O assassinato de Kathlen Romeu, jovem de 24 anos e grávida, com um tiro de fuzil no Complexo do Lins, no Rio, representa mais um duro golpe da guerra falida e sem heróis que rege o enfrentamento à questão das drogas no Brasil. Um conflito que não nos deixa tempo para chorar a morte das vítimas antes da próxima tragédia. A epidemia de homicídios, em meio à pandemia do coronavírus, nos mantém em luto permanente.
Jackelline de Oliveira Lopes, mãe de Kathlen, afirmou que a bala não era perdida, mas direcionada. E ela está certa. O caminho das balas é uma escolha da antipolítica de segurança pública, que prioriza a letalidade como estratégia, em vez de proteger cidadãos e os próprios policiais.
O Brasil é líder em mortes por armas de fogo no mundo. Sete em cada dez homicídios no país ocorrem por tiro. Ao mesmo tempo, o país está na lanterna dos avanços em políticas de drogas no nosso hemisfério. E não por acaso: essas questões estão interligadas. A política de drogas brasileira estimula o confronto e a aniquilação, e não respeita o devido processo legal.
É essa política que legitima, para uma parte da sociedade, que jovens, em sua maioria negros, paguem com a vida uma falsa promessa de segurança. A política de drogas equivocada que escolhemos alimenta a corrida armamentista que não tem fim e permite o domínio e as disputas territoriais nas favelas. Ela também sustenta a corrupção policial, inclusive o desvio de armamento e munições para traficantes e milicianos. É essa política que direciona a bala que atingiu Kathlen e seu bebê.
Esse ciclo perverso precisa ser interrompido.
Atuo no tema de políticas de drogas desde 2007. Fui coordenadora-executiva de comissões internacionais que fizeram estudos e propostas, já adotadas por vários países, para enfrentar o problema das drogas com enfoques em saúde, direitos humanos, justiça criminal, economia, cultura, educação. No meu livro “Drogas - As Histórias que Não Contaram”, demonstrei como a guerra às drogas é uma guerra às pessoas, e quanto o tema exige soluções inteligentes e articuladas, muitas delas já existentes.
Nos Estados Unidos, onde nasceu a guerra às drogas, 17 estados, mais o Distrito de Columbia, regularam o uso adulto da Cannabis. Atualmente, 48 dos 50 estados norte-americanos têm alguma previsão de uso medicinal de maconha. Da mesma forma que no Canadá, no Uruguai e em dezenas de outros países, não houve nenhuma catástrofe social com a descriminalização ou regulação do uso adulto de maconha.
O que se viu foi o contrário. Os jovens ganham mais proteção, e o Estado, mais dinheiro de impostos para investir em saúde, educação e prevenção, com abordagens de fortalecimento comunitário. Essa proposta e muitas outras estão detalhadas no relatório “Sob Controle”, da Comissão Global de Políticas de Drogas, e em inúmeras pesquisas e livros, nos quais especialistas detalham possíveis saídas para o Brasil.
O caminho passa pela prevenção, redução de danos, descriminalização do uso de todas as drogas, regulação do uso adulto da Cannabis, e estudos sobre como regular outras drogas. Também é preciso redirecionar as ações repressivas do Estado para o crime organizado e autores de crimes violentos. O foco precisa estar em retirar armas e dinheiro desses grupos. Além disso, oferecer penas alternativas para quem pratica delitos não violentos.
A pandemia de Covid-19 revelou um novo tipo de herói: equipes médicas que privilegiam o acolhimento e a dedicação para salvar vidas. É desses profissionais que precisamos para cuidar dos dependentes químicos. A guerra às drogas produziu apenas vítimas, que choramos e recordamos até a morte seguinte. Não precisa ser assim, já passou da hora de exigirmos o seu fim.
Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo.
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