Aconteceu em Salvador, mas poderia ter sido em qualquer outra cidade do país —em São Paulo, mais do que nas outras, acho eu.
Um sujeito foi abordado pela polícia de trânsito; não tinha carteira de motorista. Primeiro, nega que estava dirigindo o carro. Depois, pega um caixote de metal, ou coisa parecida, e começa a destruir o próprio carro. Sobe na capota, arrebenta o que consegue, e, segundo diz a notícia, foge do local.
Disse que não ia deixar "o Estado" apreender sua propriedade; preferia inutilizá-la a permitir sua retirada para um depósito.
Não sei nada mais sobre o caso ou sobre o histórico pessoal do seu protagonista. Não especulo, portanto, sobre as preferências eleitorais desse bravo cidadão.
Mas é claro que a cena é um retrato do Brasil bolsonarista, como tantas outras em que regras mínimas de respeito cotidiano são vandalizadas por quem se acha dotado de mais direitos que os demais.
É a socialite que queria entrar sem máscara numa festa e ataca com xingamentos racistas o segurança da boate; é o "homem de bem" que insulta e bate no entregador de pizza; é a horda que se reúne para apedrejar a casa onde mora um menino trans.
Nada disso começou no governo Bolsonaro, como sabemos. Mas o presidente e seus comparsas oficializaram esse tipo de arrogância. O procedimento habitual da brutalidade brasileira era fazer tudo de modo mais envergonhado.
Os generais da ditadura, torturando a valer, diziam que não existia tortura no Brasil. Hoje, os apoiadores do sistema se orgulham do que foi feito.
O grande grito de independência, a validação triunfal da estupidez, ocorreu quando Bolsonaro, ainda deputado, declarou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando a memória de Brilhante Ustra.
Acho que foi esse o momento em que sua candidatura se tornou real e "ganhou sentido" para a maioria fascista que o sustentou e ainda sustenta. "É isso mesmo o que queremos, chega de disfarçar."
Tratava-se de "ser verdadeiro", isto é, rejeitar como hipocrisia qualquer cuidado com negros, sem-teto, homossexuais, indígenas, pessoas que dependiam do Bolsa Família, perseguidos políticos, artistas, jornalistas, familiares de quem foi morto pela pandemia. "E daí?", perguntou Bolsonaro.
O engraçado é que essa forma de ser "verdadeiro" coexistiu e coexiste com a prática recorrente das fake news. É a lição de Trump, negando até hoje ter perdido as eleições e também o método do nosso motorista em Salvador, que não admitiu estar guiando o carro quando foi parado pela blitz.
Soma-se a isso a rejeição ao Estado. Dito assim, parece "bonito", isto é, "libertário", "moderno" ou "liberal". Mas o que esses radicais desejam não é apenas uma menor intervenção do Estado na economia (o que, pensando no Brasil, já é besteira de bom tamanho).
Esse ramerrão liberal é apenas o disfarce, num plano mais amplo, para a rejeição da lei; num plano menor, o que se oculta é a rejeição das normas de boa educação.
Não é à toa que liberais "do mercado", dotados de maneiras impecáveis, não viram nenhum problema em se aliar a milicianos, estelionatários religiosos, invasores de terras indígenas e torturadores. Não é só que não gostam do Estado: não gostam de obedecer à lei.
Ah, mas eles defendiam a luta contra a corrupção. Acho que essa bandeira nunca passou de disfarce para uma raiva maior. Claro que corrupção é um crime, é um roubo, é um ataque ao Estado e ao interesse público. Mas, para eles, qualquer imposto é roubo também.
Na cabeça desses liberais, o direito à propriedade é um direito absoluto. Se o Ibama se mete na minha fazenda, se a Receita Federal exige minha declaração de renda, se eu tenho de pagar uma taxa pela importação do meu Audi e do meu vinho francês, isso é roubo também.
"Ninguém manda em mim": esse suposto grito de liberdade significa que poderei contaminar quem eu quiser com o vírus que escolherei, que posso matar quem eu achar necessário com a arma que comprei com meu dinheiro, e que nenhum guardinha de trânsito irá me impedir de circular com meu carro sem ter carteira de motorista.
Estão querendo estragar a minha festa? Destruo o meu carro, destruo o STF, destruo o sistema eleitoral, destruo a Amazônia, destruo o meu país. Ele é meu —faço com ele o que quiser.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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