terça-feira, 3 de maio de 2022

Não tem volta


O anúncio do afrouxamento das medidas sanitárias não trouxe a euforia esperada. Exaustão, tristeza, inadaptação ao que era habitual, respostas agressivas, decisões inesperadas, atos impensados, são sinais de que nem toda perda é reparável.

Dois anos usando máscara, sem aulas presenciais, sem festas, sem encontros não voltam. Mais de 660 mil mortos não voltam.

Sonhos de esportistas —com suas microjanelas de oportunidade—, sonhos profissionais, empregos, moradias, sonhos de sair de sob a linha da miséria são algumas das incalculáveis perdas, que o fim da pandemia não vão refrescar. Estamos num longo e importante processo de ver o que sobrou depois que a tempestade passou sem que os ventos tenham parado inteiramente de soprar.

A alegria de encontrar amigos, ir a festas, pular Carnaval e, em algumas circunstâncias, poder tirar a máscara são enormes e devem ser comemoradas, mas são pontuais e não dão a devida dimensão do acontecimento pelo qual ainda passamos.

É duro reconhecer que estamos nos deparando com mais um momento difícil e discriminar o que está em jogo agora. Depois de tanto tempo segurando a onda, fazendo sacrifícios conscientes, muitos de nós estão fazendo o inventário das perdas e das mudanças.

As crianças pequenas que deveriam estar se abrindo para a vida além da família, os jovens começando os jogos sociais e sexuais, os velhos com os poucos anos que lhes restam, todas as fases foram afetadas e prejudicadas pelas imposições pandêmicas.

Experiências de vida foram irremediavelmente perdidas e algumas relações não sobreviveram à provação. Separações em cartório bateram recorde em 2021 segundo levantamento do CNB (Colégio Notarial Brasileiro) e a OMS aponta um aumento de 25% nos diagnósticos de ansiedade e depressão desde o início da crise sanitária.

Podemos —e devemos— culpabilizar o descaso do governo federal, a exploração política da catástrofe que se abateu sobre nós, a irresponsabilidade que multiplicou as perdas materiais e as mortes, mas um ponto parece difícil de admitir: o imponderável. Trata-se de reconhecer que no percurso de uma vida as coisas não saiam como o esperado e que algo atravesse nossa existência deixando uma marca indelével.

Na nossa fantasia onipotente de controle e predição, admitir que a vida daqueles a quem tentamos cuidar e a nossa saiu dos trilhos cria tamanha frustração que não é difícil colocá-la na conta do outro. Sejam os companheiros/as, os pais, os professores, os amigos e vizinhos, o mal-estar tem explodido nas relações sociais, pois não estamos acostumados a reconhecer que existam experiências que escapam totalmente ao nosso controle. Acostumados a judicializar cada injustiça vivida e a buscar o "Procon da vida" —um lugar/pessoa onde poderíamos reclamar de tudo— vemos a criação de bodes expiatórios para extravasar o sofrimento sem culpados.

Reitero que há muitos culpados na má administração dessa crise que devem ser criminalizados, mas que sejamos contemporâneos desse acontecimento tão nefasto, como foram nossos ancestrais diante de outras mazelas sociais, é contingência histórica que nos escapa totalmente.

Estamos vislumbrando o retorno à vida sem o pano de fundo do vírus, e é nesse momento que teremos que recolher os caquinhos e assumir que fomos testemunhas dessa tragédia de proporções mundiais. Também fomos testemunhas da ditadura, nossos pais das grandes guerras, avós foram testemunhas da escravidão, outros da invasão das terras indígenas e assim sucessivamente.

Podemos dar o exemplo, para as próximas gerações, de como nos viramos quando nossa vez chegou. Que seja sem heroísmos e sem bravatas, mas assumindo que não tem volta.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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