segunda-feira, 14 de junho de 2021

Quando um comércio antigo fecha, as histórias são embrulhadas para viagem


As letrinhas tinham espaçamento desigual. Várias, inclusive, faltavam. Mesmo assim, achei poético que o toucinho do céu estivesse entre o suspiro e o sonho naquele típico cardápio de parede, logo embaixo do sanduíche de pernil.

“Ernestinho, sobe lá a buscar para a moça”, gritou Seu Manuel. “A menina vai levar a balança também?”

Já passava das nove da manhã. E, sim, eu também levaria a balança. Fosse em outros tempos, a Panificação Rainha estaria num entra-e-sai de alunos cabulando aula, motoristas de ônibus, frequentadores do templo taoísta e notívagos caídos da cama. No ar, o perfume inconfundível de café coado em tecido.

Agora, apenas fumaça vindo da rua. E Seu Ernesto empoleirado numa escada dobrável, supervisionado pelo irmão. Do alto de seus 80 anos, totalmente sozinhos, os dois senhores tentavam despregar a tabela de preços com uma chave de fenda. Não saiu fácil, lógico: ela estava ali desde 1967.

Para tristeza dos súditos locais, a Rainha contraiu dívidas. E a exemplo de tantos outros comércios, precisou fechar as portas na pandemia. Antes, porém, pendurou plaquinha anunciando liquidação total —40% de desconto, 100% de desapego.

Quando cheguei, quase tudo já tinha sido vendido. Spoiler: Seu Ernesto e Seu Manuel iam passar o ponto com toda a dignidade necessária. “Faz parte da vida, né? Bola para frente”, dirão alguns. “Deve virar farmácia. Ou Smart Fit.”

Infelizmente, não nasci com o dom do pensamento neoliberal. Para mim, cada estabelecimento que fecha é uma história que se perde. Se envolve uma família de imigrantes ganhando a vida, fico mais tocada ainda. Sou manteiga derretida. O pão quentinho da Rainha não me deixaria mentir.

“A menina não quer mais nada?” Seu Manuel, que pergunta difícil. Querer, mesmo, eu queria “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Assim diria meu avô, encostado no balcão, pedindo um Toddy e uma fritada de queijo.

Fui até o caixa. “Crédito ou débito?” Passei a balança antiga, que transformarei em fruteira. A tabela de preços, que vai para o escritório de um amigo. Mas peraí, que tinha outra coisa. “Por favor, Seu Manuel, inclui na conta.”

Ironia das ironias, era um daqueles porta-rolos com papel de embrulho. E na terna estampa de flores, agradecendo a preferência em looping, o único pedido que não poderei mais atender. “Volte sempre. Volte sempre. Volte sempre”.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

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