sábado, 28 de maio de 2022

Quem agradece em português acaba sempre criando uma obrigação


Estar no Brasil é, embora quase ninguém o note, um constante incentivo à criatividade e à invenção. Quando agradeço a um brasileiro, ouço quase sempre: imagina! E eu, obedientemente, imagino mesmo.

Na maior parte das vezes, tenho de começar por imaginar a própria palavra "imagina", porque me dizem apenas: "magina!". Uma das coisas que imagino é que me estão a tratar por Gina e a assinalar a minha maldade por ter agradecido.

"Obrigado."

"Má, Gina!"

Esta, claro, é uma das perigosas consequências de me mandarem imaginar.

Quando agradecemos, em português, exprimimos um compromisso. Em espanhol e italiano, eles dizem "gracias" e "grazie". Ou seja, dão graças pelo que receberam.

Em francês é igual: quem diz "merci" celebra uma graça, uma mercê. E em inglês e alemão acontece o mesmo.

No entanto, "obrigado" é coisa séria. Não se trata apenas de ficar grato. É a forma abreviada de dizer "fico-lhe obrigado". Estabelecemos a obrigação de retribuir o favor.

Como se não bastasse, há quem não se satisfaça com esse encargo que impõe a si mesmo, e recusa ficar apenas obrigado. Fica muito obrigado. Ou até obrigadíssimo.

A palavra obrigado tem lá dentro a palavra ligado. Através do mesmo processo linguístico utilizado pelas pessoas que dizem "probrema", nós transformamos em "obrigado" o original latino "obligado". O que significa que nós anunciamos uma ligação à pessoa a quem agradecemos. Ficamos ligados a ela. Quando nos respondem "por nada", estão a desobrigar-nos dessa promessa. Não temos por que ficar obrigados.

Mas, quando exclamam "imagina!", estão a fazer mais do que apenas dispensar-nos de uma retribuição. Estão a xingar-nos por termos considerado que essa retribuição seria sequer devida. "Imagina", no fundo, significa: "Imagina! Nunca ouvi tamanha bobagem! A sua proposta é completamente absurda!".

É um modo muito cruel de escarnecer da nossa boa educação. Aquele "imagina!" é, na verdade, um "por amor de Deus, não seja ridículo". Pelo menos, é isso que eu imagino.


Texto de Ricardo Araúo Pereira, na Folha de São Paulo

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