Bill Gates, o bonzinho
A entrevista de Bill Gates a Raul Juste Lores, na Folha de S.Paulo, deverá inspirar um imenso cortejo de bajuladores brasileiros, que logo irão apontar o primeiro bilionário da internet como exemplo a ser seguido.
Não faltam pessoas prontas para elogiar os muito ricos e bem sucedidos por qualquer coisa – de preferência estrangeiros, que alimentam o conhecido complexo de vira-latas dos críticos de nossa vidinha social.
Bill Gates conta na entrevista que já doou grande parte de sua fortuna pessoal a entidades filantrópicas e agora pretende convencer seus pares do mundo inteiro a fazer a mesma coisa.
Sua ideia é que o pessoal que representa 1% (ou menos) da população mundial, mas controla 99% (ou mais) da riqueza, tenha bom coração e entregue 95% para a caridade.
Não custa reconhecer que, em matéria de utopias, já tivemos ideias mais ousadas.
Warren Buffet, bilionário do mesmo patamar que Bill Gates, foi mais coerente quando disse que os ricos pagam pouco imposto – e havia chegado a hora de o Estado cobrar mais.
Bill Gates conta na entrevista que já doou grande parte de sua fortuna pessoal a entidades filantrópicas e agora pretende convencer seus pares do mundo inteiro a fazer a mesma coisa.
Sua ideia é que o pessoal que representa 1% (ou menos) da população mundial, mas controla 99% (ou mais) da riqueza, tenha bom coração e entregue 95% para a caridade.
Não custa reconhecer que, em matéria de utopias, já tivemos ideias mais ousadas.
Warren Buffet, bilionário do mesmo patamar que Bill Gates, foi mais coerente quando disse que os ricos pagam pouco imposto – e havia chegado a hora de o Estado cobrar mais.
Buffet também faz doações para instituições de caridade, mas reconhece a diferença entre uma coisa e outra.
A cobrança do imposto dos ricos, eliminado há mais de 30 anos nos EUA pelos republicanos, sempre foi uma forma de a sociedade cobrar dos bilionários uma retribuição pelos recursos acumulados.
A cobrança do imposto dos ricos, eliminado há mais de 30 anos nos EUA pelos republicanos, sempre foi uma forma de a sociedade cobrar dos bilionários uma retribuição pelos recursos acumulados.
Um instrumento da República para contribuir para a igualdade entre os cidadãos.
Isso porque nenhuma fortuna é obra de um indivíduo isolado. É um produto social, onde entram consumidores, investidores, clientes – e todo um conhecimento acumulado ao longo da história, que é patrimônio da humanidade.
Isso porque nenhuma fortuna é obra de um indivíduo isolado. É um produto social, onde entram consumidores, investidores, clientes – e todo um conhecimento acumulado ao longo da história, que é patrimônio da humanidade.
No caso específico das fortunas da era tecnológica, não custa recordar que as inovações vieram acompanhadas de práticas monopolistas condenáveis e mesmo iniciativas para impedir o crescimento de concorrentes que foram parar na Justiça. Basta lembrar a disputa entre o sistema Windows e o Linux, não é mesmo? Ou entre o Internet Explorer e seus adversários.
Num artigo do início da década passada, o New York Times definia a internet como uma colônia dos Estados Unidos.
Pioneiros da internet argumentam que essas práticas ajudaram a tornar o acesso à rede de computadores mais caro, mais difícil e mais exclusivo.
Num artigo do início da década passada, o New York Times definia a internet como uma colônia dos Estados Unidos.
Pioneiros da internet argumentam que essas práticas ajudaram a tornar o acesso à rede de computadores mais caro, mais difícil e mais exclusivo.
Escrevo isso para dizer que as fortunas contemporâneas não são o capítulo final de um conto de fadas envolvendo um empreendedor com grandes ideias e muita perseverança num mundo de preguiçosos, decrépitos e pouco inteligentes. Há iniciativa, pode até haver genialidade, mas há luta, confronto, jogo de interesses e esquemas de poder.
Basta doar uma moeda de 1 real num semáforo para perceber uma coisa. Além do benefício imediato que este gesto pode causar – inegável em várias situações, pernicioso em outras –, essa moeda representa uma transferência de poder. Ainda que por uns minutos, aquele sujeito que recebeu o donativo deve gratidão ao doador. Irá lhe dizer palavras reverentes, respeitosas.
É por isso que há mais de 2 000 anos a Igreja Católica tornou-se a maior instituição de caridade que se conhece. Não vamos negar os benefícios que essa atividade da Igreja trouxe para muitas pessoas. Nem vamos esquecer o papel de padres e bispos no combate a regimes tirânicos, como a ditadura militar brasileira.
Mas basta visitar os tesouros do Vaticano para entender uma outra mensagem. Se distribuiu bondades, patrocinou artes e cultura, a Igreja também acumulou riqueza e muito poder. Financiou guerras, organizou exércitos, abençoou a colonização e fechou os olhos para tantos crimes em troca do direito de catequizar as almas do Novo Mundo. Em 1964, estava lá – abençoando tanques e baionetas.
Isso porque o principal compromisso de uma instituição desta natureza é com ela mesma, com sua preservação e expansão.
Com todas as distâncias guardadas, é razoável observar que nossos filantropos pertencem à mesma escola e filosofia. A questão é a autopreservação.
Doadores milionários são os patrocinadores das principais ONGs no mundo. Dirigem sua atividade, escolhem seus dirigentes e definem, conforme suas opções ideológicas, quais causas serão estimuladas e quais serão combatidas ou marginalizadas.
Sua fortuna serve, assim, como força política. Têm um poder de pressão acima de qualquer cidadão comum. Identificadas – corretamente ou não – a partir de causas generosas, que envolvem questões necessárias, têm uma legitimidade única.
Fazem uma atividade que, em outras situações seriam identificadas como simples atuação de lobistas – mas agora são chamados de ativistas. Entram em parlamentos, são recebidas por ministros, disputam verbas públicas. Fazem política sem precisar comprar o debate público nem pedir votos – porque seu sustento vem de fora, de donativos que os bilionários adoram sustentar. Como são privadas, não precisam prestar contas – nem fazer balanços políticos.
A expansão das ONGs nas últimas décadas coincide com um desmanche do Estado de Bem-Estar Social nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos de Ronald Thatcher e Margaret Reagan. O corte de verbas públicas – inspirado pelo fim dos impostos para os mais ricos – foi tão grande que criou novos bolsões de pobreza e abismos entre os cidadãos.
Serviços que eram públicos se tornaram privados – ao alcance de quem poderia pagar por eles – reservando-se poucas migalhas para quem estava nos degraus inferiores da pirâmide. Os pensionistas da Previdência Pública eram tratados como marajás e estigmatizados.
Nessa situação de emergência social, era preciso chamar as boas almas (sim, boas almas, porque elas existem) da classe média para olhar pelo destino dos pobres.
Foi neste período que as ONGs se expandiram, ganharam recursos e adeptos, como a face generosa de um processo perverso.
Empresas “generosas” contratavam funcionários que eram obrigados a prestar serviços “voluntários” em suas horas de folga.
Cidadãos de alma caridosa foram convencidos de que “mais vale acender uma vela na noite do que maldizer a escuridão” – e nunca mais se perguntaram a origem de tudo aquilo.
Dá para entender que ninguém é bonzinho nesta história, não é mesmo?
Basta doar uma moeda de 1 real num semáforo para perceber uma coisa. Além do benefício imediato que este gesto pode causar – inegável em várias situações, pernicioso em outras –, essa moeda representa uma transferência de poder. Ainda que por uns minutos, aquele sujeito que recebeu o donativo deve gratidão ao doador. Irá lhe dizer palavras reverentes, respeitosas.
É por isso que há mais de 2 000 anos a Igreja Católica tornou-se a maior instituição de caridade que se conhece. Não vamos negar os benefícios que essa atividade da Igreja trouxe para muitas pessoas. Nem vamos esquecer o papel de padres e bispos no combate a regimes tirânicos, como a ditadura militar brasileira.
Mas basta visitar os tesouros do Vaticano para entender uma outra mensagem. Se distribuiu bondades, patrocinou artes e cultura, a Igreja também acumulou riqueza e muito poder. Financiou guerras, organizou exércitos, abençoou a colonização e fechou os olhos para tantos crimes em troca do direito de catequizar as almas do Novo Mundo. Em 1964, estava lá – abençoando tanques e baionetas.
Isso porque o principal compromisso de uma instituição desta natureza é com ela mesma, com sua preservação e expansão.
Com todas as distâncias guardadas, é razoável observar que nossos filantropos pertencem à mesma escola e filosofia. A questão é a autopreservação.
Doadores milionários são os patrocinadores das principais ONGs no mundo. Dirigem sua atividade, escolhem seus dirigentes e definem, conforme suas opções ideológicas, quais causas serão estimuladas e quais serão combatidas ou marginalizadas.
Sua fortuna serve, assim, como força política. Têm um poder de pressão acima de qualquer cidadão comum. Identificadas – corretamente ou não – a partir de causas generosas, que envolvem questões necessárias, têm uma legitimidade única.
Fazem uma atividade que, em outras situações seriam identificadas como simples atuação de lobistas – mas agora são chamados de ativistas. Entram em parlamentos, são recebidas por ministros, disputam verbas públicas. Fazem política sem precisar comprar o debate público nem pedir votos – porque seu sustento vem de fora, de donativos que os bilionários adoram sustentar. Como são privadas, não precisam prestar contas – nem fazer balanços políticos.
A expansão das ONGs nas últimas décadas coincide com um desmanche do Estado de Bem-Estar Social nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos de Ronald Thatcher e Margaret Reagan. O corte de verbas públicas – inspirado pelo fim dos impostos para os mais ricos – foi tão grande que criou novos bolsões de pobreza e abismos entre os cidadãos.
Serviços que eram públicos se tornaram privados – ao alcance de quem poderia pagar por eles – reservando-se poucas migalhas para quem estava nos degraus inferiores da pirâmide. Os pensionistas da Previdência Pública eram tratados como marajás e estigmatizados.
Nessa situação de emergência social, era preciso chamar as boas almas (sim, boas almas, porque elas existem) da classe média para olhar pelo destino dos pobres.
Foi neste período que as ONGs se expandiram, ganharam recursos e adeptos, como a face generosa de um processo perverso.
Empresas “generosas” contratavam funcionários que eram obrigados a prestar serviços “voluntários” em suas horas de folga.
Cidadãos de alma caridosa foram convencidos de que “mais vale acender uma vela na noite do que maldizer a escuridão” – e nunca mais se perguntaram a origem de tudo aquilo.
Dá para entender que ninguém é bonzinho nesta história, não é mesmo?
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