Quando minha avó Memé me levou pro teatro, parecia uma ideia de jerico —ou, como dizíamos na época, um programa de índio, que era uma expressão que a gente usava pra designar programas que só mesmo o homem branco tinha saco pra fazer.
O programa era "O Avarento", com Jorge Dória. O ator octogenário estava seriíssimo no cartaz da peça. Não parecia comédia. Ao abrir das cortinas, os atores usavam perucas e roupas de época. Que tragédia, pensei.
Até que entra o Dória —e passa a desancar os colegas, um por um. "Você parece o feto de um sapo molhado." A plateia inteira ia abaixo. E eu também, tanto que lembro de várias falas. "Eu te odeio desde que você nasceu. Só não entendo por que é que você nunca gostou de mim." Minha avó tinha crises de riso. Aquele homem não parecia um ator. Parecia um ser humano em estado puro, e aquilo era hipnotizante.
Até que, do nada, no meio de um diálogo, uma parede do cenário desabou, deixando descoberta toda a coxia esquerda. Ao invés de interromper a peça, Dória começou a improvisar, entre crises de riso do elenco. Enquanto falava, chutava as paredes de compensado. Chamou a produtora pro palco. "Onde foi que vocês compraram isso? Na 25 de Março?"
A partir dali a peça descambou pra um texto hilário sobre as condições precárias do teatro no Brasil, sem que nunca saísse do mote principal —afinal a peça era "O Avarento", então vinha a calhar. Ao final, a plateia urrava como quem tinha visto um milagre, enquanto o elenco agradecia, sobre os destroços.
Nunca me esqueci daquela noite. Duvido que alguém tenha se esquecido. Como eu tive sorte, pensava, por ter visto a peça no dia fatídico em que o cenário caiu. Que bela metáfora pra profissão: o país desabando e os atores tendo que improvisar sobre os destroços.
Outro dia encontrei a atriz Glaucia Rodrigues, que interpretava Elisa na montagem, e perguntei se ela se lembrava da noite em que o cenário caiu. "Difícil dizer, o cenário caía toda noite." Demorei a entender. "Acho que o Doria pedia pro contrarregra derrubar a parede."
Primeiro fiquei decepcionado. Vivi uma fraude. Minha noite inesquecível tinha acontecido centenas de noites (a peça ficou em cartaz por cinco anos). Depois fiquei ainda mais grato ao Dória e àquele elenco que me enganou. Que delícia de profissão, essa, que consiste em fazer noites comuns parecerem únicas.
Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo.
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