domingo, 26 de junho de 2022

A verdadeira arte


Quando eu trabalhava com publicidade, mais da metade das pessoas se dizia frustrada e deprimida. Elas queriam mais do que apartamentos idiotas no Itaim, elas queriam abandonar tudo para se dedicar à verdadeira arte. E, meu Deus, como eu fui obrigada a ver nascer (e no mesmo ano morrer) poetas terríveis, cineastas medíocres, cronistas de humor que jamais riam de si mesmos e escritores que arriscavam um romance épico, mas o texto era igualzinho ao que estavam acostumados a fazer para comemorar o Dia da Pizza.

Quando eu trabalhava com roteiros de comédia, mais da metade das pessoas se dizia vendida e perdida. Elas queriam mais do que flats com privada marrom na Zona Sul do Rio de Janeiro, elas queriam abandonar tudo para se dedicar à verdadeira arte. E, meu Deus, como fui obrigada a assistir a dramédias cabeças que não serviam nem para drama e nem para comédia (e, sobre ser cabeça, também lhes faltavam os pés). "Arrisquei uma parada nova aí, fui corajoso, é filme de arte."

A família do roteirista com aquele sorrisinho de compaixão que recalca uma emoção enorme e terrível chamada desprezo. A tia com enxaqueca, a mãe com intestino irritado, o pai sentindo que o joelho vai voltar a inchar. Tudo para não dizer à criança prodígio de 48 anos que ela abriu mão de um ótimo salário, está devendo em dois bancos e demorou uma década e meia para fazer uma bela bosta de filme.

Quando eu trabalhava como escritora de autoficção, mais da metade dos escritores de autoficção virou professor de curso de escrita criativa e gerador de conteúdo para o Instagram. Eles se diziam travados, secos, mortos, corrompidos, degenerados. Claro, não se ensina o que a gente só consegue fazer pois não consegue explicar por que faz!

Cada vez que me forço a falar sobre escrever, me distancio mais e mais do espírito que baixa em mim e escreve (Ainda assim, fiquem espertos: vem aí uma nova turma do meu curso!). Eles queriam mais do que orçar um pacote com dois posts no feed e um carrossel de stories, eles queriam abandonar tudo para voltar a se dedicar à verdadeira arte.

Quando eu trabalhava como podcaster, mais da metade dos podcasters se dizia exausta da própria voz e precisando fazer fono. Eles queriam mais do que uma plateia de desconhecidos lavando louça, eles queriam o quê? O quê? A porra da verdadeira arte.

Quando eu fazia formação em psicanálise, mais da metade dos psicanalistas estava sempre neurótica e doente. Esfalfados de tanto perseguir o que seria a verdadeira arte da escuta ou a verdadeira arte da entrega pessoal para escrever uma monografia.

Quando eu trabalhava em um projeto muito visceral, muito autoral, muito "a escrita mais pura e madura possível", conhecia outras pessoas que também estavam isoladas em chalés nas montanhas tentando fazer o mesmo. Eles queriam mais do que reclamar que ter filhos lhes rouba um tanto de dedicação à verdadeira arte. Eles queriam os filhos. A urgência de enfiar o nariz no cangote de um filho seria a verdadeira arte?

Quando eu trabalhava com a verdadeira arte, depois de pedir demissão de todos os meus empregos, sair de todas as minhas redes sociais, parar com todos os meus cursos, depois de dar minha televisão para meu vizinho, meu iPhone para a minha mãe e meu computador para meu pai, depois de me distanciar de mais da metade das pessoas que eu conhecia (e do que restava da outra metade também), eu descobri: a verdadeira arte, meus amigos, é dormir.

Quando você se sentir um idiota, pense que no Youtube tem um vídeo chamado "Como saber tudo sobre porta-guardanapos" com mais de 30 mil visualizações.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

sábado, 25 de junho de 2022

O dia em que o cenário desabou sobre Jorge Dória


Quando minha avó Memé me levou pro teatro, parecia uma ideia de jerico —ou, como dizíamos na época, um programa de índio, que era uma expressão que a gente usava pra designar programas que só mesmo o homem branco tinha saco pra fazer.

O programa era "O Avarento", com Jorge Dória. O ator octogenário estava seriíssimo no cartaz da peça. Não parecia comédia. Ao abrir das cortinas, os atores usavam perucas e roupas de época. Que tragédia, pensei.

Até que entra o Dória —e passa a desancar os colegas, um por um. "Você parece o feto de um sapo molhado." A plateia inteira ia abaixo. E eu também, tanto que lembro de várias falas. "Eu te odeio desde que você nasceu. Só não entendo por que é que você nunca gostou de mim." Minha avó tinha crises de riso. Aquele homem não parecia um ator. Parecia um ser humano em estado puro, e aquilo era hipnotizante.

Até que, do nada, no meio de um diálogo, uma parede do cenário desabou, deixando descoberta toda a coxia esquerda. Ao invés de interromper a peça, Dória começou a improvisar, entre crises de riso do elenco. Enquanto falava, chutava as paredes de compensado. Chamou a produtora pro palco. "Onde foi que vocês compraram isso? Na 25 de Março?"

A partir dali a peça descambou pra um texto hilário sobre as condições precárias do teatro no Brasil, sem que nunca saísse do mote principal —afinal a peça era "O Avarento", então vinha a calhar. Ao final, a plateia urrava como quem tinha visto um milagre, enquanto o elenco agradecia, sobre os destroços.

Nunca me esqueci daquela noite. Duvido que alguém tenha se esquecido. Como eu tive sorte, pensava, por ter visto a peça no dia fatídico em que o cenário caiu. Que bela metáfora pra profissão: o país desabando e os atores tendo que improvisar sobre os destroços.

Outro dia encontrei a atriz Glaucia Rodrigues, que interpretava Elisa na montagem, e perguntei se ela se lembrava da noite em que o cenário caiu. "Difícil dizer, o cenário caía toda noite." Demorei a entender. "Acho que o Doria pedia pro contrarregra derrubar a parede."

Primeiro fiquei decepcionado. Vivi uma fraude. Minha noite inesquecível tinha acontecido centenas de noites (a peça ficou em cartaz por cinco anos). Depois fiquei ainda mais grato ao Dória e àquele elenco que me enganou. Que delícia de profissão, essa, que consiste em fazer noites comuns parecerem únicas.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Assim como Bolsonaro, liberais 'do mercado' não gostam de obedecer à lei


Aconteceu em Salvador, mas poderia ter sido em qualquer outra cidade do país —em São Paulo, mais do que nas outras, acho eu.

Um sujeito foi abordado pela polícia de trânsito; não tinha carteira de motorista. Primeiro, nega que estava dirigindo o carro. Depois, pega um caixote de metal, ou coisa parecida, e começa a destruir o próprio carro. Sobe na capota, arrebenta o que consegue, e, segundo diz a notícia, foge do local.

Disse que não ia deixar "o Estado" apreender sua propriedade; preferia inutilizá-la a permitir sua retirada para um depósito.

Não sei nada mais sobre o caso ou sobre o histórico pessoal do seu protagonista. Não especulo, portanto, sobre as preferências eleitorais desse bravo cidadão.

Mas é claro que a cena é um retrato do Brasil bolsonarista, como tantas outras em que regras mínimas de respeito cotidiano são vandalizadas por quem se acha dotado de mais direitos que os demais.

É a socialite que queria entrar sem máscara numa festa e ataca com xingamentos racistas o segurança da boate; é o "homem de bem" que insulta e bate no entregador de pizza; é a horda que se reúne para apedrejar a casa onde mora um menino trans.

Nada disso começou no governo Bolsonaro, como sabemos. Mas o presidente e seus comparsas oficializaram esse tipo de arrogância. O procedimento habitual da brutalidade brasileira era fazer tudo de modo mais envergonhado.

Os generais da ditadura, torturando a valer, diziam que não existia tortura no Brasil. Hoje, os apoiadores do sistema se orgulham do que foi feito.

O grande grito de independência, a validação triunfal da estupidez, ocorreu quando Bolsonaro, ainda deputado, declarou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando a memória de Brilhante Ustra.

Acho que foi esse o momento em que sua candidatura se tornou real e "ganhou sentido" para a maioria fascista que o sustentou e ainda sustenta. "É isso mesmo o que queremos, chega de disfarçar."

Tratava-se de "ser verdadeiro", isto é, rejeitar como hipocrisia qualquer cuidado com negros, sem-teto, homossexuais, indígenas, pessoas que dependiam do Bolsa Família, perseguidos políticos, artistas, jornalistas, familiares de quem foi morto pela pandemia. "E daí?", perguntou Bolsonaro.

O engraçado é que essa forma de ser "verdadeiro" coexistiu e coexiste com a prática recorrente das fake news. É a lição de Trump, negando até hoje ter perdido as eleições e também o método do nosso motorista em Salvador, que não admitiu estar guiando o carro quando foi parado pela blitz.

Soma-se a isso a rejeição ao Estado. Dito assim, parece "bonito", isto é, "libertário", "moderno" ou "liberal". Mas o que esses radicais desejam não é apenas uma menor intervenção do Estado na economia (o que, pensando no Brasil, já é besteira de bom tamanho).

Esse ramerrão liberal é apenas o disfarce, num plano mais amplo, para a rejeição da lei; num plano menor, o que se oculta é a rejeição das normas de boa educação.

Não é à toa que liberais "do mercado", dotados de maneiras impecáveis, não viram nenhum problema em se aliar a milicianos, estelionatários religiosos, invasores de terras indígenas e torturadores. Não é só que não gostam do Estado: não gostam de obedecer à lei.

Ah, mas eles defendiam a luta contra a corrupção. Acho que essa bandeira nunca passou de disfarce para uma raiva maior. Claro que corrupção é um crime, é um roubo, é um ataque ao Estado e ao interesse público. Mas, para eles, qualquer imposto é roubo também.

Na cabeça desses liberais, o direito à propriedade é um direito absoluto. Se o Ibama se mete na minha fazenda, se a Receita Federal exige minha declaração de renda, se eu tenho de pagar uma taxa pela importação do meu Audi e do meu vinho francês, isso é roubo também.

"Ninguém manda em mim": esse suposto grito de liberdade significa que poderei contaminar quem eu quiser com o vírus que escolherei, que posso matar quem eu achar necessário com a arma que comprei com meu dinheiro, e que nenhum guardinha de trânsito irá me impedir de circular com meu carro sem ter carteira de motorista.

Estão querendo estragar a minha festa? Destruo o meu carro, destruo o STF, destruo o sistema eleitoral, destruo a Amazônia, destruo o meu país. Ele é meu —faço com ele o que quiser.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Paranoia de Bolsonaro destrói Amazônia e aponta indígenas como ameaça


Conheci o limite entre a dita civilização e a borda da floresta Amazônica quando cruzei o estado de Mato Grosso num bimotor, a caminho do Parque Nacional do Xingu, onde se realizariam as filmagens de "Kuarup", de Ruy Guerra.

O efeito Philishave sobre a cobertura verde já era chocante em 1989. Uma vastidão de terra careca, subitamente interrompida pela frondosa parede de mata nativa da reserva. Sete propriedades gigantescas de capim estéril faziam fronteira com o parque, servindo ao gado e à especulação fundiária. Uma delas, me disse o piloto, pertencia ao Vaticano, mas não sei se era verdade.

Por dois meses e meio vivi acampada na vizinhança das aldeias dos yawalapiti e dos camaiurá, à beira do rio Tuatuari, afluente do grande Xingu. A cachoeira Salto das Andorinhas, única locação distante do parque, ficava localizada a duas horas de voo a oeste, nas cercanias da modesta cidade de Aripuanã.

Aripuanã parecia um cenário de faroeste, com casas de madeira simples e uma população de descendentes de alemães louros de olhos azuis, trazidos do Sul pelo projeto de ocupação da região, implementado pelo governo militar nos anos 1970. A velha ideia de que a imigração europeia ensinaria aos bugres e ribeirinhos o verdadeiro sentido de civilidade, algo que nunca ocorreu.

Aripuanã nada plantava e nada colhia. Uma camada espessa de pó de serragem vermelha recobria os casebres e as ruas de terra batida, vinda das incontáveis serrarias locais. Sem outra opção de sustento, os camponeses paranaenses, gaúchos e catarinenses ali chegados, viviam de derrubar árvores de madeira de lei para transformá-las em tábuas.

Todos os males da exploração predatória já estavam presentes na Aripuanã de 30 anos atrás: violência, prostituição, grilagem, tráfico, garimpo ilegal e conflitos com as populações indígenas. Uma tragédia que só fez crescer em escala ao longo das décadas. Aripuanã, hoje, deve ter se transformado num polo irradiador de cupins grileiros, madeireiros e garimpeiros, jagunços, empresários e políticos mantidos pela devastação.

Compreendi a real dimensão da guerra travada nesses rincões graças a Vladimir Brichta, meu parceiro de profissão. Anos atrás, num intervalo da gravação de "Tapas e Beijos", ele me mostrou fotografias de um dia normal de labuta de seu irmão biólogo, funcionário do Ibama.

Numa imagem, Mauricio Brichta posava ao lado de um helicóptero, vestido com uniforme camuflado de combate, fuzil em punho e colete à prova de balas. Noutra, ele sobrevoava uma região desmatada por maquinário pesado. As duas últimas exibiam destroços de tratores e caminhões detonados por granadas, para garantir que não servissem mais à destruição.

Quando, em maio de 2019, assisti ao vídeo de Jair condenando a operação do Ibama contra retirada de madeira ilegal na Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, me lembrei de Mauricio. Até hoje sinto indignação. Como pode um presidente tomar partido de uma indústria clandestina da degradação, investindo contra um exército de cientistas engajados na defesa das nossas riquezas naturais?

Na paranoia nacionalista do capitão do Planalto, um ex-garimpeiro amador, os povos indígenas representam uma ameaça à nossa soberania, e a boiada de traficantes de Ricardo Salles, um modelo de desenvolvimento para o país. É de chorar.

O conceito de Gaia e o aquecimento global, sejamos justos, ainda não existiam na ditadura, mas nunca é tarde para que se corrijam erros passados. Somos uma nação fundada pelo extrativismo, mas, em tempos de consciência ecológica, urge que as Forças Armadas se unam ao que resta do desmonte das instituições de proteção ao meio ambiente, para barrar o avanço acelerado da bandidagem sobre as áreas de preservação.

Chico Mendes, Dorothy Stang, Maxciel Pereira dos Santos, não é de hoje que a coação a ambientalistas e defensores dos povos da floresta termina em morte. Os assassinatos brutais do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, nesse momento, evidenciam a predileção do falso Messias pela barbárie.

Amarildo da Costa de Oliveira e seus comparsas podem até ter, supostamente, agido por conta própria, mas a solidão, o abandono e a precariedade com que Bruno Pereira realizava seu trabalho é obra consciente de um anti-Estado.

O que mais precisa acontecer para que parte das forças de segurança, a Faria Lima e os que deliram com o fantasma do comunismo desembarquem desse navio pirata à deriva? Arthur Lira, Paulo Guedes, general Heleno, general Braga Netto e Tereza Cristina, que país sem lei vocês sonham deixar para seus netos?


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

terça-feira, 21 de junho de 2022

Escrever roteiros te obriga a ter todas as respostas na ponta da língua


Escrevo roteiros para pagar as contas, o que significa que preciso ter todas as respostas. Seja na manga, na ponta da língua, mas, de preferência, no papel. Qual o objetivo da sua protagonista? Por que não consegue atingi-lo? O que precisa aprender? Como sua jornada começa e como termina?

Qual é a força e qual é fraqueza de uma personagem, por exemplo, são duas perguntas que exigem a mesma resposta. Se ela for ambiciosa, é isso que vai catapultá-la para a glória e arrastá-la para a lama. Mas a grande ironia é que aprender os macetes de roteiro não tornou minha vida mais fácil.

Ninguém foi capaz de narrar melhor esse drama do que a escritora polonesa Wislawa Szymborska em seu poema "A Vida na Hora". Ela compara a vida a uma peça de teatro e lamenta o fato de não tê-la ensaiado, de se sentir "despreparada para a honra de viver". "Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes/ ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!/ Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço."

No papel, na tela, no palco, os rebotes do destino que pegam o personagem de calças arriadas são uma delícia. Na vida, na hora, são uma tortura. Se, na ficção, aprendi a evitar as soluções fáceis, que chamamos de "Deus Ex Machina", na realidade, tudo que eu mais queria era que a saída para meus problemas se apresentasse em uma bandeja de prata.

Dar vida a uma personagem não significa que sou a mãe dela. Meu papel não é protegê-la de desafios e reveses, pelo contrário, preciso levá-la ao limite, ou o público vai mudar de canal e/ou se distrair com vídeos de dancinhas no celular. Mas quando me deparo com um obstáculo, ao vivo e a cores, só consigo lembrar de uma frase que li no Twitter: "Pode até servir de aprendizado, mas preferia ter continuado burra".

Um manual de roteiro me ensinou que, ao ser questionada sobre os rumos da minha história, a única resposta proibida é "eu não sei". Mesmo se for o caso, preciso fingir que tenho tudo sob controle. São ensinamentos como esse que a protagonista da minha própria vida, a roteirista que vos escreve, precisa desaprender. E admitir, por mais desafiador que seja, que nunca terá todas as respostas.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 8 de junho de 2022

'Men' e 'A Ilha de Bergman' revelam violência e defeitos presentes em todo homem



Zumbis, vampiros, dinossauros, serial-killers: não é que essa turma esteja com os dias contados. Mas um novo tipo de monstro vai dando as caras no cinema de terror, e há boas razões para isso.

Trata-se do homem. Não o ser humano em geral. Mas ele mesmo, o cisgênero, o hétero normalzão da espécie.

Depois do MeToo e de todas as barbaridades que se noticiam diariamente, no Brasil de Bolsonaro ou em qualquer lugar do mundo, já estava na hora —e o título de um filme ainda para estrear em São Paulo, dirigido por Alex Garland, já diz tudo.

Chama-se simplesmente "Men", ou homens, e conta a história de uma jovem (Jessie Buckley) que aluga uma casa de campo para se recuperar do trauma que sofreu ao se relacionar com um grande babaca (Paapa Essiedu).

O vilarejo é lindo, a casa é encantadora, com lareira e vigas de madeira... Mas coisas estranhas não demoram a acontecer. Um homem meio pré-histórico, sem roupa nenhuma, começa a espiar pela janela. Um policial aparece para atendê-la; um padre também está disponível. Há o dono da casa que ela alugou. Um adolescente puxa conversa.

O chato é que todos são parecidíssimos. Quase iguais —e, simpáticos ou não, põem a heroína em estado de apavorante pressão psicológica. Para fazer jus ao título de filme de terror, "Men" não dispensa um "gran finale" bizarro e nojento a mais não poder.

Mas a mensagem já foi dada: há algo de ameaçador, de maligno, de violento em todo homem. Desde Adão, atribui-se à mulher a culpa pelos desejos que desperta —e, entre o impulso sexual e o impulso de destruição, muitas vezes o limite deixa de ser claro.

É difícil não se solidarizar com o medo da personagem; saí do cinema olhando cada homem com forte desconfiança.

Num registro mais realista e delicado, "A Ilha de Bergman" também me fez ver melhor as insuficiências e defeitos do meu gênero.

No filme de Mia Hansen-Løve, tudo começa bem. O casal vai tirar um tempo de férias numa ilha cinematográfica, o GPS do carro funciona direitinho, a pousada é de bom gosto, o tempo está perfeito. Eles se deitam para descansar um pouquinho. A mulher dá as costas para o marido, e fica em silêncio. O homem demora para perceber; ela deixou de responder aos seus comentários.

"O que é que você tem?", pergunta ele. "Nada, nada." Talvez ele insista. Talvez não; pega um livro ou uma revista. Depois de um tempo, vê que ela está chorando.

Mas como? Não estava tudo perfeito? O marido espera. Estende a mão para tocar no ombro dela. Nada. Ela só se remexe um pouco na cama e arruma o travesseiro.

O marido desiste. "Coisas lá dela." Coisas de mulher. De resto, ele tem assuntos mais interessantes a tratar. O jornal; os emails; algum projeto de trabalho.

Ele é mais velho, tem bastante sucesso profissional, há solicitações de todos os lados, e está quase terminando um negócio que, acha, vai dar muito certo.

Ela é jovem, está empacada num trabalho parecido, e não tem a autoconfiança e a experiência do marido. Está inquieta. Sai para passear de bicicleta, toma banhos de mar, tenta trabalhar um pouco, precisa de alguma coisa, mas não sabe bem o quê.

O marido quer ajudar, mas faz tudo de um jeito masculino; põe tudo em termos de opções, alternativas, pontos objetivos. Quanto mais tenta, mais impaciente parece. Quanto menos ela responde, mais ele se enfia nas próprias atividades —"isto eu sei resolver, agora, as coisas dela... nem ela mesma sabe!".

Contei só o comecinho —aos poucos, as coisas se esclarecem (ou não). Acho que poucos filmes mostram tão bem, e com tão poucas palavras, as diferenças de mentalidade que interferem na vida de um casal "normal" e, feitas as contas, bastante feliz.

Há a sensação de que alguma coisa se perdeu, de que o "verdadeiro amor" estava em outro lugar e em outro momento da vida, a ideia de que seria preciso apagar tudo o que já foi feito e recomeçar o roteiro a partir do zero...

Aos olhos da diretora Mia Hansen-Løve, é provável que tudo isso seja mais forte numa personagem feminina, enquanto ele, o maridão, não dá tanta bola para o problema.

Pode bem ser; de minha parte, acho que sou bem pouco romântico. Mas tenho de dizer também que vibrei com um grande momento de amor do filme —talvez um dos beijos mais legais que já vi no cinema. E é o homem que tomou a iniciativa.

Não é o caso de perdermos as esperanças, portanto. Mas, se eu fosse mulher, pensaria muito antes de me aproximar do sexo oposto.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.

sábado, 4 de junho de 2022

Exuberante


Meu clínico geral é infectologista e professor. Não sei se ele sabe, mas é também um grande frasista. Procuro "frasista" no Google, com a lembrança temerosa de que o significado do termo possa incluir um cunho pejorativo de coisa oca e metida. E estou certa. Porém aqui, reforço, quero dizer tão somente que meu clínico geral é um dos meus poetas preferidos. Sem ironias.

Sou bastante hipocondríaca. Freud dizia que o hipocondríaco é aquele que concentrou em algum órgão a libido que precisou tirar dos objetos do mundo externo. Bem, foram ao todo mais de 1 milhão de rapazes (e umas centenas de moças) que, ao cruzarem meu caminho, desejei acariciar, mas me contive. De forma que sou hipocondríaca em cada célula do meu corpo. Se um dia rompesse a barragem libidinal que guardo desde o primeiro tesão que senti pelo pai de uma amiguinha do primário, eu banharia de saúde mental não apenas as minhas próximas 45 gerações como, quiçá, toda a América Latina.

Digo que odeio tomar remédio e que odeio ficar doente, e meu namorado nem disfarça o deboche. Tento lhe explicar, mas eu mesma não sei se entendo: não tenho nenhum prazer em enfiar uma química dentro de mim ou em sentir meu corpo débil, mas sinto inenarrável gozo nos assuntos enfermidade e medicamento. Eu ficaria uma tarde inteira explicando para um leigo o funcionamento dos fármacos monoclonais. Não que eu tenha a menor ideia do que eles de fato sejam, mas salivo por esse momento. Se você me encontrar numa festa, por favor, me pergunte sobre os avanços da medicina. Eu agora estou obcecada pelos remédios biológicos. Tanto que meto gostoso uma injeção gelada na barriga todo mês (e estou curadíssima das enxaquecas e dores crônicas que me atormentaram por anos). Puxe esse assunto comigo. Terá em mim efeito similar ao deleite de ser arrastada para uma pista de dança por amigos gays em noite bissexual.

Um ex brincava que eu deveria tentar vender para algum canal de televisão um programa no qual eu e meu clínico geral (que é também infectologista e professor e poeta) viajássemos pelo mundo conhecendo toda sorte de doenças locais. Assim como apresentadoras bonitas e solares fazem com comidas e culturas. Fica aí meu convite para que me façam esse convite.

Mas voltando ao meu clínico-infecto-professor-poeta, ontem tive a honra de estar com ele em uma teleconsulta. Seria apenas uma manhã com Covid, não fosse doutor Tapajós um artista da clínica. Eu nem começo a tossir se não tiver por perto papel e caneta. Suas frases, lançadas como galhos de inspiração literária nesse mar gélido que é viver entre papinhos de fila e elevador, ficam ecoando meses na minha cabeça.

"Doutor, amanhã é o quarto dia. Tenho medo de piorar." "Não diria piorar. A partir de amanhã, é possível que aconteça certa EXUBERÂNCIA viral." "Doutor, eu estou com um gosto metálico na boca." "Se chama disgeusia e significa que você ganhou IMUNIDADE DE FRONTEIRA." "Você vai pedir tomografia?" "Não acho necessário pesquisar nada pelas ENTRANHAS pulmonares porque nós já sabemos como será a evolução: a ALA DAS BAIANAS vai passar, mas porque você tem três vacinas, dificilmente as baianas pegarão fogo." Que médico faz metáforas carnavalescas com Covid? É bonito demais.

"Tatiane, no sétimo e no décimo dia, vamos perguntar para o seu sangue o que ele quer. Vamos OUVIR SEU SANGUE." "Tatiane, fique tranquila, ‘sequela é doença mal gerenciada’. Não esfregue o nariz e coloque as mãos nos olhos em seguida, não aumente seu INÓCULO viral."

Não sei se esses sonetos da afecção venderiam, mas eu já reservei aqui um espaço entre Ana Martins Marques e Carlos Drummond de Andrade.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo