sábado, 28 de maio de 2022

Quem agradece em português acaba sempre criando uma obrigação


Estar no Brasil é, embora quase ninguém o note, um constante incentivo à criatividade e à invenção. Quando agradeço a um brasileiro, ouço quase sempre: imagina! E eu, obedientemente, imagino mesmo.

Na maior parte das vezes, tenho de começar por imaginar a própria palavra "imagina", porque me dizem apenas: "magina!". Uma das coisas que imagino é que me estão a tratar por Gina e a assinalar a minha maldade por ter agradecido.

"Obrigado."

"Má, Gina!"

Esta, claro, é uma das perigosas consequências de me mandarem imaginar.

Quando agradecemos, em português, exprimimos um compromisso. Em espanhol e italiano, eles dizem "gracias" e "grazie". Ou seja, dão graças pelo que receberam.

Em francês é igual: quem diz "merci" celebra uma graça, uma mercê. E em inglês e alemão acontece o mesmo.

No entanto, "obrigado" é coisa séria. Não se trata apenas de ficar grato. É a forma abreviada de dizer "fico-lhe obrigado". Estabelecemos a obrigação de retribuir o favor.

Como se não bastasse, há quem não se satisfaça com esse encargo que impõe a si mesmo, e recusa ficar apenas obrigado. Fica muito obrigado. Ou até obrigadíssimo.

A palavra obrigado tem lá dentro a palavra ligado. Através do mesmo processo linguístico utilizado pelas pessoas que dizem "probrema", nós transformamos em "obrigado" o original latino "obligado". O que significa que nós anunciamos uma ligação à pessoa a quem agradecemos. Ficamos ligados a ela. Quando nos respondem "por nada", estão a desobrigar-nos dessa promessa. Não temos por que ficar obrigados.

Mas, quando exclamam "imagina!", estão a fazer mais do que apenas dispensar-nos de uma retribuição. Estão a xingar-nos por termos considerado que essa retribuição seria sequer devida. "Imagina", no fundo, significa: "Imagina! Nunca ouvi tamanha bobagem! A sua proposta é completamente absurda!".

É um modo muito cruel de escarnecer da nossa boa educação. Aquele "imagina!" é, na verdade, um "por amor de Deus, não seja ridículo". Pelo menos, é isso que eu imagino.


Texto de Ricardo Araúo Pereira, na Folha de São Paulo

Psiquiatra destrincha epidemias de drogas e faz relato de sua própria dependência


O que há de comum entre crises financeiras e epidemias de drogas? Ambas seguem um roteiro mais ou menos conhecido de repetições históricas, mas nem por isso somos capazes de evitá-las.

No caso das drogas, tudo começa com a fase de lua de mel, em que o novo fármaco é visto como uma bênção. Em pouco tempo verifica-se que as coisas não eram tão simples e que, pelo menos para algumas pessoas, o produto pode ser bem destrutivo. Aí declara-se guerra à droga em questão, e os resultados são ainda piores, já que o usuário patológico passa a ser ele próprio criminalizado, tendo de lidar não apenas com a dimensão sanitária de seu problema como também com a legal.

Foi assim com o tabaco, a partir do século 16, e com a primeira epidemia de opioides nos EUA, no início do século 19. É assim que está sendo agora, com a segunda epidemia de opioides na virada do 20 para o 21. Carl Erik Fisher detalha essas e várias outras histórias em "The Urge" (a compulsão). O detalhe, que torna o livro diferente de um competente apanhado histórico de epidemias, é que Fisher, psiquiatra especializado em drogas, narra sua própria experiência como dependente de álcool e anfetaminas e seu processo de recuperação.

Fisher não tem medo da complexidade. Mostra que a dependência está relacionada a fatores tão variados como genética, química cerebral, personalidade, inserção social e contexto histórico, mas que é impossível reduzi-la a uma causa única. Algo parecido vale para o tratamento. Todos os casos são únicos e não existe receita que valha para todos. Para alguns, como o próprio Fisher, a saída está na abstinência. Para outros, a redução de danos é o que funciona melhor.

Só o que não funciona é a tal da guerra às drogas. Para Fisher, a dependência nada mais é do que uma forma de ser diante dos prazeres e das dores da vida. Declarar guerra a isso é declarar guerra à própria natureza humana.


Texto de Hélio Schwartsman, na Folha de São Paulo

Erro é queimar o feijão; câmara de gás é método nazista


Ouvidos pela Folhaespecialistas em segurança pública apontaram "uma série de erros" na abordagem da Polícia Rodoviária Federal ao motociclista Genivaldo de Jesus Santos. Parado por pilotar sem capacete numa estrada de Sergipe, Genivaldo foi fechado no porta-malas da viatura com uma bomba de gás lacrimogêneo. Morreu.

Do alto da minha falta de especialização, afirmo sem medo de errar que os especialistas estão errados.

Erro é esquecer a panela no fogo e deixar o feijão queimar.

Erro é quebrar o espaguete ao meio antes de jogar na água. Erro é cozinhar o macarrão até ficar mole. Erro é jogar queijo ralado em massas com frutos do mar.

Erro é remover a gordura da picanha para fazer churrasco. Erro é quando você pede a carne malpassada e a recebe estorricada.

Erro é comer sushi com garfo e faca. É harmonizar temaki de salmão com malbec argentino.

Erro é fazer supermercado com fome e comprar mais comida do que precisa com o dinheiro que não tem.

Erro é fazer compras distraído e levar para casa café sem cafeína, leite sem lactose, cerveja sem álcool e atum vegano.

Erro é chamar o drinque margarita de "marguerita". É aquecer a pizza marguerita no micro-ondas.

Erro é pedir bife no restaurante de peixe e lasanha na churrascaria.

Erro é comprar hambúrguer de picanha achando que tem picanha. Erro é acreditar que qualquer gororoba fica boa com azeite trufado ou requeijão.

Erro é colocar sal no café e adoçante na batata frita.

O que a PRF fez com Edivaldo é homicídio qualificado. É tortura que resultou em morte. É execução. É dolo, não é imperícia.

Um dos especialistas afirma que "a abordagem foi atabalhoada". Fui até checar o significado do adjetivo: "atabalhoado" quer dizer apressado, confuso, sem cuidado.

Não sei se o especialista viu o mesmo vídeo que eu vi. Nas imagens que eu vi, os policiais agem sem pressa, com calma e método, enquanto as pernas de Genivaldo se debatem para fora da viatura.

A violência policial tem muito método. O método nazista de exterminar indivíduos indesejados na câmara de gás. O método ensinado em cursinhos para concurseiros da PRF –ontem emergiu o vídeo de um professor que, às gargalhadas, ensina a "acalmar" com spray de pimenta pessoas trancadas no carro da patrulha.

Como mostra reportagem da BBC Brasil, publicada também na Folhaa PRF eliminou uma disciplina sobre direitos humanos do currículo do treinamento dos agentes. Está tudo ajeitado para ser assim mesmo.

A morte de Genivaldo é resultado de uma série de erros –erros nossos, não dos carrascos rodoviários.

Foi um erro enorme ter permitido o empoderamento do guardinha da esquina, do fiscal de fiofó alheio e da viúva da ditadura.

Foi um erro gigantesco tocar a vida normalmente enquanto as milícias armadas, fardadas ou não, só faziam crescer.

Foi um erro inadmissível entregar o país a uma corja de desqualificados que celebram a morte.

Não podemos nos dar ao luxo de seguir errando assim.


Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Envelhecer ou ter uma deficiência ainda é a vida desvalorizada


"Ele tinha um talento arrebatador. Era o maior de todos, elaborava obras incríveis, era uma máquina de produzir, mas teve um AVC, coitado. Ficou afásico, já tá velho, né? Aposentou, parou tudo. Vai ficar em casa descansando."

Vivemos em um momento de ebulição do respeito aos corpos diversos, de valorização das individualidades e das tais liberdades, do reconhecimento das potências para além dos padrões, mas vamos parando por aí.

As avarias causadas pelo tempo, resultando na velhice, e as desgraceiras do viver sobre a carcaça humana, ocasionando deficiências de toda ordem, ainda fazem silenciar virtudes bem humanas e muito necessárias.

Seguir o curso sendo velho, seguir carregando alguma inconformidade física ou sensorial resiste como sentença de final da linha como "serumano" que pode produzir, contribuir intelectualmente e praticar cidadania.

O valor do corpo segue medido por suas funcionalidades e belezas, as inquietações e as infinitas possibilidades da mente são ocultadas quando o seu movimento não corresponde ao que se entende como atlético, dinâmico e performático.

O velho e a pessoa com deficiência são os entes sociais que mais padecem com a confusão do mundo moderno que mistura ser saudável com ser o puro creme do milho de Piracicaba, ser capaz de articular ideias e pensamentos com ter redes sociais ativas ostentando rebolados.

Chegou lá em casa, esses dias, um ensaio a respeito de "velhofobia" escrito pelo Orlando Miranda, que está na beirada dos 90 anos e é leitor atento de jornais e da contemporaneidade. O que vem primeiro, a capacidade de articulação dele em levantar questões a respeito desse "brabo" entrave social ou a vagareza natural de seus movimentos?

Não sou adepto da negação dos efeitos do passar do tempo na disposição e penso ser extremamente legítimo quem opta, por vontade própria, por descanso, mas o que resiste como viés bem consciente é a ligação do pleno funcionamento físico à importância produtiva, intelectual e de interação social.

Claramente, estamos chegando aos 50, aos 60, aos 70 anos, em decorrência de diversos avanços, com a sensação de que podemos viver como os 20, os 30, os 40 anos, mas essa revolução é lenta para se tornar realidade de forma conjuntural.

A regra segue sendo da retirada do velho de cena, sobretudo se ele tiver algum comprometimento natural dos sentidos ou do físico, pois aí, o capital humano é praticamente falido. Velho custa caro, ocupa lugar de graça no transporte público, fura a fila, atrapalha o jovem que precisa trabalhar, se lascar para ficar velho e ter prioridade de atendimento.

Temos pouquíssimo tempo para sermos jovens, tragados pelas obrigações de ganhar algum dinheiro, e está sobrando tempo demais para vivermos o abandono e o isolamento da velhice, tempo de esgotamento de qualquer dinheiro, quer seja pelo custo de querer voltar no tempo, quer seja pelo tanto que se gasta na pura e dura sobrevivência.

Nenhum debate a respeito de diversidade vai ser, de fato, transformador se não botar todas as essências do humano em seu escopo. O atendimento dos clamores por novos olhares sobre o velho e sobre a pessoa com deficiência, seguirei batendo o bumbo, está ficando para trás.


Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Aqueles que ainda vão nascer nos dão vontade de arrumar o mundo começando pelo quarto do bebê


Estou perdidamente apaixonado. Perdoem a redundância. A única coisa que a gente faz perdidamente é se apaixonar. Ninguém diz: estou perdidamente esfomeado. Não se fica perdidamente gripado, nem se canta perdidamente uma canção. Até o Google sabe disso. Escrevam "estou perdidamente" e ele completará: "apaixonado". O contrário também é verdade: só nos apaixonamos se for perdidamente. Quem se apaixona encontradamente não se apaixonou.

A parte mais esquisita da minha paixão perdida é que nem sequer conheço a pessoa. Quer dizer, ainda não conheço. Ainda assim, faz alguns meses que penso nela todos os dias, e sonho com ela, e não tem nenhum dia que seja igual ao dia que passou, porque agora falta um dia a menos pro nosso encontro.

Hoje falta menos de um mês e meio pra gente se conhecer. Pode ser que ela chegue antes. Tomara que não muito antes. Pode ser que chegue um pouco depois. Mas certamente não muito. E, nesse dia, sei que vou me apaixonar por essa desconhecida, mesmo que ela não faça ideia de quem eu sou, e eu não faça ideia de quem ela é —e ela faça menos ideia ainda de tudo o que ela pode vir a ser. Vai demorar mais alguns anos pra que a gente se conheça de verdade. Vai demorar uma vida toda.

Minha paixão perdida não tem rosto, mas já tem nome: Celeste. E é um nome bonito porque me lembro dela todo dia, porque ele está em toda parte. Se chove, penso nela, e se faz sol também. E quando falam em céu-da-boca, ou no céu de Santo Amaro, ou no céu de um azul celeste celestial.

Como é bom esperar por alguém que ainda não nasceu. É o contrário da saudade. Já amei pessoas que partiram: avós, amigos, professores. O amor por alguém que ainda vai chegar é o contrário desse sentimento, mas se parece muito com ele, porque é amar alguém que não existe —mais ou ainda— fora da gente.

No meio do colapso, enche de alegria pensar que alguns amores da nossa vida ainda estão sendo fabricados.

Outros ainda estão sendo concebidos, projetados, sonhados, ou nem isso.

O mundo virou essa festa estranha com gente esquisita. Mas muita gente ainda tá pra chegar. Não sei vocês, mas eu só arrumo a casa quando recebo visita. E esses convidados dão um gás novo pra gente arrumar o mundo —começando pelo quarto do bebê.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

domingo, 22 de maio de 2022

Poderosos padrinhos


A nigeriana Chimamanda Adichie, uma das principais escritoras da atualidade, falou para 3.000 pessoas no Rio outro dia, durante um evento literário no Maracanãzinho. Imagino que grande parte da plateia a admire por seus romances, como "Hibisco Roxo" e "Americanah!". Outra parte pode tê-la descoberto quando trechos de seus discursos em órgãos internacionais sobre feminismo e racismo foram citados pela estrela Beyoncé numa canção que escalou as paradas. Antes disso Chimamanda já era admirada, inclusive no Brasil, onde é traduzida por Julia Romeu. Mas o endosso de Beyoncé pode lhe ter dado um público que a literatura não costuma atingir. Se isso faz com que mais gente ouça a sua voz, melhor ainda.

O endosso de um artista por outro mais famoso nunca é demais. Verlaine lançou Rimbaud, Jean Cocteau lançou Raymond Radiguet, Sartre lançou Jean Genet. Gertrude Stein lançou Hemingway, que, em troca, debochou dela, 40 anos depois, em "Paris É uma Festa". Mistinguett lançou Maurice Chevalier, Edith Piaf lançou Yves Montand. Carmen Miranda lançou Dorival Caymmi. E Bing Crosby avalizou Frank Sinatra: "Frank é um desses cantores que só surgem uma vez na vida. Mas tinha de ser na minha vida?".

Às vezes, o endosso pode ser involuntário. Em 1919, Ruy Barbosa viu no Jeca Tatu ridicularizado por Monteiro Lobato em "Urupês" uma vítima das oligarquias e, como disse isso num discurso de campanha presidencial, a venda do livro disparou. "Não ficou um", vibrou Lobato.

Em 1960, James Bond era só um detetive de ficção como muitos, nem de longe popular como Mike Hammer ou Ellery Queen. Mas John Kennedy, eleito presidente dos EUA e indagado sobre o que gostava de ler, surpreendeu: "Os romances de Ian Fleming com o agente 007". Ninguém sabia quem era. Foram ver e deu no que deu.

Talvez eles não precisassem de padrinhos. Mas nenhum o dispensou.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Às vezes parece que o Rio não tem jeito, mas bastava o fim da espécie humana


Durante a pandemia, uma amiga se mudou pra casa dos pais na serra e entregou o apartamento. Deixou os móveis num depósito por dois anos.

Quando foi resgatar, estavam irreconhecíveis. O mofo tinha tingido tudo de verde. Em cada almofada tinha brotado um ecossistema particular de fungos e líquens.

A praia, no Rio, não existe somente em estado líquido, mas gasoso. Ela vai até você, não importa onde esteja. Gotículas invisíveis umedecem tudo o que sol toca —mas sobretudo os lugares em que ele não alcança.

O ar, no Rio, pesa o dobro. Por isso atrasamos. Romper a umidade relativa do ar custa esforço. Pra levantar da cama não se luta só contra a gravidade, mas também contra o vapor. Não se sai do lugar sem rasgar essa esponja.

Biscoito e bolacha têm expectativas de vida muito diferentes. A bolacha, em São Paulo, pode respirar por uma semana e continuar crocante. O biscoito, coitado, não resiste a poucas horas de contato com a atmosfera sem amolecer pra todo o sempre. A umidade tem uma fome implacável.

Morei no Horto, ao lado do Jardim Botânico. Não podia passar uma semana sem limpar a parede atrás dos quadros. Qualquer descuido e se formava uma camada grossa de limo por detrás da moldura, acolchoando os quadros com um carpete verde.

Precisei colocar grades na janela pra impedir a invasão de macacos pregos, que abriam armários e devoravam potes de biscoito. Na casa de um amigo, não encontrando nada pra comer, os macacos vandalizaram a casa, em protesto. Quebraram vasos e espalharam cocô pelas paredes.

A natureza, aqui, não pede licença. Oitis crescem no espaço ínfimo entre o meio fio e a calçada. Tentáculos de jaqueiras desgovernadas criam vulcões na pedra portuguesa. O asfalto está cheio de cicatrizes queloides causadas pela insistência de amendoeiras e suas raízes tectônicas.

O Rio de Janeiro não é uma cidade que deixou crescer, no meio, uma floresta. Isso daqui é uma floresta que, por distração, deixou crescer, no meio, uma cidade.

Hoje moro perto do mercadinho São José, fechado há uns dez anos. Uma espiadela por entre as frestas do portão trancado deixa entrever uma mata densa, tropical, cerrada, com direito a pássaros e saguis. Basta um piscar de olhos pra brotar um novo bioma.

Às vezes parece que o Rio não tem jeito. Mas basta que a gente desapareça. Pelo menos por um tempo.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Mario Vargas Llosa, que prefere Bolsonaro a Lula, deveria ficar quieto


Eu já estava grandinho quando assisti, pela TV Cultura, a uma entrevista com o crítico literário e pensador católico Alceu de Amoroso Lima (1893-1983). Muito bem disposto, ele contava histórias de sua longuíssima vida.

Perguntaram a ele sobre a redemocratização do país e sobre suas esperanças políticas. Ele tinha muitas, naquele momento, mas acabou lembrando que seu maior momento de entusiasmo já tinha passado.

"É mesmo?", perguntou alguém. "E qual foi esse momento?" Com vivacidade, Alceu Amoroso Lima respondeu: "A campanha presidencial de Ruy Barbosa".

Ninguém sabia o que responder. Aquilo vinha da mais profunda noite do passado; parecia impossível que alguém capaz de vibrar com o movimento civilista de 1910 ainda pudesse ser entrevistado na televisão. Ele foi adiante, lembrando ter sido um dos primeiros a ter dançado o tango em Paris. Em suma, sua velhice era de tal ordem que parecia impossível que ele ainda estivesse vivo.

Elizabeth 2ª prepara-se para comemorar seus 70 anos de reinado e, com falhas mais frequentes nos últimos tempos, ainda participa de solenidades e chás. Reconheça-se que começou a usar bengala. Mas não se duvida de que participará de seu jubileu de platina, avançando aos poucos na competição para destronar (epa) Luís 14, rei da França por 72 anos e 110 dias, conforme calcula a Wikipédia.

Depois da platina, o que mais? Talvez seja necessário seguir a tabela dos elementos químicos, instituindo os jubileus de urânio, de plutônio e assim por diante.

A rainha está sem dúvida mais em forma do que seu súdito Alan Bennett, nascido em 1934. O dramaturgo, conhecido pelo roteiro do filme "A Loucura do Rei George", publicou agora na Inglaterra seu diário da quarentena, intitulado "House Arrest", ou prisão domiciliar. É um livro curtíssimo, como se poderia esperar de alguém com as forças em declínio.

Bennett assiste pela TV a uma aparição da rainha, depositando flores num monumento às vítimas da guerra. Obedecendo ao protocolo, ela tem de dar alguns passos para trás depois de feita a homenagem.

Eu já não seria capaz de fazer isso, diz o teatrólogo. Faz caminhadas curtíssimas (três minutos), de bengala; seu aparelho de surdez nem sempre funciona, e quando foi tomar a vacina de Covid perguntou se era ali mesmo a "fila do vírus".

As entradas do diário se resumem, por vezes, a curtas citações. Do pintor Lucian Freud, ele registra uma frase. O que o artista faz "é dizer aos outros que esteve vivo".

O livro de Bennett segue o preceito, sem grande entusiasmo, mas sem tristeza. Descreve uma velhice "normal": a vida vai se extinguindo como uma vela, num lago de parafina.

Fico pensando no caso oposto, o de Mario Vargas Llosa. Era liberal e antipopulista quando se candidatou à Presidência do Peru em 1990. Mas, de lá para cá, radicalizou-se a valer.

Defendeu um extremista de direita nas últimas eleições chilenas, e agora, contra Lula, diz preferir Bolsonaro. Será que Vargas Llosa se vacinou? Ou andou fazendo reposição de testosterona?

Certamente, uma dose de antirrábica lhe faria bem. Se fosse para agir racionalmente, pensando em sua obra como escritor, ele só teria a ganhar ficando quieto. Talvez Vargas Llosa se sinta liberado pela velhice. "Quer saber? Que todos se danem. Já ganhei o prêmio Nobel, pertenço às academias peruana e espanhola, e o rei Juan Carlos me concedeu o título de marquês. Quem não gostar que vá chupar coquinho."

Imagino outra razão para o processo. O sujeito começa razoável e civilizado: condena as perseguições a escritores em Cuba, não faz vista grossa a casos de corrupção de esquerdistas, entra na onda da globalização… E, num belo dia, descobre que o atacam.

Logo ele, tão respeitado e querido! Como assim? Me xingam de neoliberal, de direitista, de fascista? Mas sou civilizado, bonito, charmoso…

A vaidade foi machucada a tal ponto, que o organismo intelectual aciona seus anticorpos. "Sou bom demais para querer consertar minha imagem pública." Sou tão lindo que deixarei meus dentes em petição de miséria, andarei pela rua com a braguilha aberta e esparadrapo na haste dos óculos. Haha, pensam que estou velho? Sinto-me mais macho do que nunca. Prova disso, apoio qualquer fascista que aparecer pelo caminho.

Como naqueles filmes sobre a vingança da múmia, é sempre uma forma de se dizer vivo.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

domingo, 15 de maio de 2022

Não consigo apagar os que se vão, da minha memória ou do meu celular


Semana passada, um conhecido morreu de forma trágica, o que gerou imensa comoção e o compartilhamento de ternas homenagens pelas redes sociais. Somos adultos, sim. Sabemos que pessoas morrem e que, com o passar do tempo, tendem a morrer com mais frequência.

Contudo, nada nos prepara para certas ausências, principalmente porque são duas, na prática: a física e a digital.

Confesso ter dificuldade para o luto online. Até hoje, não consigo desfazer amizade com duas grandes amigas. Ambas morreram há mais de cinco anos e, é claro, eu poderia clicar na opção "deixar de seguir".

Mas como encará-las como não pessoas? Os avatares resistem e, por vezes, passeio por suas publicações. Algo me escapa entre os retratos, porém segue sendo vínculo. Talvez últimas palavras, numa legenda feliz do Instagram.

Ao vasculhar minha caixa de emails, é comum que um termo da busca traga por acaso meu pai e nossa antiga troca de mensagens. Vou relendo tudo embargada de emoção, reconhecendo seu modo de se expressar. Ao contrário das cartas, que amarelam, o que corre pela tela é um fluxo vivo de pensamento, como se conversássemos de novo a partir daquelas linhas. Sua voz grave ecoando na minha cabeça.

Aliás, vozes. Eu, que detesto longos áudios de WhatsApp, daria tudo por uma coleção específica deles. Com os resmungos, exageros, fofocas e o jeito inesquecível como minha mãe explicava em detalhes, pronunciando perfeitamente vogais e consoantes, o método ideal para se tirar mancha de sofá.

Seria a vida digital, então, a verdadeira vida após a morte? Não a dos espíritos de Allan Kardec ou dos grandes vultos da humanidade, que eternizam seus legados, mas essa permanência acessível e cotidiana. O além enquanto lugar na nuvem, passível de emojis sinceros.

Afinal, podemos ir para o céu, para o inferno, inclusive para o nada. Certeza, mesmo, apenas a dessa reencarnação promovida não por um Deus, mas pelas operadoras de celular: quando o número de telefone enfim muda de dono e nos deparamos com a foto de um estranho entre nossos contatos. Mero invólucro de pixels.

É por isso que tantos perfis continuam no ar, feito memoriais. Deles surge toda sorte de atualizações, como votos de saudade e feliz aniversário. Memórias datadas de "há tantos anos, neste dia".

Deixo lá meus likes como se depositasse pedrinhas no jazigo dos entes queridos. Seguem mortos, mas não desconectados da nossa realidade. Até que chegaremos, juntos, ao dia do Delete Final.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Fascismo brasileiro é de manual


Outro dia, no Twitter, observei que apoiadores do governo –e seus bots, que se multiplicaram nas últimas semanas– demonstram grande nervosismo quando são chamados de fascistas.

Um deles, não sei se humano ou robótico (faz diferença?), me desafiou a definir a palavra e apresentar um único argumento em defesa da afirmação. Um só? Que tal 14?

bolsonarismo não é apenas uma forma de fascismo. É uma forma especialmente bem acabada daquilo que o pensador italiano Umberto Eco (1932-2016) chamou de "Ur-fascismo" ou "fascismo eterno". É fascismo de manual.

Numa conferência de 1995, incluída no livro "Cinco Escritos Morais" e depois publicada à parte como "O Fascismo Eterno" (Record, ambos), o ex-menino levado a cultuar Mussolini faz uma lista de 14 características do fascismo.

Ressalva que nem todos os requisitos precisam ser preenchidos para haver fascismo, pois este tem certa maleabilidade. No caso do bolsonarismo, todos os 14 são, como veremos.

Primeiro é preciso entender como, sendo tão fascista, o bolsonarismo pode ter a pretensão de se esquivar de uma palavra que veste como luva.

Isso se deve a uma deterioração da linguagem iniciada há décadas, quando, talvez por se julgar a salvo do fascismo real, parte da esquerda passou a empregar a palavra de modo abrangente demais, esvaziando-a.

A ideia era xingar adversários políticos em geral ou denunciar o autoritarismo cotidiano, as pequenas violências que dormem no subsolo da civilidade. No dia em que um acadêmico chamou Caetano Veloso de fascista (meninos, eu vi!), ficou claro que a palavra já não prestava.

No entanto, hoje precisamos dela como nunca, e não só no Brasil. Será possível devolver à palavra fascista seu gume, sua gosma, seus engulhos?

Vou resumir a lista de Eco e acrescentar, de forma bem sucinta e incompleta, alguns dos muitos dados históricos que fazem do bolsonarismo um fascismo modelar.

Os três primeiros itens são o culto da tradição ("ah, o regime militar, ah, o Império..."), a recusa da modernidade ("vacina mata, a Terra é plana") e o ódio à cultura ("artista é tudo vagabundo").

Em seguida vêm a negação do pensamento crítico, do debate e da negociação ("o STF é o inimigo") e dois itens que dispensam explicação, por serem bolsonarismo puro: o medo do diferente e o ressentimento nascido do fracasso individual ou social (Mário Frias à frente da cultura etc.).

Os itens seguintes são nacionalismo ("Brasil acima de tudo"), humilhação diante da suposta riqueza do inimigo ("abaixo a lei Rouanet, como pode minha empregada ir à Disney, cadê os bilhões dados aos regimes de esquerda?"), culto à guerra permanente e "elitismo de massa" –que, para diferenciar do aristocrático, Eco associa à hierarquia militar.

Os requisitos de números 11 e 12 são o culto do herói ("mito, mito", mas serve até Daniel Silveira) e este candidato a alegoria mais vistosa do desfile bolsonarista, o desvio da potência sexual para as armas. "Seus jogos de guerra são devidos a uma inveja do pênis permanente", diz Eco.

Completam a lista o "populismo qualitativo", em que o líder afirma falar pelo povo e isso basta, pois este, o povo, não passa de "ficção teatral" (como nas motociatas); e aquilo que George Orwell batizou de "novilíngua", uma linguagem empobrecida e sistematicamente deturpada.

Que vem a ser, claro, o que permite a um fascista dizer que não é fascista, não, imagina! Olho vivo com essa cambada.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Vai ter golpe


Saudade da época de poucas certezas. A minha única era que "amanhã é um novo dia". Parece-me, hoje, uma mistura de ingenuidade juvenil com crença na imortalidade, mas um tanto de boçalidade. Não faço ideia de como não morri lá atrás, não apenas uma vez, mas inúmeras delas, tal a certeza de que amanhã teria sempre um novo dia.

Mas se, de um lado, eu dava como certo que, fizesse chuva ou sol, o amanhã estaria ali na curva do horizonte, do outro lado, o que girava a roda da vida era um redemoinho de incertezas —e isso não era ruim. O futuro sem respostas, mas cheio de possibilidades, é ainda mais bonito do que um novo amanhecer.

Nessa curva da vida, imaginava que as certezas fossem chegando e que, enfim, me cansasse da adrenalina e pudesse só me acomodar numa caminhada com menos solavancos, mas com menos riscos de não estar aqui para um novo dia. A vida é uma coisa bem fácil de ser gostada, e a gente vai se apegando quanto mais o fim fica mais perto do que o começo.

E embora saiba mais coisas sobre a vida, sobre os homens, sobre a miséria humana, as certezas viraram desassossegos que têm consumido a mim e a todos ao meu redor a cada novo dia. Às vezes, tudo o que eu queria era só um tédio bem gostoso para abraçar e dormir mais um pouco. Mas o marasmo em que vivemos é só o das piores certezas.

Pode ser só pessimismo ou maturidade e overdose de informação. Nada se compara à ressaca que as notícias têm provocado. Nem vinho de garrafão me derrubava tanto quanto as manchetes dos jornais hoje.

Vai ter golpe. Bolsonaro só pensa nisso. As Forças Armadas estão ajoelhadas. As instituições não estão funcionando. O Legislativo e o Judiciário estão acovardados. A oposição ficou presa em 2002. A imprensa está falando com as paredes. E as paredes estão fazendo dancinhas no TikTok. Nunca haverá o Brasil que nos foi prometido. Amanhã pode não ter mais amanhã.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

terça-feira, 3 de maio de 2022

A crise existencial dos óvulos de uma mulher que não quer ser mãe


Sou um gameta reprodutivo feminino, conhecido como óvulo, e passei a maior parte da minha vida em um ovário, aguardando minha vez na fila da ovulação.

Fui condicionado a esperar um espermatozoide com uma linda narrativa de superação após vencer uma corrida insana entre milhões de adversários. Uma espécie de Usain Bolt que me fecundaria e, juntos, nos tornaríamos um só zigoto. Posso soar romântico, mas não me deram escolha a não ser me portar como uma Bela Adormecida que espera passivamente pelo príncipe encantado.

Eu sabia que a mulher que nos carregava não tinha a intenção de gerar filhos. Porém, nutria a esperança de uma gravidez não planejada, como quem espera um milagre. Orava por uma noite de excessos coroada por uma transa casual desprotegida que garantiria meu final de conto de fadas. É claro que minha progenitora não teria a mesma sorte, mas isso não era problema meu.

Essa esperança se tornava, a cada dia, mais escassa. Assim como meus companheiros, que, mês a mês, tinham sempre o mesmo destino. Não eram fecundados e se transformavam em menstruação, desembocando num copinho menstrual. Um final anticlimático para nós, mas recebido com alívio pela portadora do sistema reprodutor do qual fazíamos parte.

Pelo menos nossos guerreiros não se rendiam facilmente, agarrando-se nas paredes do endométrio, forçando o útero a expulsá-los com contrações cujo resultado era uma cólica brutal. Essa vingança era a única alegria que nos restava, já que o clima da fila não era dos mais animados. Vivíamos em constante crise existencial, oscilando entre o niilismo e o fanatismo religioso.

Até que, certo dia, algo estranho aconteceu. Fui capturado por uma agulha que me separou de meus irmãos. Tamanha foi minha surpresa ao descobrir que a mulher que um dia chamei de lar cedeu às pressões sociais e foi convencida por sua ginecologista a gastar milhares de reais para me congelar e assim postergar sua decisão de engravidar, ou não.

Hoje, mergulhado em nitrogênio líquido numa temperatura de 196 graus negativos, percebo que a vida nos ovários não era tão ruim assim. Talvez tenha me tornado muito frio, mas não acredito que ela voltará para me buscar. Observando o mundo aqui fora, compreendo enfim sua resistência. Devia ao menos ter trazido um agasalho.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Na eutanásia, o direito de morrer pode virar dever de morrer para os pobres


A eutanásia costuma render bons debates. Por eutanásia, entenda-se: o procedimento médico que termina com a vida do doente.

Mas o que dizer do artigo de Yuan Yi Zhu para a Spectator sobre a generosidade do Canadá na aplicação da lei que permite eutanasiar os mais pobres do país?

Dito assim, parece piada. De certa forma, é: de mau gosto. Conta o autor que, em 2016, o parlamento canadense aprovou a lei que permite a eutanásia para todos aqueles que sofrem de doença terminal e cuja morte é "razoavelmente previsível". Até aqui, nada de novo.

Cinco anos depois, o mesmo parlamento abandonou o "razoavelmente previsível" e a condição "terminal" da doença. A eutanásia passou a ser possível, também, para quem é portador de doença ou deficiência que não pode ser aliviada de uma forma que o indivíduo considere "aceitável".

É aqui que o "slippery slope" —declive escorregadio, em tradução literal, e que indica uma consequência não prevista na intenção original— começou a fazer as suas vítimas, sobretudo entre os mais pobres.

Conta Yuan Yi Zhu que há casos de doentes (pobres) que foram pressionados por médicos e enfermeiros para que abreviassem a sua estada terrena. Os cofres públicos agradeciam.

Outros, na mesma condição de penúria, nem precisaram de incentivo e avançaram diretamente para a porta da saída. Falamos de pessoas portadoras de deficiência ou até com alergias incapacitantes.

Valerá a pena viver quando não há dinheiro para tratar da saúde? Não vale, terão concluído.

Para os defensores da lei, no Canadá e não só, falamos sempre de "autonomia" individual. Mas será que falamos mesmo?

Tempos houve em que as almas mais progressistas tinham cuidado no uso da palavra. "Autonomia", diziam elas, não poderia ser confundida com o conceito negativo de liberdade, segundo o qual eu sou livre (e autônomo) quando posso agir sem ser intencionalmente coagido por terceiros.

Exemplo: se eu quero viajar para o Brasil e não existe nenhuma autoridade policial que me impede de o fazer, a minha autonomia foi respeitada.

Uma ilusão, contrapunham os originais progressistas: se eu não tenho dinheiro para viajar para o Brasil, é indiferente saber se as fronteiras estão abertas ou fechadas. Eu simplesmente não sou livre e autônomo no sentido mais profundo.

O mesmo vale para a educação ou para a saúde: os indivíduos continuarão privados da sua autonomia se viverem vidas de ignorância ou doença.

Ou, como afirmava Herbert Samuel (1870 - 1963), "não existe verdadeira liberdade se um homem está confinado e oprimido pela pobreza, por horas excessivas de trabalho, pela insegurança da sua existência". E concluía: "Para se ser verdadeiramente livre é preciso estar liberto de tudo isso."

Eis o ponto desses primeiros progressistas: a autonomia individual depende do bem-estar da comunidade. Pensar o contrário é uma rendição ao darwinismo social em que só os mais ricos e fortes têm vez.

A experiência canadense, tal como relatada por Yuan Yi Zhu, é a prova de como o novo progressismo é muito semelhante ao darwinismo social. Quem tem dinheiro tem acesso a cuidados médicos e paliativos. Quem não tem olha para a eutanásia com outros olhos.

Nesse contexto, afirmar que os indivíduos são sempre os melhores juízes em causa própria revela um cinismo arrepiante.

Como negar que aquilo que um indivíduo deseja é também determinado pelas condições materiais, familiares e psíquicas em que se encontra?

Como negar que serão sempre os mais pobres que se encontram em situação de vulnerabilidade?

E estamos apenas no início, escreve Yuan Yi Zhu: no próximo ano, a doença mental será razão suficiente para justificar a morte, o que não deixa de ser um paradoxo. Como sustentar que alguém psiquicamente diminuído está na plena posse das suas faculdades mentais para tomar uma decisão terminal?

Nas discussões sobre a eutanásia, as atenções estão sempre concentradas no "direito de morrer". Mas não pode existir discussão séria que ignore a possibilidade do "direito de morrer" se converter no "dever de morrer".

Os mais pobres sabem disso.


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

Não tem volta


O anúncio do afrouxamento das medidas sanitárias não trouxe a euforia esperada. Exaustão, tristeza, inadaptação ao que era habitual, respostas agressivas, decisões inesperadas, atos impensados, são sinais de que nem toda perda é reparável.

Dois anos usando máscara, sem aulas presenciais, sem festas, sem encontros não voltam. Mais de 660 mil mortos não voltam.

Sonhos de esportistas —com suas microjanelas de oportunidade—, sonhos profissionais, empregos, moradias, sonhos de sair de sob a linha da miséria são algumas das incalculáveis perdas, que o fim da pandemia não vão refrescar. Estamos num longo e importante processo de ver o que sobrou depois que a tempestade passou sem que os ventos tenham parado inteiramente de soprar.

A alegria de encontrar amigos, ir a festas, pular Carnaval e, em algumas circunstâncias, poder tirar a máscara são enormes e devem ser comemoradas, mas são pontuais e não dão a devida dimensão do acontecimento pelo qual ainda passamos.

É duro reconhecer que estamos nos deparando com mais um momento difícil e discriminar o que está em jogo agora. Depois de tanto tempo segurando a onda, fazendo sacrifícios conscientes, muitos de nós estão fazendo o inventário das perdas e das mudanças.

As crianças pequenas que deveriam estar se abrindo para a vida além da família, os jovens começando os jogos sociais e sexuais, os velhos com os poucos anos que lhes restam, todas as fases foram afetadas e prejudicadas pelas imposições pandêmicas.

Experiências de vida foram irremediavelmente perdidas e algumas relações não sobreviveram à provação. Separações em cartório bateram recorde em 2021 segundo levantamento do CNB (Colégio Notarial Brasileiro) e a OMS aponta um aumento de 25% nos diagnósticos de ansiedade e depressão desde o início da crise sanitária.

Podemos —e devemos— culpabilizar o descaso do governo federal, a exploração política da catástrofe que se abateu sobre nós, a irresponsabilidade que multiplicou as perdas materiais e as mortes, mas um ponto parece difícil de admitir: o imponderável. Trata-se de reconhecer que no percurso de uma vida as coisas não saiam como o esperado e que algo atravesse nossa existência deixando uma marca indelével.

Na nossa fantasia onipotente de controle e predição, admitir que a vida daqueles a quem tentamos cuidar e a nossa saiu dos trilhos cria tamanha frustração que não é difícil colocá-la na conta do outro. Sejam os companheiros/as, os pais, os professores, os amigos e vizinhos, o mal-estar tem explodido nas relações sociais, pois não estamos acostumados a reconhecer que existam experiências que escapam totalmente ao nosso controle. Acostumados a judicializar cada injustiça vivida e a buscar o "Procon da vida" —um lugar/pessoa onde poderíamos reclamar de tudo— vemos a criação de bodes expiatórios para extravasar o sofrimento sem culpados.

Reitero que há muitos culpados na má administração dessa crise que devem ser criminalizados, mas que sejamos contemporâneos desse acontecimento tão nefasto, como foram nossos ancestrais diante de outras mazelas sociais, é contingência histórica que nos escapa totalmente.

Estamos vislumbrando o retorno à vida sem o pano de fundo do vírus, e é nesse momento que teremos que recolher os caquinhos e assumir que fomos testemunhas dessa tragédia de proporções mundiais. Também fomos testemunhas da ditadura, nossos pais das grandes guerras, avós foram testemunhas da escravidão, outros da invasão das terras indígenas e assim sucessivamente.

Podemos dar o exemplo, para as próximas gerações, de como nos viramos quando nossa vez chegou. Que seja sem heroísmos e sem bravatas, mas assumindo que não tem volta.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo