A luz da viatura ainda girava lá fora. E aqueles dois policiais me olhando muito sério. “A senhora pode achar estranho, mas é possível que a sua residência tenha sido arrombada por um masterchef.”
Impactante essa informação, né? Também achei. Mas separa. Deixa marinando que a gente volta a ela.
Tudo se deu num pós-Réveillon, quando cheguei de viagem e encontrei a porta lateral de casa estraçalhada. Por sorte, os meliantes só haviam conseguido acessar a cozinha. E sem nada de valor à vista, pegaram apenas utensílios de metal que podiam ser repassados e derretidos. Ou, pelo menos, essa era uma explicação. Mas não —a dupla de investigadores do caso tinha uma ideia fixa.
“Repete, então, dona: o que foi que levaram?”
“Dois tabuleiros, um bule, uma tagineira de cobre...”
“Como?”, subitamente um deles parou de tomar nota.
“É um tipo de panela que...”
“Sei do que se trata, madame. Ideal para ensopados. Só não entendo a utilidade. Não vejo evidências de que a senhora saiba fritar um ovo.”
Sem me dar o direito de permanecer calada, indagaram o que mais havia sido furtado. Expliquei que um batedor de claras em... “Um fouet”, corrigiu o policial anotador. Nisso, o outro veio lá de fora usando luvas e segurando uma faca de cozinha com a ponta dos dedos. “Encontrei caída no canteiro, não levaram.” Perguntei se iam periciar. “Claro que não, está toda arranhada. A senhora usa faca na pia? Estraga o fio.
Onde está sua tábua de muiracatiara?”
Aí foi demais. Em que momento aqueles meganhas tinham cursado a Loucademia Cordon Bleu de Polícia? Então atinei —essa mistura de empáfia tática e conhecimento aleatório de termos de gastronomia é coisa de viciados em programas de culinária. Isso explicaria o fato dos dois só dialogarem com sotaque francês.
“É isso que você chama de cena do ‘crrrime’, Mendonça?”
“Que ‘marravilha’, Oswaldo!”
Antes de irem embora, insistiram na teoria dos bandidos gourmet e lavaram as mãos. “Fizemos o possível, mas são marginais insaciáveis.” Perguntei se deveria tomar alguma precaução especial. “Já tentou a receita de risoto da Rita Lobo? Dá muito certo.”
E um último conselho. “A contar pelo jeitão da sua casa, eu trataria de instalar um alarme potente. A gangue dos aficionados pelo ‘Decora’ costuma ser bem mais cruel.”
Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo.