Quando eu trabalhava com publicidade, mais da metade das pessoas se dizia frustrada e deprimida. Elas queriam mais do que apartamentos idiotas no Itaim, elas queriam abandonar tudo para se dedicar à verdadeira arte. E, meu Deus, como eu fui obrigada a ver nascer (e no mesmo ano morrer) poetas terríveis, cineastas medíocres, cronistas de humor que jamais riam de si mesmos e escritores que arriscavam um romance épico, mas o texto era igualzinho ao que estavam acostumados a fazer para comemorar o Dia da Pizza.
Quando eu trabalhava com roteiros de comédia, mais da metade das pessoas se dizia vendida e perdida. Elas queriam mais do que flats com privada marrom na Zona Sul do Rio de Janeiro, elas queriam abandonar tudo para se dedicar à verdadeira arte. E, meu Deus, como fui obrigada a assistir a dramédias cabeças que não serviam nem para drama e nem para comédia (e, sobre ser cabeça, também lhes faltavam os pés). "Arrisquei uma parada nova aí, fui corajoso, é filme de arte."
A família do roteirista com aquele sorrisinho de compaixão que recalca uma emoção enorme e terrível chamada desprezo. A tia com enxaqueca, a mãe com intestino irritado, o pai sentindo que o joelho vai voltar a inchar. Tudo para não dizer à criança prodígio de 48 anos que ela abriu mão de um ótimo salário, está devendo em dois bancos e demorou uma década e meia para fazer uma bela bosta de filme.
Quando eu trabalhava como escritora de autoficção, mais da metade dos escritores de autoficção virou professor de curso de escrita criativa e gerador de conteúdo para o Instagram. Eles se diziam travados, secos, mortos, corrompidos, degenerados. Claro, não se ensina o que a gente só consegue fazer pois não consegue explicar por que faz!
Cada vez que me forço a falar sobre escrever, me distancio mais e mais do espírito que baixa em mim e escreve (Ainda assim, fiquem espertos: vem aí uma nova turma do meu curso!). Eles queriam mais do que orçar um pacote com dois posts no feed e um carrossel de stories, eles queriam abandonar tudo para voltar a se dedicar à verdadeira arte.
Quando eu trabalhava como podcaster, mais da metade dos podcasters se dizia exausta da própria voz e precisando fazer fono. Eles queriam mais do que uma plateia de desconhecidos lavando louça, eles queriam o quê? O quê? A porra da verdadeira arte.
Quando eu fazia formação em psicanálise, mais da metade dos psicanalistas estava sempre neurótica e doente. Esfalfados de tanto perseguir o que seria a verdadeira arte da escuta ou a verdadeira arte da entrega pessoal para escrever uma monografia.
Quando eu trabalhava em um projeto muito visceral, muito autoral, muito "a escrita mais pura e madura possível", conhecia outras pessoas que também estavam isoladas em chalés nas montanhas tentando fazer o mesmo. Eles queriam mais do que reclamar que ter filhos lhes rouba um tanto de dedicação à verdadeira arte. Eles queriam os filhos. A urgência de enfiar o nariz no cangote de um filho seria a verdadeira arte?
Quando eu trabalhava com a verdadeira arte, depois de pedir demissão de todos os meus empregos, sair de todas as minhas redes sociais, parar com todos os meus cursos, depois de dar minha televisão para meu vizinho, meu iPhone para a minha mãe e meu computador para meu pai, depois de me distanciar de mais da metade das pessoas que eu conhecia (e do que restava da outra metade também), eu descobri: a verdadeira arte, meus amigos, é dormir.
Quando você se sentir um idiota, pense que no Youtube tem um vídeo chamado "Como saber tudo sobre porta-guardanapos" com mais de 30 mil visualizações.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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