quarta-feira, 18 de maio de 2022

Às vezes parece que o Rio não tem jeito, mas bastava o fim da espécie humana


Durante a pandemia, uma amiga se mudou pra casa dos pais na serra e entregou o apartamento. Deixou os móveis num depósito por dois anos.

Quando foi resgatar, estavam irreconhecíveis. O mofo tinha tingido tudo de verde. Em cada almofada tinha brotado um ecossistema particular de fungos e líquens.

A praia, no Rio, não existe somente em estado líquido, mas gasoso. Ela vai até você, não importa onde esteja. Gotículas invisíveis umedecem tudo o que sol toca —mas sobretudo os lugares em que ele não alcança.

O ar, no Rio, pesa o dobro. Por isso atrasamos. Romper a umidade relativa do ar custa esforço. Pra levantar da cama não se luta só contra a gravidade, mas também contra o vapor. Não se sai do lugar sem rasgar essa esponja.

Biscoito e bolacha têm expectativas de vida muito diferentes. A bolacha, em São Paulo, pode respirar por uma semana e continuar crocante. O biscoito, coitado, não resiste a poucas horas de contato com a atmosfera sem amolecer pra todo o sempre. A umidade tem uma fome implacável.

Morei no Horto, ao lado do Jardim Botânico. Não podia passar uma semana sem limpar a parede atrás dos quadros. Qualquer descuido e se formava uma camada grossa de limo por detrás da moldura, acolchoando os quadros com um carpete verde.

Precisei colocar grades na janela pra impedir a invasão de macacos pregos, que abriam armários e devoravam potes de biscoito. Na casa de um amigo, não encontrando nada pra comer, os macacos vandalizaram a casa, em protesto. Quebraram vasos e espalharam cocô pelas paredes.

A natureza, aqui, não pede licença. Oitis crescem no espaço ínfimo entre o meio fio e a calçada. Tentáculos de jaqueiras desgovernadas criam vulcões na pedra portuguesa. O asfalto está cheio de cicatrizes queloides causadas pela insistência de amendoeiras e suas raízes tectônicas.

O Rio de Janeiro não é uma cidade que deixou crescer, no meio, uma floresta. Isso daqui é uma floresta que, por distração, deixou crescer, no meio, uma cidade.

Hoje moro perto do mercadinho São José, fechado há uns dez anos. Uma espiadela por entre as frestas do portão trancado deixa entrever uma mata densa, tropical, cerrada, com direito a pássaros e saguis. Basta um piscar de olhos pra brotar um novo bioma.

Às vezes parece que o Rio não tem jeito. Mas basta que a gente desapareça. Pelo menos por um tempo.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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