quinta-feira, 23 de junho de 2022

Paranoia de Bolsonaro destrói Amazônia e aponta indígenas como ameaça


Conheci o limite entre a dita civilização e a borda da floresta Amazônica quando cruzei o estado de Mato Grosso num bimotor, a caminho do Parque Nacional do Xingu, onde se realizariam as filmagens de "Kuarup", de Ruy Guerra.

O efeito Philishave sobre a cobertura verde já era chocante em 1989. Uma vastidão de terra careca, subitamente interrompida pela frondosa parede de mata nativa da reserva. Sete propriedades gigantescas de capim estéril faziam fronteira com o parque, servindo ao gado e à especulação fundiária. Uma delas, me disse o piloto, pertencia ao Vaticano, mas não sei se era verdade.

Por dois meses e meio vivi acampada na vizinhança das aldeias dos yawalapiti e dos camaiurá, à beira do rio Tuatuari, afluente do grande Xingu. A cachoeira Salto das Andorinhas, única locação distante do parque, ficava localizada a duas horas de voo a oeste, nas cercanias da modesta cidade de Aripuanã.

Aripuanã parecia um cenário de faroeste, com casas de madeira simples e uma população de descendentes de alemães louros de olhos azuis, trazidos do Sul pelo projeto de ocupação da região, implementado pelo governo militar nos anos 1970. A velha ideia de que a imigração europeia ensinaria aos bugres e ribeirinhos o verdadeiro sentido de civilidade, algo que nunca ocorreu.

Aripuanã nada plantava e nada colhia. Uma camada espessa de pó de serragem vermelha recobria os casebres e as ruas de terra batida, vinda das incontáveis serrarias locais. Sem outra opção de sustento, os camponeses paranaenses, gaúchos e catarinenses ali chegados, viviam de derrubar árvores de madeira de lei para transformá-las em tábuas.

Todos os males da exploração predatória já estavam presentes na Aripuanã de 30 anos atrás: violência, prostituição, grilagem, tráfico, garimpo ilegal e conflitos com as populações indígenas. Uma tragédia que só fez crescer em escala ao longo das décadas. Aripuanã, hoje, deve ter se transformado num polo irradiador de cupins grileiros, madeireiros e garimpeiros, jagunços, empresários e políticos mantidos pela devastação.

Compreendi a real dimensão da guerra travada nesses rincões graças a Vladimir Brichta, meu parceiro de profissão. Anos atrás, num intervalo da gravação de "Tapas e Beijos", ele me mostrou fotografias de um dia normal de labuta de seu irmão biólogo, funcionário do Ibama.

Numa imagem, Mauricio Brichta posava ao lado de um helicóptero, vestido com uniforme camuflado de combate, fuzil em punho e colete à prova de balas. Noutra, ele sobrevoava uma região desmatada por maquinário pesado. As duas últimas exibiam destroços de tratores e caminhões detonados por granadas, para garantir que não servissem mais à destruição.

Quando, em maio de 2019, assisti ao vídeo de Jair condenando a operação do Ibama contra retirada de madeira ilegal na Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, me lembrei de Mauricio. Até hoje sinto indignação. Como pode um presidente tomar partido de uma indústria clandestina da degradação, investindo contra um exército de cientistas engajados na defesa das nossas riquezas naturais?

Na paranoia nacionalista do capitão do Planalto, um ex-garimpeiro amador, os povos indígenas representam uma ameaça à nossa soberania, e a boiada de traficantes de Ricardo Salles, um modelo de desenvolvimento para o país. É de chorar.

O conceito de Gaia e o aquecimento global, sejamos justos, ainda não existiam na ditadura, mas nunca é tarde para que se corrijam erros passados. Somos uma nação fundada pelo extrativismo, mas, em tempos de consciência ecológica, urge que as Forças Armadas se unam ao que resta do desmonte das instituições de proteção ao meio ambiente, para barrar o avanço acelerado da bandidagem sobre as áreas de preservação.

Chico Mendes, Dorothy Stang, Maxciel Pereira dos Santos, não é de hoje que a coação a ambientalistas e defensores dos povos da floresta termina em morte. Os assassinatos brutais do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, nesse momento, evidenciam a predileção do falso Messias pela barbárie.

Amarildo da Costa de Oliveira e seus comparsas podem até ter, supostamente, agido por conta própria, mas a solidão, o abandono e a precariedade com que Bruno Pereira realizava seu trabalho é obra consciente de um anti-Estado.

O que mais precisa acontecer para que parte das forças de segurança, a Faria Lima e os que deliram com o fantasma do comunismo desembarquem desse navio pirata à deriva? Arthur Lira, Paulo Guedes, general Heleno, general Braga Netto e Tereza Cristina, que país sem lei vocês sonham deixar para seus netos?


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário