Zumbis, vampiros, dinossauros, serial-killers: não é que essa turma esteja com os dias contados. Mas um novo tipo de monstro vai dando as caras no cinema de terror, e há boas razões para isso.
Trata-se do homem. Não o ser humano em geral. Mas ele mesmo, o cisgênero, o hétero normalzão da espécie.
Depois do MeToo e de todas as barbaridades que se noticiam diariamente, no Brasil de Bolsonaro ou em qualquer lugar do mundo, já estava na hora —e o título de um filme ainda para estrear em São Paulo, dirigido por Alex Garland, já diz tudo.
Chama-se simplesmente "Men", ou homens, e conta a história de uma jovem (Jessie Buckley) que aluga uma casa de campo para se recuperar do trauma que sofreu ao se relacionar com um grande babaca (Paapa Essiedu).
O vilarejo é lindo, a casa é encantadora, com lareira e vigas de madeira... Mas coisas estranhas não demoram a acontecer. Um homem meio pré-histórico, sem roupa nenhuma, começa a espiar pela janela. Um policial aparece para atendê-la; um padre também está disponível. Há o dono da casa que ela alugou. Um adolescente puxa conversa.
O chato é que todos são parecidíssimos. Quase iguais —e, simpáticos ou não, põem a heroína em estado de apavorante pressão psicológica. Para fazer jus ao título de filme de terror, "Men" não dispensa um "gran finale" bizarro e nojento a mais não poder.
Mas a mensagem já foi dada: há algo de ameaçador, de maligno, de violento em todo homem. Desde Adão, atribui-se à mulher a culpa pelos desejos que desperta —e, entre o impulso sexual e o impulso de destruição, muitas vezes o limite deixa de ser claro.
É difícil não se solidarizar com o medo da personagem; saí do cinema olhando cada homem com forte desconfiança.
Num registro mais realista e delicado, "A Ilha de Bergman" também me fez ver melhor as insuficiências e defeitos do meu gênero.
No filme de Mia Hansen-Løve, tudo começa bem. O casal vai tirar um tempo de férias numa ilha cinematográfica, o GPS do carro funciona direitinho, a pousada é de bom gosto, o tempo está perfeito. Eles se deitam para descansar um pouquinho. A mulher dá as costas para o marido, e fica em silêncio. O homem demora para perceber; ela deixou de responder aos seus comentários.
"O que é que você tem?", pergunta ele. "Nada, nada." Talvez ele insista. Talvez não; pega um livro ou uma revista. Depois de um tempo, vê que ela está chorando.
Mas como? Não estava tudo perfeito? O marido espera. Estende a mão para tocar no ombro dela. Nada. Ela só se remexe um pouco na cama e arruma o travesseiro.
O marido desiste. "Coisas lá dela." Coisas de mulher. De resto, ele tem assuntos mais interessantes a tratar. O jornal; os emails; algum projeto de trabalho.
Ele é mais velho, tem bastante sucesso profissional, há solicitações de todos os lados, e está quase terminando um negócio que, acha, vai dar muito certo.
Ela é jovem, está empacada num trabalho parecido, e não tem a autoconfiança e a experiência do marido. Está inquieta. Sai para passear de bicicleta, toma banhos de mar, tenta trabalhar um pouco, precisa de alguma coisa, mas não sabe bem o quê.
O marido quer ajudar, mas faz tudo de um jeito masculino; põe tudo em termos de opções, alternativas, pontos objetivos. Quanto mais tenta, mais impaciente parece. Quanto menos ela responde, mais ele se enfia nas próprias atividades —"isto eu sei resolver, agora, as coisas dela... nem ela mesma sabe!".
Contei só o comecinho —aos poucos, as coisas se esclarecem (ou não). Acho que poucos filmes mostram tão bem, e com tão poucas palavras, as diferenças de mentalidade que interferem na vida de um casal "normal" e, feitas as contas, bastante feliz.
Há a sensação de que alguma coisa se perdeu, de que o "verdadeiro amor" estava em outro lugar e em outro momento da vida, a ideia de que seria preciso apagar tudo o que já foi feito e recomeçar o roteiro a partir do zero...
Aos olhos da diretora Mia Hansen-Løve, é provável que tudo isso seja mais forte numa personagem feminina, enquanto ele, o maridão, não dá tanta bola para o problema.
Pode bem ser; de minha parte, acho que sou bem pouco romântico. Mas tenho de dizer também que vibrei com um grande momento de amor do filme —talvez um dos beijos mais legais que já vi no cinema. E é o homem que tomou a iniciativa.
Não é o caso de perdermos as esperanças, portanto. Mas, se eu fosse mulher, pensaria muito antes de me aproximar do sexo oposto.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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