.
O curioso é que perguntas desse tipo se repetem com frequência alarmante nas muitas entrevistas que dou por ano, há vários anos, e, embora a realidade cubana tenha demonstrado seus altos graus de previsibilidade e imprevisibilidade (tudo ao mesmo tempo) e eu, minha incapacidade de vislumbrar o futuro, a persistência da interrogação demonstra que para esses jornalistas importa mais o que um escritor possa especular do que o que escreve.
Por isso chego a me sentir feliz e realizado quando um jornalista me pergunta por que escrevo romances noir. Algo tão simples e preciso, mas tão fundamentado em uma evidência –oito romances– e em uma singularidade –que apenas eu posso explicar por que escrevo de uma forma e não de outra, um assunto e não outro.
O romance noir, ou policial, ou detetivesco, é há décadas um gênero ou tipo de literatura considerado popular e menor. Cultura de massas. Nas últimas décadas, porém, até a academia mais rançosa e elitista vem sendo obrigada a aceitar sua pertinência e também a reconhecer sua qualidade artística. E não precisamente porque as academias sejam compreensivas e abertas, mas porque o romance noir ganhou um espaço literário e social no âmbito da cultura (e não apenas da de massas) da pós-modernidade.
Obras de grande valor estético e de aguda reflexão sobre uma realidade, criadas por autores de nomes adornados com prestígio, prêmios, sensibilidade literária e social contribuíram para a concretização desse processo. Umberto Eco e Leonardo Sciascia, na Itália; Rubem Fonseca, no Brasil; Manuel Vázquez Montalbán, na Espanha; Henning Mankell, na Suécia, Benjamin Black, na Irlanda, fazem parte de uma lista cada vez mais longa e poderosa de escritores que conquistaram todo ou parte de seu reconhecimento escrevendo romances policiais (ou quase policiais) e conferiram ao gênero qualidade literária, capacidade de penetração social e, com isso, respeitabilidade artística e cultural.
Para a maioria desses autores, o impulso que os levou a escrever romances policiais parte de duas condições: a grande capacidade que possui esse gênero de romance de expressar os mais diversos e obscuros conflitos de uma sociedade, e sua generosidade estética como forma de expressão aberta a todas as experimentações e todos os aprofundamentos literários possíveis.
O resultado de tais qualidades tem sido que, ao lado de uma novelística policial que continua apegada aos recursos fáceis da criação de um mistério atraente, foi se criando um corpo literário sólido e cada vez mais prestigioso, que participa ativa e às vezes decisivamente da criação de uma imagem próxima a das sociedades em que vivemos.
A recorrência a assuntos tão complexos e polissêmicos como a corrupção, o medo, a violência, o tráfico de drogas e pessoas, o crime organizado, a degradação da política (e dos políticos) e o jogo de influências, a prostituição e o proxenetismo, o comércio de armas, o crime de Estado e a marginalidade, entre outras realidades de peso crescente no mundo contemporâneo, vem permitindo ao romance policial não apenas participar do jogo social e alcançar qualidade literária, senão, também e sobretudo, converter-se em um dos recursos mais ágeis e eficazes para refletir a decadência de um mundo ou, pelo menos, suas dores mais agudas.
Por isso, quando me colocam na função de oráculo e me perguntam como será Cuba no futuro, sempre respondo que não sei. Apenas presumo que será algo diferente do que é hoje, pela simples questão de acreditar na dialética, no desenvolvimento, na evolução. Em contrapartida, quando me pressionam para falar de minha preferência pelo romance noir, lanço mão de todos os argumentos acima anotados e acrescento mais um: porque gosto de contar histórias que tenham princípio e fim, em que aconteçam coisas capazes de interessar ao leitor e nas quais, diante de tanta falta de justiça e verdade nas sociedades contemporâneas, haja um pouco de senso de justiça, algo que sempre é reconfortante.
Por isso escrevo romances policiais... e com certeza por isso, você, leitor, também lê romances policiais, inclusive nestes dias de festas com que encerramos um ano dramático e nos aproximamos de outro que pode ser terrível... Se bem que eu ainda não saiba como nem quanto!


Texto de Leonardo Padura, na Folha de São Paulo. Tradução de Clara Allain. 

Fica, 2016

Não adianta apagar o ano e rumar o mais rápido possível para 2017, como se fugir para a frente ajudasse em algo. Ao contrário, é preciso fixar na memória que em 2016, numa grave decisão contrária à democracia brasileira, o Congresso Nacional derrubou a presidente da República legitimamente eleita e que não cometeu crime de responsabilidade.
Que profundas consequências advirão do golpe parlamentar ainda não podemos saber, mas devemos, desde já, investigar como e por que ele se deu. Lembro que 2016 começou com o impeachment politicamente morto. Ficara claro que Eduardo Cunha dera curso ao processo porque o PT decidira votar contra ele na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados.
Em consequência, foram um fiasco as manifestações de rua em dezembro de 2015 pela derrubada de Dilma. De que modo foi revertido o quadro? Quais foram os agentes e dirigentes da reversão? Que meios utilizaram?
O grosso das operações golpistas ocorreu no primeiro semestre. Na prática, a situação se resolveu entre 23 de fevereiro, quando foi preso o marqueteiro João Santana, e 17 de abril, a data verdadeiramente decisiva, em que o plenário da Câmara aprovou, por 367 a 137, a continuidade do julgamento contra Rousseff. Os acontecimentos posteriores constituíram apenas epílogo até o fatídico 31 de agosto em que ela caiu.
Se ajustarmos ainda mais os instrumentos de observação, veremos que o processo se concentrou nos 20 dias que mediaram a detenção do já citado propagandista das campanhas do PT e a manifestação pró-impeachment do domingo 13 de março. Tal como a Marcha com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964, sacramentou a queda de João Goulart, a multidão (500 mil pessoas, segundo o Datafolha ) reunida, novamente em São Paulo, após meio século, determinou o fim do ciclo lulista. A manchete da Folha, em duas linhas e toda em caixa alta, feita para registrar evento maior, deixava clara a importância do acontecido: "Ato anti-Dilma é o maior da história".
O que produziu a mudança entre o rotundo fracasso das manifestações de dezembro de 2015 e o absoluto sucesso de março de 2016? Minha hipótese reside na combinação entre três fatos produzidos pela Operação Lava Jato e o quadro de emergência comunicacional criado ao redor deles: a prisão de Santana (23/2), a delação de Delcídio do Amaral (3/3) e a condução coercitiva de Lula (4/3).
O espaço me impede de detalhar aqui os nexos internos que ligam esses acontecimentos e o tratamento dado a eles pelos meios de comunicação, sobretudo os eletrônicos. De todo modo, historiadores ainda discutirão muito a respeito. Fica aqui a percepção telegráfica de uma testemunha interessada.


Texto de André Singer, na Folha de São Paulo

Admiro quem escreveu sobre outro assunto que não política em 2016

Admiro os que conseguiram, em meio ao amargo ano de 2016, escrever sobre outro assunto que não a política e a economia. Não foi meu caso.
Acabei dragada, refém dos Renans, Cunhas, Geddeis, Trumps e afins, sem saber para onde, querendo ou não, o mundo vai caminhar. Suspeito que para a pior.
Este foi o ano em que a ficção tomou uma surra da realidade.
Filmes, canções, peças, novelas e poemas se provaram ingênuos, inócuos, diante da violência do noticiário. Fomos todos Clara, de "Aquarius", limpando o pó dos vinis da estante, em meio aos tubarões de Boa Viagem.
Gastei horas e horas de 2016 escutando análises de especialistas, na tentativa de ter uma opinião formada. Joguei a toalha numa terça-feira besta de dezembro, ao zapear pelos canais de TV e dar com o programa "Entre Aspas", de Mônica Waldvogel, na Globonews.
A jornalista intermediava o debate entre dois doutores em economia, que divergiam sobre o impacto da aprovação do teto de gastos públicos na vida do cidadão.
Com os olhos arregalados, Pedro Paulo Bastos, da Unicamp, rebatia o diagnóstico do colega José Márcio Camargo, da PUC, de que corríamos o risco de nos transformar numa Venezuela, caso não freássemos o volume de benesses do governo, que atingiu a estratosfera durante o governo Dilma Rousseff.
Indignado, Bastos argumentava que as medidas de restrição penalizam apenas as classes mais baixas, seguindo a cartilha falida de Joaquim Levy, que levara o país à depressão. Segundo o especialista, não havia outra saída para nos tirar do lodaçal que não o aporte maciço de capital do Estado.
Camargo o olhava sereno, como se estivesse diante do equívoco em pessoa, respondendo que aquela fora a política adotada pela presidente afastada, política essa que nos levara ao fundo do poço.
Fui dormir convencida de que ambos estavam cobertos de razão. Todas as alternativas falharam. A economia não é uma ciência exata. Contra ou a favor, Fora Temer ou Dentro Temer, liberal ou pró-Estado, a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum.
Só Shakespeare para dar conta do paradoxo. Só Patti Smith cantando "A Hard Rain's A-Gonna Fall", de Bob Dylan, na cerimônia de entrega do Nobel 2016; só uma boa tragédia grega para transcender o absurdo.
Me curei do "Entre Aspas" sentada entre os 40 espectadores do teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, onde Andréa Beltrão encena uma adaptação de "Antígona", de Sófocles.
Diz o coro: "Muitas sa?o as coisas prodigiosas sobre a Terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio homem. [...] Tudo lhe e? possível. Na criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual em vão tenta escapar. Outro, seu próprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende".
A morte e o outro. A crise e a impossibilidade de diálogo entre as diversas crenças sociais, políticas, econômicas e religiosas.
Termino o ano na escuridão, elegendo a arte de farol.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Há momentos na história em que o riso está do lado do poder

Na década de 1990, um grupo de cineastas dinamarqueses intitulado Dogma foi responsável por alguns dos melhores filmes da época. Eles se propunham a fazer filmes de baixo orçamento, com câmera na mão, parcos recursos de edição e grande sensibilidade para a crítica social.
Um dos mais impressionantes dessa leva se chamava "Festen" ("Festa de Família", em sua versão brasileira), de Thomas Vinterberg. Tratava-se da história de uma festa em homenagem ao 60º aniversário do patriarca de uma família.
Organizada em um castelo, a festa conta com grande número de convivas e atividades. Mas, logo no primeiro discurso, um dos filhos acusa o pai de tê-lo abusado sexualmente e de sua irmã, que se suicidara recentemente. Durante todo o filme, as revelações se seguirão. No entanto, há algo de absolutamente extraordinário: apesar das acusações e do mal-estar, a festa nunca para.
Dessa forma, Vinterberg forneceu uma das melhores figurações do que é uma sociedade autoritária. Pois uma sociedade autoritária não é simplesmente aquela submetida à brutalidade da autoridade patriarcal e de sua exceção soberana que a coloca, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Há ainda um elemento talvez até mesmo mais aterrador. Uma sociedade autoritária é aquela na qual a festa nunca para.
De fato, não importa a violência que aconteça, as injustiças que se acumulam, as demandas que brutalmente serão silenciadas, a festa nunca pode parar, as brincadeiras deverão continuar, as atividades deverão ser celebradas, mesmo que elas já tenham perdido o sentido.
De certa forma, essa era uma das ideias políticas mais importantes do grupo de filósofos conhecido como Escola de Frankfurt. Ela consistia em lembrar que nossas sociedades pretensamente liberais mostravam uma forma muito peculiar de autoritarismo, algo diferente do clássico modelo "lei e ordem", no qual a repressão e o silêncio eram a lei.
Na verdade, nossas sociedades haviam constituído um modelo que misturava deliberadamente violência policial e frivolidade midiática, cenas de agressão estatal contra grupos vulneráveis e notícias sobre como "Foto de J-Lo e Drake juntos aumenta rumor de romance", informações sobre como o governo de São Paulo diminuiu o número de horas/aula de história juntas à descoberta impressionante de que "Jennifer Lawrence não quer mais tirar fotos com fãs".
Nas dinâmicas atuais de controle, política e economia libidinal andam juntas em uma mistura animada por violência estatal e indústria cultural.
De fato, independentemente do que está a acontecer, o recado principal é: a festa não pode parar.
A tristeza e indignação devem ser compensadas com a certeza de que "a vida continua e deve continuar", de que, apesar das dificuldades, não devemos deixar de celebrar.
Por isso, melhor seria lembrar como o riso nem sempre está do lado da crítica. Há momentos em que o riso está do lado do poder, em que a festa está do lado da ordem.
As pessoas são controladas por meio de suas formas de diversão, que moldam seus modos de sensação e seus circuitos de afetos.
Quem organiza a maneira com que você se diverte controla os fundamentos do poder. Assim, o autoritarismo pode se impor não através da censura e da proibição, técnicas bastante primárias. Ele acaba por se impor através de algo muito mais sofisticado: a irrelevância da verdade, a proliferação da frivolidade, a anestesia de quem não consegue mais sentir urgência alguma.
Nesse sentido, a verdadeira imposição disciplinar não é o antigo "Não reclame diante da crise, trabalhe". Não, você pode apelar a outra técnica, muito mais afeita aos engenheiros de relações públicas e às agências de publicidade, a saber: "Não reclame diante da crise, divirta-se".
De preferência, faça como os EUA, tenha um presidente que acabou de sair de um programa de TV e de patrocinar concursos de Miss Universo enquanto decretava falência quatro vezes para socializar suas perdas, ou, se não der, tenha um prefeito animador de festas do jet set. No mais, feliz ano novo.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Romances históricos, como 'Crônicas Saxônicas', guiam produções de TV

Exibida no canal de TV a cabo Fox Action e com três temporadas disponíveis na Netflix, a série "Vikings" (2013-) narra a saga de dois famosos guerreiros dinamarqueses, Ragnar Lothbrok e seu irmão Rollo. Eles teriam iniciado a sequência de incursões dos nórdicos nas ilhas britânicas.
A série se passa poucos anos antes do início das "Crônicas Saxônicas" do escritor britânico/americano Bernard Cornwell, 72. Embora não seja vinculado aos livros de Cornwell, o seriado claramente foi inspirado por ele e pela série de livros e de TV "O Último Reino".
O país que se chamou depois Inglaterra era então constituído por quatro reinos –Wessex, Nortúmbria, Mércia e Ânglia Oriental. O rei Alfredo, o Grande, o pioneiro na unificação do país, é um personagem-chave das "Crônicas" e aparece como bebê em "Vikings". Cornwell é hoje, sem a menor dúvida, o principal autor dos chamados "romances históricos". O termo é no mínimo curioso.
"O romance histórico, como eu descobri com alguma preocupação depois de ter escrito dois ou três, pertence a um gênero desprezado", escreveu o autor inglês Patrick O'Brian (1914-2000), pseudônimo de Richard Patrick Russ.
O'Brian produziu uma obra de 20 livros entre 1970 e 1999 contando as aventuras de um capitão da Marinha Real britânica durante as Guerras Napoleônicas, Jack Aubrey, e seu amigo médico, naturalista e espião, Stephen Maturin (um 21º livro, incompleto, foi publicado postumamente em 2004, com o curioso título "21", já que o autor ainda não tinha criado um).
Dois dos romances serviram de base ao filme de Peter Weir de 2003, "Mestre dos Mares - O Lado Mais Distante do Mundo", com Russell Crowe no papel de Aubrey.
Os livros foram classificados como os "melhores romances históricos já escritos" pelo escritor e editor da revista "American Heritage", Richard Snow, em resenha de capa do suplemento literário do jornal "The New York Times" em 1991.
Apesar de todo esse pedigree, O'Brian reclamava do desprezo –em geral acadêmico– pelo romance histórico.
A categoria só foi reconhecida como um gênero "menor" da literatura no século 20, o mesmo que aconteceu com o romance policial.
CLÁSSICOS MUNDIAIS
Mas é algo que existia há mais tempo, e antes era tratado com louvor. Dois exemplos bastam. O escritor russo Lev Tolstói (1828-1910) escreveu "Guerra e Paz", sobre a campanha de Napoleão na Rússia em 1812.
O escritor americano James Fenimore Cooper (1789-1851) escreveu "O Último dos Moicanos" baseado em fatos da guerra entre britânicos, franceses e índios de 1754-1763.
Os dois livros são clássicos da literatura mundial. Mas não costumam ser chamados de "romances históricos", apesar de seus autores escreverem sobre fatos que aconteceram antes de nascerem. Tecnicamente, deveriam ser.
Cornwell sem dúvida é um dos autores mais produtivos do gênero. Produziu cinco séries de romances, além de outros com temas individualizados. A mais conhecida narra as aventuras de um soldado britânico nas Guerras Napoleônicas, Richard Sharpe, também transformada em filmes de TV.
Talvez o detalhe mais interessante nos seus livros seja uma nota final, um posfácio, comentando as fontes históricas da obra, e as "licenças" que ele tomou para produzir sua narrativa. Fica clara a enorme erudição do autor, dando confiança ao leitor de que muitos dos fatos e detalhes correspondem ao melhor conhecimento existente sobre o tema.
Cornwell é admirador daquele que pode ser considerado o pioneiro entre os romancistas históricos do século 20, o escritor inglês Cecil Scott Forester (1899-1966).
Forester escreveu 11 livros da série "Hornblower", um comandante naval durante as Guerras Napoleônicas, publicados de 1937 a 1967. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill leu alguns desses livros ao longo de uma travessia do Atlântico para encontrar o presidente americano Franklin Roosevelt, durante a Segunda Guerra. Churchill adorou os livros.
Cornwell também. Mas, em vez imitar Forester criando um outro capitão da Marinha Real –como foi feito por autores como O'Brian, Dudley Pope ou Victor Suthren, Richard Woodman ou James Nelson–, ele preferiu criar um personagem diferente. Assim surgiu Sharpe, protagonista de 24 romances. Históricos.


Reportagem de Ricardo Bonalume Neto, na Folha de São Paulo

Lembranças da velha Aleppo: o horror é um companheiro que não nos deixa

Era um agosto no começo dos anos 1960, e a gente estava descendo, de carro, de Milão até Aqaba, na beira do mar Vermelho.
"A gente" significa meus pais, meu irmão e eu. Era uma das viagens pelas quais meu pai nos levava, para conhecer o mundo. Fomos várias vezes para o Oriente Médio, uma vez até a Índia, outra pela África do Norte inteira etc.
Ele tinha uma confiança ilimitada nos nossos automóveis sucessivos e nele mesmo como motorista. Além disso, era como se acreditasse que nada de ruim pudesse nos acontecer porque a intenção da viagem era justa e respeitosa.
Carregava consigo uma malinha cheia de remédios para nós, caso adoecêssemos, e também para os eventuais doentes que encontrássemos. Com isso, durante suas férias, ele se tornava uma espécie de clínico geral sem fronteiras, ambulante.
Não consigo reconstruir o ano exato dessa lembrança. Era antes de 1967 (me lembro que Jerusalém era em parte jordaniana). E devia ser depois de 1961, porque, como você vai ver, a Síria estava num período de grande instabilidade (o começo dos anos 1960).
Entramos no país vindo da Turquia. Nossos vistos funcionaram na fronteira. Mas, antes de chegar a Aleppo, fomos parados por uma blitz na estrada (aliás, deserta). Os responsáveis pela blitz eram armados, mas à paisana –eles usavam uma braçadeira preta, como revolucionários que não tivessem tido tempo de mandar fazer seus uniformes.
Meu pai, resistente na luta armada menos de 20 anos antes, contra o fascismo italiano, não devia achar isso exótico. Ele já tinha feito parte de um "exército" sem uniforme, com apenas um lenço azul no pescoço.
Os homens armados tentaram nos mostrar que nossos carimbos de ingresso não valiam nada para eles. Meu pai, calmo e cordial, conseguiu convencê-los a colocar o próprio carimbo deles numa outra página de nossos passaportes. Tudo isso sem falar uma língua comum.
Enfim, não nos mataram. E o resto da viagem pela Síria foi assim, com paradas periódicas por homens que se indignavam à vista do carimbo anterior.
Aleppo, onde ficamos dois ou três dias, estava nas mãos do Exército oficial. Havia metralhadoras atrás de sacos de areia diante dos edifícios públicos. E, digo para que viva a lembrança, a cidade era lindíssima.
Na primeira noite, depois do toque de recolher, ficamos na varanda do hotel, tomando chá de menta. Ouviam-se tiros de armas automáticas, mas nunca suficientemente próximos para que a gente se refugiasse no hall ou nos quartos.
O garçom que nos servia falava francês, e meu pai lhe perguntou o que estava acontecendo na cidade e no país, explicando que a gente tinha entrado na Síria naquele dia, sem saber de nada"...
Era um homem idoso, de cabelos brancos, com uma barriga jovial –lembro-me mais dele do que da Cidadela ou da Grande Mesquita de Aleppo. Ele olhou para o meu pai e disse, como se fosse uma resposta: "Je suis Georges, l'arménien" –eu sou Georges, o armênio. Ele e meu pai se encararam um tempo, com simpatia, e não houve mais perguntas.
Depois de um tempo, com aquele barulho de armas automáticas que não parava na distância, eu perguntei por que o fato de Georges ser armênio implicava que ele não pudesse nos dizer o que estava acontecendo. Meu pai tinha uma extraordinária qualidade: nunca dourava pílulas para crianças. Se a realidade era horrível, problema de todos e problema das crianças também.
Conclusão, ficamos lá, naquele restaurante da Aleppo deserta durante o toque de recolher, tomando o chá de menta que era trazido por Georges sorridente e escutando a história do genocídio armênio. Georges, pela idade que aparentava, era um sobrevivente: devia ter chegado à Síria menino, nas marchas da morte, com mulheres e crianças morrendo de fome, de estupro e de maus tratos pelo deserto.
Talvez, concluiu meu pai, dizendo que ele é armênio, ele quisesse nos dizer que ele já pagou seu tributo ao horror do mundo. Que nada mais o toca mesmo, porque ele já morreu. Naquela noite, não dormi. Fiquei escutando os tiros.
Não me esqueci de Georges e das palavras do meu pai. O que prova que ele tinha razão: as viagens nos ensinavam coisas. Pensei em Georges vendo este vídeo sobre as crianças de Aleppo.
E desculpe, leitor, se este meu cartão de ano novo é piegas. Também, você pode achar que Aleppo é longe. Para mim é perto, como a voz do meu pai naquela noite. Desejo a todos, mundo afora, um ano melhor.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.

O livro do ano que você não leu

Lamentei não encontrar em nenhuma lista de livros do ano aquele que é, sem dúvida, um dos mais importantes lançamentos de 2016 no Brasil: "História Sociopolítica da Língua Portuguesa" (Parábola Editorial), de Carlos Alberto Faraco.
Professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, da qual foi reitor, Faraco é um dos expoentes da sociolinguística brasileira. Isso quer dizer que se situa no campo oposto ao dos gramáticos normativos. Está interessado em compreender a língua pelo que ela é e não por aquilo que um comitê de sábios –quase todos portugueses– um dia decretou que deveria ser.
A sociolinguística é o saber dominante nas faculdades de letras há décadas, mas fora delas vive cercada de mal-entendidos. A incompreensão de sua mensagem –que é culturalmente vital e arejada, em oposição ao beletrismo lusófilo– é em parte um mal autoinfligido. Quando o rigor analítico dá lugar ao ativismo populista, abre-se a porta para a confusão.
Ao contrário do que grande parte da população imagina, a sociolinguística não hostiliza os falantes da norma culta nem defende o vale-tudo gramatical. O problema é que, tendo ouvido cantar um galo distante, seus militantes de rede social fazem exatamente isso.
O novo livro de Faraco é uma boa demonstração do que um olhar sociolinguístico rigoroso consegue elucidar sobre a língua. Entre ensaios acadêmicos e títulos didáticos e paradidáticos, o autor tem uma obra vasta, mas nunca havia empreendido um esforço de tamanho fôlego.
Com 400 páginas, "História Sociopolítica da Língua Portuguesa" é um livro de grande concisão. Tanto pelo que abrange cronologicamente, desde a ocupação da Península Ibérica pelos romanos, quanto pela multiplicidade de pontos de vista que convoca e examina ao longo do caminho.
Não me consta que algum dia tenha sido sequer tentada uma consolidação tão abrangente de estudos históricos sobre nossa língua. Só a bibliografia ocupa 18 páginas em letra miúda.
Mitos de raízes profundas são arrancados sem dó. Um exemplo de cascata em que eu acreditava: a de que a língua geral dos bandeirantes, um idioma mestiço de base tupi, foi extinta pelo Marquês de Pombal com uma canetada. Observa Faraco que uma crença como essa trai a "excessiva confiança que a cultura de raiz ibérica costuma pôr em textos legais".
As razões para que o idioma do colonizador tenha se imposto de forma tão categórica sobre as línguas gerais brasileiras –que eram duas, a paulista e a amazônica– são bem mais complexas. Tão complexas que não cabem aqui. Que fique a lacuna como estímulo à leitura do livro.
Não se trata de uma história pop, cheia de peripécias e colorido humano, como as que os canadenses Jean-Benoît Nadeau e Julie Barlow lançaram recentemente sobre o francês e o espanhol. Mesmo relatando episódios em que um floreio narrativo cairia bem, Faraco é um acadêmico de sobriedade invencível.
A boa notícia é que o livro passa longe do jargão. Ninguém precisa ser linguista para acompanhar a história de um dos idiomas mais importantes do mundo desde o nascimento até os desafios que enfrenta hoje –entre eles, os baixos índices socioeconômicos dos países que o falam e o fato de Brasil e Portugal ainda lutarem para vencer resistências paroquiais e coordenar ações comuns.


Texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Coletânea 'Montevideanos' mostra sutilezas da alma uruguaia

Coletânea 'Montevideanos' mostra sutilezas da alma uruguaia

O dia depois de Aleppo

Bashar al-Assad, ditador da Síria, celebra nestes dias sua vitória em Aleppo. Ele colocará nesta cidade as bandeiras do regime e seus próprios retratos, como os tantos outros que enfeitam o restante do território que controla.
É um importante avanço estratégico. Aleppo era a maior cidade da Síria quando a guerra começou, em 2011, e tornou-se um emblema do conflito. Mas é difícil imaginar que Assad celebre hoje em Damasco. Ele deve se lembrar de que os embates civis tão cruentos têm violentas consequências.
Seu pai, Hafez al-Assad, enfrentou também a seu tempo revoltas no país. Ele reprimiu a dissidência em Hama, em 1982, com a mesma estratégia: um cerco. As mortes, estimadas pelo jornalista britânico Robert Fisk em 20 mil, deixaram uma fratura social – reaberta nos últimos anos.
Assad lida, ademais, com uma população que compartilha, entre seus mitos fundadores, a história de Karbala. Ele sabe que uma guerra civil pode marcar uma comunidade não apenas por décadas, mas também por séculos.
A Batalha de Karbala, travada em 680 no que é hoje o Iraque, foi um dos episódios fundamentais da história do Oriente Médio. Uma "fitna", como é dito em árabe, uma "divisão". Em resumo: disputavam àquela época os partidários de um califado por eleição, que são conhecidos hoje como "sunitas", e os defensores de que o governo fosse hereditário, os "xiitas". Essa história está detalhada no livro "After the Prophet", de Lesley Hazleton.
Hussein, neto do profeta Maomé, se recusava a seguir o califa Yazid. Ele foi cercado por um exército em Karbala, ao lado de seus seguidores. Havia mulheres e crianças entre eles. Os soldados lhes impediram a fuga, lhes negaram água. Um a um, eles morreram ali. Hussein foi decapitado.
A morte da comitiva de Hussein, estimada em pouco mais de cem pessoas, não resolveu a crise política. Pelo contrário. O episódio tornou-se símbolo da opressão e agravou as rachaduras na comunidade muçulmana. O martírio de Hussein é até hoje celebrado todos anos pela população xiita.
É uma história que ainda habita as superfícies na região. Subhi al-Tufayli, que foi secretário-geral da milícia libanesa xiita Hizbullah entre 1989 e 1991, recentemente comparou Aleppo e Karbala em um inflamado discurso. O cerco atual é, disse, tão catastrófico quanto o medieval.
As comparações são limitadas e não dão conta, por exemplo, da barbárie também cometida pelos rebeldes armados em Aleppo. Mas a memória tem função exemplar: recorda as partes envolvidas no conflito de que as 100 mil pessoas mantidas sob cerco, entre a fome e a chuvarada de bombas, vão cobrar o seu preço. Ainda que seja só nas páginas da história.


Texto de Diogo Bercito na Folha de São Paulo

Doria não liga para vidas salvas com redução da velocidade nas marginais

"Meu marido é médico e trabalha em uma das UTIs de um grande hospital público de São Paulo. As vítimas de alguns dos acidentes de trânsito mais espetaculares que aparecem nos telejornais vão parar lá. Pessoas trituradas, aos pedaços, loucas de dor, que os profissionais de saúde vão juntando, cuidando. Muitas não resistem, outras sobrevivem mas jamais serão autônomas de novo; raramente partem sem sequelas.
Ao contrário de quem vê a notícia do acidente na TV, admira o carro esmagado, diz "que horror" e vai fazer outra coisa, meu marido e a equipe da qual ele faz parte encaram a pessoa e sua família, dão as notícias mais atrozes, tomam decisões e assumem responsabilidades sobre tratamentos. Muito além da técnica, a equipe testemunha o impacto dos acidentes naquelas vidas. Um mar de sofrimento.
Algumas pessoas ficam lá por horas, outras por semanas. Por vezes, meu marido explode de estresse e de tristeza. Todo profissional da saúde passa por isso.
O Brasil é o quinto país no mundo em mortes por acidentes de trânsito. Somente em 2013, o SUS registrou 170.805 internações por acidentes de trânsito. Os médicos do sistema público, obrigados a gerir a escassez, assistem ao gasto evitável de mais de R$ 200 milhões por ano no atendimento às vitimas– e ainda assim sabemos que, por falta de recursos, elas não recebem toda a assistência que precisariam ou merecem.
Só com motociclistas, nos últimos seis anos, as internações hospitalares no SUS tiveram um crescimento de 115% e o custo com o atendimento a esses pacientes, de 170,8%. Por isso, quando vimos que a futura gestão municipal assegurou que vai mesmo cumprir a promessa de aumentar os limites de velocidade em São Paulo, nós dois choramos.
Num devaneio, eu desejei que os marqueteiros de Doria fossem responsáveis pela acolhida de acidentados nos hospitais públicos de São Paulo e que eles fossem encarregados de dar as notícias às famílias. Porque em São Paulo ainda estão longe de entender que trânsito é uma questão de saúde pública, custeada pelo contribuinte brasileiro.
Qualquer estudo sabe que todo acidente torna-se mais grave em maior velocidade, mas a politicagem de quinta categoria dificulta uma evolução cultural imprescindível: ficar uma hora a mais no trânsito é desagradável; não chegar em casa, ou chegar com sequelas, é bem mais. E custa caro, de todas as formas, para todos nós."
*
Reproduzo acima o desabafo de uma amiga, com o qual concordo 100%. É inacreditável o tamanho do retrocesso a que vamos assistir a partir de janeiro, com o aumento da velocidade nas marginais. A diminuição das velocidades nessas vias, determinada pelo prefeito Fernando Haddad (PT) na metade do ano passado, gerou uma redução de quase 50% nos acidentes com mortes.
Nos 15 meses anteriores à nova regra, registraram-se 77 ocorrências desse tipo. Nos 15 meses seguintes, o número despencou para 39. Casos de atropelamentos fatais não ocorrem na marginal Tietê há mais de um ano e meio.
Mas nem todas as evidências do sucesso dessa medida e nem os apelos de quem está linha de frente dessa carnificina evitável foram suficientes para conter a demagogia do prefeito eleito. A partir de 25 de janeiro, as máximas nas pistas expressas e centrais retornarão aos patamares anteriores –90 km/h e 70 km/h, respectivamente. Na faixa direita da pista permanece o atual limite de 50 km/h; nas demais, subirá para 60 km/h.
O Estado de São Paulo fez história ao sancionar em 2009 a Lei Antifumo, que baniu o tabaco dos ambientes fechados de uso coletivo, que depois foi seguida pelo resto do país. Em termos de saúde pública, a redução da velocidade máxima das vias de São Paulo se mostrou um sucesso semelhante. A capital paulista tinha tudo para protagonizar uma mudança nacional, mas resolveu virar as costas para o êxito obtido até agora.
É recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) que vias urbanas jamais permitam velocidade acima 50 km/h. Segundo a organização, 47 mil brasileiros morrem todos os anos em razão de acidentes nesses locais. A OMS estima em R$ 27 bilhões (1% do PIB) o custo dessa carnificina no Brasil.
João Doria não está sendo um irresponsável sozinho. O seu padrinho político, o governador Geraldo Alckmin (PSDB), será corresponsável e, ao mesmo tempo, financiador da barbárie que se avizinha. Afinal, é dos cofres estaduais que sai a maior parte dos recursos que sustentam o Hospital das Clínicas de São Paulo, instituição que atende a maioria dos acidentados de São Paulo.
Também é bom lembrar que, em última instância, Doria também poderá ser responsabilizado pelas futuras mortes que ocorrerem nas vias com velocidade aumentada. Se as vidas até agora poupadas não tiveram força suficiente para impedir esse retrocesso, quem sabe o peso das futuras ações criminais e indenizatórias tenha mais sucesso.


Texto de Cláudia Collucci, na Folha de São Paulo

Calmon apimenta vatapá ao dizer que faltam juízes na delação da Odebrecht

Eliana Calmon, ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça, é uma "chef" diletante. Seu livro "Receitas Especiais" está na décima edição. Ela diz que faz seus pratos por instinto mas não foi o instinto que a levou a jogar um litro de pimenta na festejada colaboração da Odebrecht com a Justiça.
Falando ao repórter Ricardo Boechat, Eliana Calmon disse que "delação da Odebrecht sem pegar o Judiciário não é delação". De fato, no grande vatapá da empreiteira não entrou juiz: "É impossível levar a sério essa delação caso não mencione um magistrado sequer".
Sua incredulidade expõe uma impossibilidade estatística. A Odebrecht lembrou de tudo. Listou o presidente Michel Temer e Lula, nove ministros e ex-ministros, 12 senadores e ex-senadores, quatro governadores e ex-governadores, 24 parlamentares, três servidores, dois vereadores e um empresário, todos ligados ao Executivo e ao Legislativo ou à política. Do Judiciário, nada.
Eliana Calmon, como a Odebrecht, é baiana. Como corregedora-geral do Conselho Nacional de Justiça, ela foi uma ferrabrás. Antes do surgimento da Lava Jato, a ministra prendeu empreiteiros, brigou com colegas e denunciou a rede de filhos de ministros de tribunais superiores que advogam em Brasília.
Aposentou-se, em 2014 concorreu ao Senado pelo PSB da Bahia e foi derrotada. (Durante a campanha, ela e o partido informaram que receberam doações legais da Odebrecht, da Andrade e da OAS.)
Entre 2011 e 2015, a Odebrecht esteve na maior disputa societária em curso no país. Nelas enfrentaram-se as famílias de Norberto Odebrecht, o fundador do grupo, e de Vitor Gradin, seu amigo e sócio, com 21% de participação no grupo.
Quando Norberto e Vitor se associaram, estipularam no acordo de acionistas que, havendo conflitos, eles deveriam ser decididos por arbitragens. No comando da empreiteira, Marcelo Odebrecht decidiu reorganizar a empresa afastando a família Gradin, oferecendo-lhe R$ 1,5 bilhão por sua parte. O sócio achava que ela valia pelo menos o dobro.
Os Gradin foram à Justiça pedindo arbitragem, uma juíza deu-lhes razão, mas sua sentença foi anulada liminarmente por um desembargador baiano. Quando os Gradin arguíram sua suspeição, ele declarou-se vítima de "gratuita ofensa" e declarou-se suspeito "por motivo de foro íntimo".
O litígio se arrastou e em plena Lava Jato, em dezembro de 2015, o STJ deu razão aos Gradin. Em pelo menos um episódio a Odebrecht mobilizou (inutilmente) sua artilharia extrajudicial.
Se nenhum executivo da Odebrecht falou do Judiciário, pode ter sido porque nada lhe perguntaram. Existiriam motivos funcionais para que não fossem feitas perguntas nessa direção.
Vazamentos astuciosos como o de um suposto depoimento envolvendo o ministro José Antonio Toffoli dão a impressão de que, mesmo não havendo referências ruidosas, existe algum arquivo paralelo, sigiloso e intimidatório.
A declaração de Calmon a Boechat apimentou o vatapá. O corregedor Nacional de Justiça, ministro João Otavio de Noronha, estaria disposto a abrir uma investigação nas contas da campanha da ex-colega (ambos estranharam-se quando conviviam no tribunal).
Essa briga será boa e a vitória será da arquibancada.


Texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo

Carrie Fisher morreu após segunda parada cardíaca no hospital, diz site

De acordo com o site americano TMZ, Carrie Fisher sofreu uma segunda parada cardíaca que levou à sua morte nesta terça-feira (27), aos 60 anos.
A atriz estava internada e respirava por aparelhos na UTI do hospital Ronald Reagan UCLA Medical Center desde sexta-feira (23), quando sofreu uma parada cardíaca durante um voo de Londres para Los Angeles.
Ela foi atendida por paramédicos imediatamente após o pouso nos Estados Unidos, mas seu estado de saúde não melhorou. Segundo o TMZ, a família da atriz cogitava desligar os aparelhos antes de Fisher sofrer a segunda parada cardíaca.
Ela deixou uma filha, a também atriz Billie Lourd, e a mãe, a estrela dos anos 1950 Debbie Reynolds.
"Carrie era única, brilhante, original. Engraçada e emocionalmente destemida. Viveu a sua vida com coragem", declarou Harrison Ford, par romântico da atriz nos filmes da saga Star Wars. "Vamos todos sentir a sua falta."


Reprodução da Folha de São Paulo

Raphael Montes usa canibalismo para fazer crítica à violência social em livro

Se 2016 fosse um livro, quem seria o autor? "Raphael Montes", ri o escritor carioca, citando a si mesmo enquanto termina um hambúrguer vegetariano em um restaurante do centro paulistano.
Seu terceiro romance, "Jantar Secreto", busca traduzir a angústia e o fracasso de quem hoje tem seus 25 anos -mais ou menos a idade de Montes, nascido em 1990. É a faixa mais atingida pela crise econômica no país: cerca de 25% estão desempregados, segundo o IBGE.
"Tenho muitos amigos engenheiros, advogados bem formados e que estão desempregados precisando de grana. Crescemos ouvindo 'estude que você vai ser alguém'. E não é mais assim", ele diz.
Não é o caso dele, que fez sucesso precoce em livros como "O Vilarejo" (Suma de Letras) e "Dias Perfeitos" (Companhia das Letras) -este último, vendeu 24 mil exemplares desde 2014, bem fora da curva da ficção nacional.
Também foi contratado como roteirista da Globo -colaborou com o seriado de terror "Supermax" e desenvolve um novo projeto para 2018. E ainda trabalha na adaptação de "O Vilarejo" para cinema.
"Jantar Secreto" conta a história de quatro amigos que saem do interior do Paraná para tentar a vida no Rio. Em dado momento, entram em desespero financeiro e a solução (sanguinolenta) é promover jantares milionários em que servem carne humana.
"Eles se mudam para uma cidade grande com a promessa de que o Brasil seria o país do futuro, com a Copa e a Olimpíada. Eles saem da faculdade no momento em que tudo foi por água abaixo."
O narrador é o arrogante Dante; formado em administração, quer se tornar um empreendedor de sucesso. O autor escolheu datar sua história: há capítulos inteiros na forma de conversa em grupo de WhatsApp, viagens de Uber e menções a hits do último álbum da Rihanna.
Dante acaba enriquecendo (e levando uma vida de noitadas, sexo casual e drogas) graças aos jantares canibais.
O tempero está em como o quarteto consegue os corpos e o que os leva a organizar os convescotes; mas o tira-gosto é a reflexão sobre ética que Montes levanta.
Vegetariano há dois anos,ele quis refletir sobre o paladar. "Será que ele tudo perdoa e é desprovido de limites morais e éticos?"
Se a questão animal não torna esse romance policial um libelo do vegetarianismo, ela é, por outro lado, um viés de leitura inevitável. Há passagens chocantes sobre como seria o abate humano que são baseadas em documentários sobre sofrimento animal.
O canibalismo em "Jantar Secreto" funciona sobretudo como uma metáfora hiperbólica; é também uma crítica social à violência que mata os mais pobres (adivinhe quem morre em postos policiais para abastecer a máfia de corpos?), ponderando sobre o desprezo da vida humana pela alta sociedade, que lambe os beiços saboreando a carne de desaparecidos.


Reportagem de Gabriela Sá Pessoa para a Folha de São Paulo

sábado, 24 de dezembro de 2016

Natal é dia de maldade

Farei algo maravilhoso neste Natal: sumir. Não falarei com ninguém. Mentira, falarei com amada mamãe, mas será rápido e por ligação de longa distância. Se nessa vidinha você só tem quatro amigos suportáveis e dois parentes inevitáveis, por que, exatamente, cisma de amar metade da população nessa época do ano? A roupa quente do Papai Noel num calor de 40 graus é a metáfora perfeita da nossa sinceridade nesses dias.
Onde está escrito que, em meio ao trânsito insuportável pra ver enfeites, lojas abarrotadas de gente cansada e irritada, reuniões com olhos semicerrados que imploram "pelo amor de Deus acaba esse ano" e putaria louca na política nacional, você será capaz de amar (sendo que nunca nem gostou), incondicional e desenfreadamente, toda uma manada de humanos facilmente desprezados no resto dos meses?
Se você não suporta aquela tia invejosa da Brasilândia e aquela amiga de infância, engraçadíssima, que virou contadora, 364 dias por ano, por que acredita que será capaz de verdadeiramente se enternecer por esses desgraçados no Natal? Se a cunhada arrogante da Vila Nova e o primo que tatuou um palhaço metaleiro na batata da perna não têm nada a ver com você por toda uma existência, por que essa situação mudaria apenas porque é o período em que as famílias se juntam nas novelas?
Ah, mas deve ser o último Natal de bisa Zuleide. Então cancela a viagem, cancela a festa com os amigos, cancela a felicidade, cancela o sexo, a masturbação, o seriado sozinho e tranquilo em casa. Cancela sua vida toda e qualquer prazer possível para uma noite tão encantada. Você nunca tolerou mais de sete minutos ouvindo bisa Zuleide falar asneiras entrecortadas por muxoxos, você unha a palma da mão quando ela começa com seu discurso reaça, racista e muquirana, mas apenas porque bisa Zuleide está morrendo (mentira! Ela está morrendo há 12 anos! Essa é a desculpa que sua mãe dá pra unir aquelas 67 pessoas que você não suporta –e nem sua mãe suporta– numa sala sem ar condicionado e assentos suficientes) você vai se arrumar e encarar esse tormento chamado "forçar afeição por pessoas que cheiram empada e nem tem empada na festa".
Mas se você nunca se importou com a vida de bisa Zuleide, que preocupação é essa com a morte da velha? E daí que é o último Natal dessa mala que maltrata a empregada e o porteiro e negou amor ao seu avô que negou amor ao seu pai que até hoje é um cara meio esquisitão, o que deixa sua mãe um tanto infeliz e faz com que ela azucrine a sua vida? É tudo culpa dessa moribunda da bisa Zuleide. As crianças preferindo dengue a ter que beijar a face molenga e suada da bisa que tem buço e hálito azedo. E nem herança ela vai deixar. Faça um favor a você nesse Natal: mande a Zuleide, a sua enorme culpa católica, os 78 parentes que você gosta infinitamente menos do que da sua cachorra e aqueles 72% do Facebook que você deu "hide" à merda. PARE DE SE CULPAR, pare de procurar dentro de você a bondade, a generosidade, o espírito natalino. Não, você não é obrigado a gostar das pessoas apenas porque elas fazem arroz com passas e têm o seu tipo sanguíneo. Perseguir a bondade é a única crueldade real que podemos fazer com nós mesmos.
Você não é bonzinho e tudo bem. Sim! Tudo bem! Olha que libertador! Neste Natal eu te desejo menos culpa e muita maldade.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Sartori e o Natal do funcionário público

Acabou a primeira fase do massacre na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Foram quatro noites de caça ao funcionário público.
A oposição e parte da base rebelada (PDT) lutaram para salvar algo.
Perderam. Até quando ganharam.
O governador José Ivo Sartori fez sua escolha: fazer o funcionalismo pagar mais (contribuição à previdência) para que o grande empresariado pague menos (impostos). Governo dos ricos para os ricos e pelos ricos. Plutocracia.
Até a última hora o governo reteve a entrega ao Ministério Público, por decisão judicial, da caixa preta das isenções fiscais, que ultrapassam em três vezes o déficit anual do Estado. Uma bolsa-rico protegida a sete chaves.
Resumo do massacre: o funcionalismo levou bombas na praça da Matriz, teve helicóptero voando baixo com arma apontada para os manifestantes, viu seus empregos serem extintos, junto com suas instituições, e foi culpado pela crise. Em lugar de mostrar a realidade dos incentivos a empresários, inclusive os criados pelo PT, o governo Sartori sentou-se em cima do material sagrado. Quando algum deputado governista foi à tribuna, contrariando a estratégia de vencer em silêncio, foi para defender o sacrifício dos funcionários e os benefícios dos grandes empresários.
É Natal. Confundiram o dia. O funcionalismo foi tratado como judas.
As economias reais serão pífias. A questão é ideológica.
Quantas vezes o líder do governo subiu à tribuna para defender o pacote?
A ideia marqueteira era dividir o sacrifício entre todos. Menos os empresários.
A PEC dos duodécimos dos poderes, que entregaria o quinhão do MP e do judiciário conforme a receita efetiva e não segundo a ficção do orçamento, não passou. Era jogo para a torcida. A oposição caiu na armadilha.
Resultado: empresários e judiciário saíram ilesos.
Funcionalismo comum pagou a conta.
Um plano equilibrado seria assim: poderes recebem pela receita efetiva; excessos do funcionalismo são cortados; empresários perdem 30% dos incentivos que recebem; combate à sonegação é intensificado ao máximo; dados de incentivos são mostrados à luz do dia (nada pode ser escondido da sociedade na era da transparência).
Ah, mas aí eles vão embora para outros Estados?
Conclusão: são predadores e parasitas que se beneficiam da guerra fiscal.
No plano nacional, Michel Temer soltou um pacote para rasgar parte da CLT.
Sem condições morais de permanecer no poder, abalado por delações na Lava Jato, Temer oferece à mídia e aos empresários as reformas dos sonhos deles: desconstrução da legislação trabalhista e trabalho até a morte.
Adeus aposentadoria integral pelo teto baixo do INSS.
Se precisar, para ficar no poder, Temer oferecerá a revogação da Lei Áurea.
Sendo assim, está apto a continuar no poder.
Feliz Natal!

Reprodução do Blogue do Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo

Belém recebe mais fiéis para o Natal, mas perde moradores cristãos

Belém recebe mais fiéis para o Natal, mas perde moradores cristãos

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Minha cartinha aberta ao Dallagnol

Meu caro colega Deltan Dallagnol,
 
"Denn nichts ist schwerer und nichts erfordert mehr Charakter, als sich in offenem Gegensatz zu seiner Zeit zu befinden und laut zu sagen: Nein."
 
(Porque nada é mais difícil e nada exige mais caráter que se encontrar em aberta oposição a seu tempo e dizer em alto e bom som: Não!)
 
Kurt Tucholsky
 
Acabo de ler por blogs de gente séria que você estaria a chamar atenção, no seu perfil de Facebook, de quem "veste a camisa do complexo de vira-lata", de que seria "possível um Brasil diferente" e de que a hora seria agora. Achei oportuno escrever-lhe está carta pública, para que nossa sociedade saiba que, no ministério público, há quem não bata palmas para suas exibições de falta de modéstia.
 
Vamos falar primeiro do complexo de vira-lata. Acredito que você e sua turma são talvez os que têm menos autoridade para falar disso, pois seus pronunciamentos têm sido a prova mais cabal de SEU complexo de vira-lata. Ainda me lembro daquela pitoresca comparação entre a colonização americana e a lusitana em nossas terras, atribuindo à última todos os males da baixa cultura de governação brasileira, enquanto o puritanismo lá no norte seria a razão de seu progresso. Talvez você devesse estudar um pouco mais de história, para depreciar menos este País. E olha que quem cresceu nas "Oropas" e lá foi educado desde menino fui eu, hein... talvez por isso não falo essa barbaridade, porque tenho consciência de que aquele pedaço de terra, assim como a de seu querido irmão do norte, foram os mais banhados por sangue humano ao longo da passagem de nossa espécie por este planeta. Não somos, os brasileiros, tão maus assim, na pior das hipóteses somos iguais, alguns somos descendentes dos algozes e a maioria somos descendentes das vítimas.
 
Mas essa sua teorização de baixo calão não diz tudo sobre SEU complexo. Você à frente de sua turma vão entrar na história como quem contribuiu decisivamente para o atraso econômico e político que fatalmente se abaterão sobre nós. E sabem por que? Porque são ignorantes e não conseguem enxergar que o princípio fiat iustitia et pereat mundus nunca foi aceita por sociedade sadia qualquer neste mundão de Deus. Summum jus, summa iniuria, já diziam os romanos: querer impor sua concepção pessoal de justiça a ferro e fogo leva fatalmente à destruição, à comoção e à própria injustiça.
 
E o que vocês conseguiram de útil neste País para acharem que podem inaugurar um "outro Brasil", que seja, quiçá, melhor do que o vivíamos? Vocês conseguiram agradar ao irmão do norte que faturará bilhões de nossa combalida economia e conseguiram tirar do mercado global altamente competitivo da construção civil de grandes obras de infraestrutura as empresas nacionais. Tio Sam agradece. E vocês, Narcisos, se acham lindinhos por causa disso, né? Vangloriam-se de terem trazido de volta míseros dois bilhões em recursos supostamente desviados por práticas empresariais e políticas corruptas. E qual o estrago que provocaram para lograr essa casquinha? Por baixo, um prejuízo de 100 bilhões e mais de um milhão de empregos riscados do mapa. Afundaram nosso esforço de propiciar conteúdo tecnológico nacional na extração petrolífera, derreteram a recém reconstruída indústria naval brasileira. Claro, não são seus empregos que correm riscos. Nós ganhamos muito bem no ministério público, temos auxílio-alimentação de quase mil reais, auxilio-creche com valor perto disso, um ilegal auxílio-moradia tolerado pela morosidade do judiciário que vocês tanto criticam. Temos um fantástico plano de saúde e nossos filhos podem frequentar a liga das melhores escolas do País. Não precisamos de SUS, não precisamos de Pronatec, não precisamos de cota nas universidades, não precisamos de bolsa-família e não precisamos de Minha Casa Minha Vida. Vivemos numa redoma de bem estar. Por isso, talvez, à falta de consciência histórica, a ideologia de classe devora sua autocrítica. E você e sua turma não acham nada de mais milhões de famílias não conseguirem mais pagar suas contas no fim do mês, porque suas mães e seus pais ficaram desempregados e perderam a perspectiva de se reinserirem no mercado num futuro próximo. Mas você achou fantástico o acordo com os governos dos EEUU e da Suíça, que permitiu-lhes, na contramão da prática diplomática brasileira, se beneficiarem indiretamente com um asset sharing sobre produto de corrupção de funcionários brasileiros e estrangeiros. Fecharam esse acordo sem qualquer participação da União, que é quem, em última análise, paga a conta de seu pretenso heroísmo global e repassaram recursos nacionais sem autorização do Senado. Bonito, hein? Mas, claro, na visão umbilical corporativista de vocês, o ministério público pode tudo e não precisa se preocupar com esses detalhes burocráticos que só atrasam nosso salamaleque para o irmão do norte! E depois fala de complexo de vira-lata dos outros!
 
O problema da soberba, colega, é que ela cega e torna o soberbo incapaz de empatia, mas, como neste mundo vale a lei do retorno, o soberbo também não recebe empatia, pois seu semblante fica opaco, incapaz de se conectar com o outro.
 
A operação de entrega de ativos nacionais ao estrangeiro, além de beirar alta traição, esculhambou o Brasil como nação de respeito entre seus pares. Ficamos a anos-luz de distância da admiração que tínhamos mundo afora. E vocês o fizeram atropelando a constituição, que prevê que compete à Presidenta da República manter relações com estados estrangeiros e não ao musculoso ministério público. Daqui a pouco vocês vão querer até ter representação diplomática nas capitais do circuito Elizabeth Arden, não é?
 
Ainda quanto a um Brasil diferente, devo-lhes lembrar que "diferente" nem sempre é melhor e que esse servicinho de vocês foi responsável por derrubar uma Presidenta constitucional honesta e colocar em seu lugar uma turba envolvida nas negociatas que vocês apregoam mídia afora. Esse é o Brasil diferente? De fato é: um Brasil que passou a desrespeitar as escolhas políticas de seus vizinhos e a cultivar uma diplomacia da nulidade, pois não goza de qualquer respeito no mundo. Vocês ajudaram a sujar o nome do País. Vocês ajudaram a deteriorar a qualidade da governação, a destruição das políticas inclusivas e o desenvolvimento sustentável pela expansão de nossa infraestrutura com tecnologia própria.
 
E isso tudo em nome de um "combate" obsessivo à corrupção. Assunto do qual vocês parecem não entender bulhufas! Criaram, isto sim, uma cortina de fumaça sobre o verdadeiro problema deste Pais, que é a profunda desigualdade social e econômica. Não é a corrupção. Esta é mero corolário da desigualdade, que produz gente que nem vocês, cheios de "selfrightousness", de pretensão de serem justos e infalíveis, donos da verdade e do bem estar. Gente que pode se dar ao luxo de atropelar as leis sem consequência nenhuma. Pelo contrário, ainda são aplaudidos como justiceiros.
 
Com essa agenda menor da corrupção vocês ajudaram a dividir o País, entre os homens de bem e os safados, porque vocês não se limitam a julgar condutas como lhes compete, mas a julgar pessoas, quando estão longe de serem melhores do que elas. Vocês não têm capacidade de ver o quanto seu corporativismo é parte dessa corrupção, porque funciona sob a mesma gramática do patrimonialismo: vocês querem um naco do estado só para chamar de seu. Ninguém os controla de verdade e vocês acham que não devem satisfação a ninguém. E tudo isso lhes propicia um ganho material incrível, a capacidade de estarem no topo da cadeia alimentar do serviço público. Vamos falar de nós, os procuradores da república, antes de querer olhar para a cauda alheia.
 
Por fim, só quero pontuar que a corrupção não se elimina. Ela é da natureza perversa de uma sociedade em que a competição se faz pelo fator custo-benefício, no sentindo mais xucro. A corrupção se controla. Controla-se para não tornar o estado e a economia disfuncionais. Mas esse controle não se faz com expiação de pecados. Não se faz com discursinho falso-moralista. Não se faz com o homilias em igrejas. Se faz com reforma administrativa e reforma política, para atacar a causa do fenômeno é não sua periferia aparente. Vocês estão fazendo populismo, ao disseminarem a ideia de que há o "nós o povo" de honestos brasileiros, dispostos a enfrentar o monstro da corrupção feito São Jorge que enfrentou o dragão. Você e eu sabemos que não existe isso e que não existe com sua artificial iniciativa popular das "10 medidas" solução viável para o problema. Esta passa pela revisão dos processos decisórios e de controle na cadeia de comando administrativa e pela reestruturação de nosso sistema político calcado em partidos que não merecem esse nome. Mas isso tudo talvez seja muito complicado para você e sua turma compreenderem.
 
Só um conselho, colega: baixe a bola. Pare de perseguir o Lula e fazer teatro com PowerPoint. Faça seu trabalho em silêncio, investigue quem tiver que investigar sem alarde, respeite a presunção de inocência, cumpra seu papel de fiscal da lei e não mexa nesse vespeiro da demagogia, pois você vai acabar ferroado. Aos poucos, como sempre, as máscaras caem e, ao final, se saberá que são os que gostam do Brasil e os que apenas dele se servem para ficarem bonitos na fita! Esses, sim, costumam padecer do complexo de vira-lata!
 
Um forte abraço de seu colega mais velho e com cabeça dura, que não se deixa levar por essa onda de "combate" à corrupção sem regras de engajamento e sem respeito aos costumes da guerra.



Texto de Eugênio Aragão, no Jornal GGN

Com pedido de investigação, defesa de Dilma reage a vale-tudo na Lava Jato

A etapa é de testes. Em todos os setores com envolvimento, direto ou indireto, nos últimos acontecimentos. Cada qual dando passos além do seu limite legal, ético ou moral, para ver até onde consegue elevar o seu poder sobre as demais instituições.
O que antes podia ser abuso, leviandade e prepotência, passou a constituir uma luta de cabeças transtornadas pela sua "autoridade", ou de grupos com ganância de poder. Fase que se insinuou com a desvairada flor carnívora apresentada pelo procurador Deltan Dallagnol, com 14 pétalas venenosas emitindo flechas acusatórias a um nome no centro –contra o qual, Lula, o obcecado acusador imaginava estar apresentando provas, mas só trouxe palavras alheias e compradas por liberdade, ou ilações suas. Um delírio televisivo.
Passados dois anos de vale-tudo e alguns meses de luta por predomínio institucional, esse estado de coisas começa, enfim, a enfrentar reações de fato. No devido lugar: o Judiciário. Trata-se agora de requerimento da defesa de Dilma Rousseff, ao Ministério Público Eleitoral, para que o ex-presidente da Andrade Gutierrez, Otávio Azevedo, seja ao menos investigado. Há um esforço, bastante numeroso, para que prevaleça a explicação de que Azevedo equivocou-se em afirmações, mas não cometeu falso testemunho. A atenuação também tem base falsa.
Otávio Azevedo mentiu. Ao acusar, em sua delação, a campanha de Dilma de receber da Andrade Gutierrez R$ 1 milhão ilegais, Azevedo elaborou a falsidade, com o pormenor de um encontro entre ele, Edinho Silva e outro petista, para acertar a doação. Atitude de mentiroso profissional e, parece claro, de espertalhão fazendo mais agrados premiáveis aos promotores e ao juiz da Lava Jato.
A defesa de Dilma apresentou ao TSE comprovante do pagamento de R$ 1 milhão. Não foi em dinheiro, foi em cheque. Nominal: para Michel Temer. O tal encontro com Edinho Silva e seu companheiro não existiu. Convocado ao TSE, Azevedo alegou equívoco. Mas equívoco não inclui encontros não havidos, pedidos não feitos, nem nomes de pessoas cuja citação as complicaria.
Mais simples, e não menos sugestivo, um outro equívoco atesta a condição de mentiroso de Otávio Azevedo. Verificada a divergência entre o valor declarado pelo depoente e o documentado, como dinheiro da Andrade Gutierrez destinado a Aécio Neves, veio o aumento: é, não foram R$ 12,5 milhões, foram R$ 19 milhões. Mais 50% que ele subtraíra, no seu jogo de dedo duro para um lado e proteção para o outro.
O empenho em negar os falsos testemunhos de Otávio Azevedo decorre do possível risco de serem anuladas as suas delações premiadas. Foi a punição que Sergio Moro e vários promotores da Lava Jato mencionaram bastante, defendendo-se do perigo de premiarem com a liberdade acusações mentirosas. O precedente não avaliza a confiança da Lava Jato, nem sua atitude posterior.
O doleiro Alberto Youssef, delinquente desde a adolescência, foi importante na grande bandalheira do Banestado, o banco do Estado do Paraná. Ganhou a liberdade, já naquele caso, sob a condição de não voltar ao crime, ou não teria mais direito a premiação. Voltou e ficou, até ser preso pela Lava Jato. Está em casa desde novembro. Sérgio Moro foi juiz no primeiro caso.
Renan Calheiros testou o Supremo. Luiz Fux, do Supremo, interveio no Congresso, em um teste sem precedente no regime democrático. O Ministério Público, por meio da Lava Jato, testa a Constituição nos seus gloriosos capítulos 5º e 6º, dos deveres e direitos. E por aí vão outros testes. Otávio Azevedo põe Sergio Moro e a Lava Jato em teste.
Michel Temer testa a resistência do país e a tolerância dos cidadãos.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

A formação da elite brasileira patina e condena o país ao atraso

A qualidade da formação da elite de um país diz muito sobre a posição relativa do mesmo no sistema internacional. Quando bem formados, os quadros de elite conseguem cumprir a função social que lhes cabe: apontar rumos para toda a sociedade. Quando despreparados, eles atrapalham o desenvolvimento da coletividade à qual, em tese, deveriam estar servindo.
Cada país inventa seu próprio modelo de formação. As Grandes Écoles da França recrutam talentos para formar uma tecnocracia nacional. Oxford e Cambridge garantem o caminho às altas rodas de quem vem de escolas excelentes. As Ivy Leagues americanas selecionam com base em mérito e em privilégio. Índia, Colômbia e México treinam seus melhores quadros no mundo anglo-saxão, ao passo que a China o faz em casa.
A natureza dessa formação ajuda a explicar se a elite governante de um país será mais nacionalista ou cosmopolita, e mais aberta ou fechada a quem não vem de berço de ouro.
No passado, o Brasil já treinou suas elites em Portugal e fez de um punhado de escolas politécnicas e de direito seu celeiro de talentos. As escolas militares também tiveram seu quinhão.
Nos últimos 30 anos de vida democrática, a formação da elite brasileira viveu uma grande transformação. A expansão acelerada da rede de universidades públicas, a política de cotas, a provisão de crédito educacional e o boom de faculdades privadas criaram oportunidades antes inimagináveis para cidadãos interessados em compor as rodas que governam o país.
No entanto, o resultado deixa muito a desejar. Mesmo quem dispõe de dinheiro para investir é mal formado. Por um lado, nas instituições de ponta há pouca ou nenhuma ênfase na aquisição de habilidades e competências profissionais.
Assim, egressos dos melhores lugares apresentam dificuldade com o uso da língua oral e escrita, além de empacar em operações quantitativas básicas. Da redação de um simples e-mail formal à capacidade de debater um tema controverso em público, o processo de formação da elite brasileira patina. Via de regra, os hábitos de leitura e a capacidade de interpretar ideias complexas são lamentáveis.
Por outro lado, mesmo nos estratos mais altos da sociedade, a educação oferecida continua sendo obstinadamente alheia ao resto do mundo. O entrincheiramento nas fronteiras nacionais é a tônica dominante, produzindo quadros cuja ignorância a respeito daquilo que ocorre alhures é surpreendente na era da globalização. É o tipo de prática que condena o país ao atraso.
Se quisermos participar de maneira menos marginal no mundo em que vivemos, será necessário mudar.



Texto de Matias Spektor, na Folha de São Paulo