quinta-feira, 28 de maio de 2020

Preferimos crer que outros doutrinam crianças, mas nós as deixamos 'livres'



É um fato que sempre me surpreende: os que pensam diferente da gente foram doutrinados; os que pensam como nós não sofreram nem sofrem a influência de nenhum doutrinador.
Por exemplo, chega um menino de oito anos jurando que, se ele se explodir na praça do mercado, será amado pelo profeta e obterá a devoção sexual de 40 virgens. Mesmo se você for muçulmano, achará estranho que, por conta própria, uma criança ache interessante a perspectiva de brincar com 40 virgens. Não seria mais com 40 bonecos Playmobil?
Outro exemplo. Uma turma do ensino fundamental conclama que, pelas leis do materialismo dialético, estamos nos encaminhando inelutavelmente para uma sociedade sem classes, e o partido, com seu “grande líder”, dirige nossa marcha, de tocha levantada. Você vai supor que a tal turma estude numa Coreia do Norte ou outro resto anacrônico do socialismo real, onde as crianças seriam doutrinadas até todas repetirem as mesmas palavras de ordem (que, aliás, se tornaram vazias de tanto serem repetidas).
Outro exemplo ainda. Uma criança de dez anos nos diz que só existe um Deus (o “nosso”, claro), o qual mandou o filho entre a gente para nos redimir dos pecados, mas, mesmo assim, se pecarmos (seja lá o que isso for), ele vai nos jogar no inferno para a eternidade. Será que a gente teria a cara de pau de considerar que esse menino não foi doutrinado por ninguém? E que seu sistema de crenças seria “natural”, espontâneo, isento das catequizações pelas quais passaram as crianças dos primeiros exemplos?
Suponho que meu leitor, mesmo sendo cristão, admitirá que a criança do último exemplo não é mais sábia que as outras, nem menos doutrinada.
Mas não é isso que acontece na vida cotidiana. Em geral, preferimos pensar que os outros doutrinam as crianças, enquanto a gente as deixa “livres” para construírem sua própria visão do mundo, “autêntica” e “natural”, não induzida pela influência dos adultos.
Jean-Jacques Rousseau, no “Émile”, de 1762, sonhou com uma educação em que o saber vingaria como uma flor nas crianças, sem elas precisarem de jardineiros. Os homens sonham com isso há mais de dois milênios.
Heródoto, o historiador grego do século 5º antes de Cristo, fala de uma tentativa de descobrir qual língua as crianças falariam “naturalmente”, se ninguém nunca falasse com elas. Assim, imaginava-se, saberíamos qual é a língua originária dos humanos. As tais crianças foram então criadas por cabras, sem trocas com humanos. Uma delas, enfim, disse a palavra “bekos”. A qual língua pertencia esse vocábulo “espontâneo”? Houve controvérsias inconclusivas, mas eu suspeito que “bekos”, o som que as crianças produziram, fosse a imitação do berro das cabras com a quais elas conviveram: “Bééééé”.
Tudo isso para dizer que qualquer educação é influência. Para evitar que seja doutrinação, podemos apenas exigir que ideias e crenças sempre sejam apresentadas com suas versões discordantes.
Por exemplo, nas escolas públicas, só deveria haver um ensino da religião cristã se houver um ensino equivalente de história das religiões e outro ainda, de ateísmo.
Eu, por exemplo, doutrinado no cristianismo (inevitável na escola pública italiana dos anos 1950), escutei durante anos uma das justificativas mais cretinas da religião, ou seja, a afirmação de que, sem ela, não haveria moral possível. Aguentei no osso, enquanto constatava que havia, ao meu redor, uma quantidade de cristãos para os quais eu nem emprestaria minha bicicleta e uma quantidade de ateus altamente confiáveis.
Enfim, se quisermos uma escola que não doutrine, a dificuldade não será evitar a propaganda esquerdista (cada vez mais ineficiente nos espíritos dos jovens de hoje), mas será a de encontrar a coragem para questionar nossas ideias feitas, a começar por nossas aparentes “certezas” religiosas.
Último exemplo. Um padre decidiu fazer a alegria do presidente e levou para ele um grupinho de crianças adestradas para declarar ao líder supremo que elas não gostam de “ideologia de gênero”.
Bolsonaro, cioso da liberdade dos espíritos das ditas crianças, poderia ter enxotado o tal padre a pontapés na batina —considerando que as crianças não têm a menor ideia do que é ideologia, do que é gênero e ainda menos do que é a misteriosa expressão “ideologia de gênero”.
Mas Bolsonaro gostou —do padre doutrinador e das crianças amestradas. Estamos na Coreia do Norte?

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

terça-feira, 19 de maio de 2020

O drama dos objetos supérfluos durante a pandemia

Nas trevas de um porta-bijuterias, um par de brincos sussurra.

“Não aguento mais ficar preso aqui dentro, já faz mais de dois meses. Será que ela morreu?”
“Morreu nada, dá para ouvir a perambulação pela casa. Tem algo muito grave acontecendo.”
“O que pode ser tão grave? Uma guerra? Uma invasão alienígena? Um apocalipse zumbi?”
“Pior. Acho que ela virou feminista radical.”
“Mas o que isso tem a ver com a gente?”
“Partindo do pressuposto de que o valor de uma mulher não depende de sua adequação às normas de beleza, talvez ela veja o uso de brincos como parte de um ritual de submissão conhecido como performance de feminilidade, que reforça ainda mais as estruturas de dominação patriarcal, entende?”
“Onde você aprendeu isso?”
“Na gaveta de sutiãs não se fala em outra coisa. Eles estão embolorados, com medo de que ela possa fazer uma fogueira com eles a qualquer momento.”
“Esse pessoal anda cheirando muita naftalina, não cai nessa pilha.”
“Corre o boato de que os salto-altos estão cobertos de poeira, a maquiagem apodrece na nécessaire, a gilete oxida no banheiro, os perfumes evaporam nas prateleiras. Por que ela deixaria de se arrumar do dia para noite?”
“Calma, pode ser depressão também. Vamos torcer.”
“Me diz uma coisa. Qual o sentido da existência?”
“O tédio definitivamente não está te fazendo bem, cara.”
“Qual a nossa missão no mundo? Enfeitar um par de lóbulos? Por quê? Pra quê?!”
“Como assim pra quê? O brinco é um dos ornamentos mais antigos. Nossos ancestrais foram usados por imperadores, soldados, piratas, marinheiros, muito antes da gente se tornar símbolo feminino, celebrado em grandes obras-primas como ‘Moça com o Brinco de Pérola’...”
“Onde você aprendeu isso?”
“O que eu faço no meu tempo livre é problema meu.”
“Ela não precisa mais da gente. Ouso dizer que nunca precisou.”
“Fale por você, querido.”
“Queria ter a sua autoestima.”
“Você é idêntico a mim.”
“Eu sou um penduricalho ridículo e irrelevante.”
“Acho que é você quem está com depressão.”
“Tempos sombrios, meu caro.”
“Não fico assim desde que perdi minha tarraxa. Será que ela sente a nossa falta?”
“Que absurdo, tarraxas não têm sentimentos.”
“Eu não estava falando da tarraxa.”

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Devolvam a nossa bandeira

Quando eu era criança, em época de Copa do Mundo eu ajudava a pintar a bandeira do Brasil na rua, em frente à casa dos meus avós. Juntava um monte de gente da família (todo mundo morava meio perto), e eu podia ficar mais tempo brincando com meus primos. A gente também fazia bandeirinhas e pendurava em barbantes pra enfeitar os portões. Quando ia começar o jogo e tocava o hino, ficávamos amontoados na sala cantando com os jogadores (que ainda não eram bilionários e apoiadores de presidente genocida).
Meu avô colocava a mão no peito e minha avó perguntava, preocupada, "é o coração?", mas ele só estava sendo muito patriota. Eu, que sempre fui emotiva além da conta, chorava feito besta e tinha a minha clássica dor de barriga de quem estava tão feliz, mas tão feliz, que passava mal.
Depois, quando mudei de escola, descobri que todos os dias, após o recreio e antes do retorno para a classe, a gente tinha que cantar o hino e ver a bandeira ser hasteada. Confesso que aquele calor do meio da tarde dava um sono danado, mas nós, as meninas, aproveitávamos a fila ao lado dos meninos pra pegar na mão deles. E os professores deixavam, porque achavam que era amor à pátria. E vai ver era mesmo. Muitos namorinhos começaram por causa disso.
Aos 20 e poucos anos eu me inscrevi num prêmio que era o maior sonho de todo aspirante a publicitário, o Young Creatives. Fiquei em 11º lugar, e apenas os dez primeiros iriam pra Cannes com tudo pago e uma agenda infinita de palestras incríveis e festas promissoras. Eu chorei uma manhã inteira quando meu chefe da época, o Pedro Cabral, resolveu me mandar pela agência e ainda me hospedou num hotel bem melhor do que o muquifo em que ficaram as outras pessoas (perdão!).
Eu estava em uma fase em que amava tão absurdamente a minha vida, o meu trabalho, o futuro que me acenava reluzente e essa oportunidade (meu primeiro grande reconhecimento profissional), que quando vi dezenas de bandeiras do Brasil espalhadas pela Riviera Francesa tive medo de que meu coração parasse. Eu sei que é brega o que vou dizer, mas é um longo caminho do Tatuapé para o mundo, e eu senti como se chegasse à Lua e fincasse lá o meu verde e amarelo. Depois de muitas madrugadas ralando feito uma condenada e sofrendo bullying (porque 1- eu levava marmita e 2- a tampa dela era de oncinha), admito que me comovia com o lance do "sou brasileiro e não desisto nunca".
Daí resolvi que queria mesmo era ser escritora, e minha obsessão passou a ser o respeito dentro do meio literário, mais especificamente dentro da panela apimentada por barbudos com orgulho de ganhar parcos reais por página traduzida e feministas com sotaque de colégio-caro-cabeça. E de novo foi puxado. Eu não tinha feito letras ou sociologia na USP e ainda tingia o cabelo de loiro. Me odiaram o quanto puderam até perceberem que eu era legal pacas.
Quando eu já era "aceita", houve um churrasco inesquecível para ver um jogo do Brasil. A CBF, apesar de já ser a CBF, ainda não era estampa de gente ignorante, fascista e nojenta. Acho que foi a última vez que usei verde e amarelo com o orgulho de um nacionalismo romântico pau-brasil e não temendo ser associada a um nacionalismo nazista pau de arara.
Hoje observo meu país agonizar nos corredores cruéis do descaso. Meu hino ser usado por criminosos que disparam armas de pressão contra as janelas de Perdizes. Minha bandeira aquecer dementes que bradam contra enfermeiros e a democracia. Pobre do psicopata que nunca vai sentir tristeza e desespero.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 5 de maio de 2020

Aldir Blanc marcou golaço na história da literatura brasileira

Quando Aldir Blanc completou 50 anos, ganhou de Dorival Caymmi uma declaração daquelas de arrebentar as coronárias. "Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo."
A declaração de Caymmi abre o caminho para que falemos de um Blanc menos conhecido que o letrista genialmorto nesta segunda-feira (4), aos 73 anos, e um dos maiores da história da música brasileira (há quem ache o maior, como este que escreve). O carioca está inteiro, talvez mais que nas letras das canções, nas crônicas de Blanc, um dos grandes nomes do gênero da nossa literatura.
Os subúrbios (no plural, conforme Lima Barreto ensinou), os assombros da infância, a cultura das ruas, o Carnaval, o marido exemplar de olho grande na vizinha, o malandro que vive de pequenos golpes, a católica que recebe o caboclo e sai dando passes nas festas de família, o vascaíno fã do Ademir, o general de pijamas que vez por outra ameaça dar tiros para o alto, o otário, a normalista, a família tijucana, os fantasmas da cidade, os meninos mais levados. Tudo isso forma o mosaico das obsessões blanquianas transformadas em matéria prima pelo escritor.
Já vai distante o ano de 1978, quando Blanc abriu as portas da literatura marcando um golaço –"Rua dos Artistas e Arredores". A compilação de dezenas de colunas publicadas no Pasquim –Blanc estreou no jornal em 1975, com a crônica "Fimose de Natal"– reconstruía as cenas vividas, sonhadas e deliradas pelo menino que passou grande parte da infância em Vila Isabel e apresentava tipos inesquecíveis, como o conquistador barato Esmeraldo Simpatia é Quase Amor, personagem que acabou dando o nome de um dos principais blocos de Carnaval do Rio de Janeiro.
Todos os livros que vieram depois e crônicas de Blanc, inclusive aquelas sobre o jazz, uma paixão, trazem o espanto da infância, mesmo quando aparentemente não é ela que está ali. Numa de suas letras mais reveladoras, a composição "Canário da Terra", parceria com João de Aquino, Blanc finca bandeira no Estácio de Sá, bairro onde nasceu e voltou a morar na entrada da adolescência, depois dos anos de Vila Isabel. "Eu sou da Maia Lacerda e essa merda faz parte de mim."
Essa merda praticada, vivida, delirada e criada nas letras e crônicas de Blanc é mesmo uma forma de viver (e morrer) como o bandido de filme de Velho Oeste em pleno saloon. Se for para ir para o beleléu, o negócio é sacar a arma e meter bronca. Essa é a única sanidade possível em tempos em que a cidade, a escola, o botequim, a universidade, a imprensa, a padaria, a igreja, a seleção brasileira de futebol e a escola de samba viraram empresas
Certa feita, ao prefaciar um livro de Blanc, me recordei de Guimarães Rosa, que começou e terminou o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras pronunciando o nome da cidade em que nasceu, Cordisburgo. A última frase pública de Rosa (que se encantou quatro dias depois da posse na ABL) foi a do homem que se mistura ao chão de onde vem. "Eis aqui Cordisburgo!"
Pois eu imagino hoje um Blanc de cotovelo no balcão, sem fardão e sem penacho, brandindo a máxima que há de se perpetuar nas biroscas, terreiros, e vielas cariocas e se entranhar na rua dos Artistas com a força da linha de frente do Expresso da Vitória atravessando a zaga inimiga. Na comemoração do gol, dizem que uma frase ecoou na hora em que o Blanc, como o Ogum iorubá e seus 10 mil cavalos, beijou a cruz de malta e cravou no chão a espada de menino para se fundir com a terra em que nasceu, viveu, amou e se encantou. "Eis aqui o Rio de Janeiro!"

Texto de Luiz Antonio Simas, na Folha de São Paulo

A cada sexta, me pergunto se essa festa está virando um enterro ou o contrário

Sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020. Eu só queria queimar a largada do Carnaval, mas a largada alagou. Me espremo dentro de um boteco com alguns foliões que também querem se proteger da chuva.
Imprensado contra o balcão, um senhor tenta assistir ao jornal na TV.
O presidente da OMS diz que o número de vítimas do coronavírus é pequeno —1.200 casos em 26 países—, mas é preciso agir logo, se a canoa não virar, eu chego lá, cantamos cada vez mais alto, o
Carnaval está só começando.
Sexta-feira, 13 de março de 2020. Moramos a uma quadra de distância e ela me convidou para tomar uma taça de vinho na sua varanda. Nos cumprimentamos com o cotovelo. Amiga, se eu morrer, que foto minha você vai postar no Instagram? Você não vai morrer. Eu sou asmática e se você escolher uma selfie, volto para assombrar. Me dá um trago disso aí.
Dou. Pactos de saliva valem mais do que os de sangue.
Sexta-feira, 3 de abril de 2020. Recebo um link que me joga em uma sala do Zoom. É uma festa surpresa para mim. Reencontro amigos pixelados, as vozes desencontradas das bocas, o brilho da tela no brilho do olho, fones de ouvido gigantes, ninguém se escuta direito, desliga o microfone que está dando eco, sinto muito pela sua avó, põe uma playlist aí, galera acho que peguei essa merda, ele não vai ter coragem de demitir o ministro da Saúde, cortei a franja sozinha e deu nisso, vamos cantar parabéns,
improvisa com o isqueiro, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida.
Sexta-feira, 17 de abril de 2020. Pedi algumas cervejas. O entregador usa máscara, mas sei que sorri para mim pelas pálpebras. Erro a senha do cartão, de propósito, para que ele fique mais um pouco. Erro a senha de novo, agora deu branco de verdade, estou diante de um verdadeiro herói, quero abraçá-lo, mas a OMS não deixa, maldita transação aprovada, pode cancelar a segunda via, obrigada, boa noite.
Sexta-feira, 1º de maio de 2020. “Qual a boa?”, perguntam no grupo. Live do BaianaSystem com Gilberto Gil, depois Heavy Baile, mas também tem Tereza Cristina, Siba, Só Pra Contrariar, Naiara Azevedo, Edson Gomes, Potyguara Bardo, Pitty, Xande de Pilares, Leonardo, Parangolé, Francisco El Hombre, já me perdi, como o Brasil é grande, nossas lives são as mais animadas, festa a gente sabe fazer. A cada sexta que passa, me pergunto se essa festa está virando um enterro ou se o enterro está virando uma festa.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

domingo, 3 de maio de 2020

Conheça 'Quarentena', poema de Eavan Boland, sobre a Grande Fome

Eavan Boland ensinou inglês na Universidade Stanford por 21 anos. Com a pandemia, ela quis ficar perto das filhas e netos. Voltou no mês passado da Califórnia para a Irlanda e, pelo computador, continuou a dar aulas sobre literatura irlandesa. Até a segunda-feira passada.
Acordou, teve um infarto e morreu à tarde, em Dublin. Tinha 75 anos. Do presidente do país aos meios literários, houve comoção. Ela não é popular porque nenhum poeta o é mais: poesia virou arte de elite.
Mas foi uma voz incisiva, sensível à história e à condição feminina no presente.
Não é pouco. Sobretudo numa terra de escritores arquiconhecidos —Swift, Sterne, Yeats, Shaw, Wilde, Joyce, Beckett, Heaney. Todos eles tensionados pela história da Irlanda, por sua vez marcada pela posição subalterna e atritos com o Reino Unido. Todos eles homens.
Eavan Boland começou a escrever cedo e sua poesia amadureceu devagar. Filha de diplomata, teve uma infância cosmopolita em Londres e Nova York. A volta à Irlanda, insular, foi um estranhamento.
Frequentava rodas literárias em Dublin, mas casou e foi morar num subúrbio pacato.
Teve duas filhas e, como todas as suas vizinhas, cuidava da casa e da família. Contudo, professora, ensaísta e poeta, não era bem como elas. Os terremotos dos anos 1960 não a tiraram do prumo. O primeiro feminismo, um pouco. E a obra de Sylvia Plath, totalmente.
Sua poesia adquiriu aos poucos contundência. Fez versos sobre casamento, menstruação, criar as filhas, mastectomia. Em “Violência Doméstica” e “Uma Mulher sem País”, fez algo meio impossível: foi crítica e convencional, sentimental e seca, evidente e elíptica.
“Quarentena”, de 2001, seu poema mais conhecido, embebe em ácido uma chaga aberta da história irlandesa. E, na forma, se insurge contra a imagem feminina na poesia romântica. É singular, estranho, belo.
Nele, a pior hora é a noturna. A estação letal, o inverno. O ano horrível, 1847. Foi o auge da Grande Fome. Uma praga dizimou todas as plantações de batata da Irlanda, alimento básico dos camponeses empobrecidos e endividados. Ou seja, da maioria acachapante do povo.
Explorados pela aristocracia e hostilizados pela Coroa, durante anos os irlandeses padeceram de fome, frio, epidemias várias. Mais de 1 milhão de pessoas pereceram, 20% da população. Outro milhão emigrou.
A ilha de esmeralda regrediu à treva medieval da peste negra.
Foi o maior desastre sanitário, demográfico e humanitário do século 19. O crítico literário Terry Eagleton —neto de imigrantes irlandeses— chamou-o de “Auschwitz irlandês”, mas pré-moderno. As raízes do nacionalismo, da religiosidade fanática e da luta violenta pela independência estão fincadas na Grande Fome.
“Quarentena” começa com um casal que foge das autoridades. A mulher teve tifo (“famine fever”) e o marido a carrega pela noite gelada até que chegam —e o poema não diz onde. São encontrados enregelados, paralisados num último gesto: ele tenta aquecer os pés dela em seu peito.
Eavan Boland aí se insurge contra poemas de amor, contra o romantismo galante que põe a mulher no pedestal de musa. Seu impiedoso inventário registra a fuga, a dor, o frio. Monossílabos sincopados politizam o amor mudo de um casal, sua busca inútil por calor na escuridão.
Em “Quarentena”, o que sobrevive ao homem e à mulher não é apenas o amor —como em “An Arundel Tomb”, de Philip Larkin. É a Grande Fome, a sociedade que a produziu, da história irlandesa que vem de 1847 e molda o presente. Cinco estrofes condensam a catástrofe.
Eavan Boland reviveu e deu forma ao passado. Inspirou-se em meia dúzia de frases de uma memória da Grande Fome, escrita por um padre no início do século 20. “Minha Própria História”, o livro, dá até o nome dos jovens do poema, Kit e Patrick.
Há uma longa discussão na Irlanda acerca da representação da Grande Fome. Tem-se como assente que ela foi sub-representada: existem poucos romances, peças, poesias, filmes a seu respeito. A sub-representação se estenderia à historiografia, à economia e à sociologia.
Parece ser verdade. Porque a Grande Fome é pouco conhecida fora de lá. Isso se deve mais ao presente que ao passado. Na indústria cultural, por exemplo, Hollywood venceu a Segunda Grande Guerra. Para cada Svetlana Aleksiévitch há cem Spielbergs.
Há infindáveis imagens da peste que hoje engolfa o Brasil. Boa parte delas é chocante, mas vazia. A poesia política pode representar as toxinas de toda uma história?



O Texto é de Mário Sergio Conti, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Não é você, mãe

Daqui a alguns dias lanço um livro. É sobre a relação de uma mulher grávida com a sua família. A protagonista, Karine, narra a genética de esquisitices dos parentes mais próximos, tentando adivinhar
—preocupada e na mesma medida desejosa— se sua filha vai nascer com tal (e tamanha) herança neurótica.

Minha mãe da vida real, que acaba de virar ficcional, porque isso é uma crônica, leu uma prova do livro e está há semanas sem querer muito papo comigo. Ela não se conforma com o tanto que eu posso “fantasiar, mentir e inventar” a respeito da minha história.

Sim, mãe, obrigada por ser a única a perceber isso. Eu não aguento mais quando alguém me pergunta: “Como você se sente expondo tanto a si mesma e as pessoas?”.

Eu sei que eu deveria fazer um texto sobre a pandemia (ou sobre o pandemônio ou apenas sobre o demônio), como todos os cronistas deste jornal, mas eu peço licença para escrever sobre a minha mãe.

Eu gostaria de dizer que ela é a mulher mais linda, engraçada e inteligente que já conheci. E que, por essa frase estar tão mal escrita, ter cara de cartão brega de aniversário e se afastar tanto de parecer literatura, talvez se aproxime da verdade.

Ninguém cozinha melhor do que ela, entende um filme melhor do que ela, fala mal do Bolsonaro melhor do que ela. Eu estudo inglês há três décadas e nunca consegui falar tão bem quanto ela (nem mesmo em português).

Obrigada, mãe, por ter me ajudado financeiramente até eu ter quase vergonhosos 30 anos e por me sustentar psiquicamente até hoje.

Minha mãe é meu maior exemplo de mulher. E é também chata e maluca.

Tem lá no livro uns 20% de fatos verídicos? Ah, sempre tem.

Se eu tocasse violão, certamente daria meus tapas na madeira pra ganhar ritmo. Ninguém é escritor sem ser destrutivo. Ainda assim, mãe, por Deus, não é sobre você.

Ruth, nome verdadeiro da minha amada progenitora, não se conforma com a mãe vulgar, sem dotes culinários, perversa e de palavreado chulo do livro. Essa mulher que é criada a partir de tanta coisa que li e assisti e imaginei. E eu, que sempre escrevi tudo em primeira pessoa, que me exponho como única forma possível de oxigenar meus músculos, preciso dizer: não existe autoficção, romance memorialístico, autobiografia. Tampouco existe ficção pura. Existe literatura e fim de papo.

Eu escrevi um livro chamado “Depois a Louca Sou Eu” sobre uma personagem que se dopa o dia inteiro para suportar a vida. Maluca, insegura, inconstante, apavorada, infantil. Tem lá uns 25% de verdade? Talvez 37%? Como saber?

A obra vendeu bem, e, em todas as entrevistas, jamais me perguntaram da protagonista. Queriam saber como eu fazia pra pagar as contas sendo uma doida que vivia medicada. Eu tenho vontade de esfregar no asfalto mijado a cara da pessoa que me pergunta isso.

Mas eu pago as contas e cuido de tanta gente e trabalho tanto, mas tanto, e escrevo pra jornal e cinema e teatro e televisão e podcast e crio minha filha tão maravilhosamente bem e passo tantas horas estudando psicanálise e lendo e aconselhando amigos e sendo mais equilibrada do que minha fantasia aniquiladora de pessoas jamais imaginou, que me falta tempo pra rejeitar o simplismo.

Mãe, herdei de você a complexidade. Você sabe que um papel jamais será você. Você não é nenhuma coluna, nenhum livro. Nem meu pensamento e jamais minha fala.

Você não é a mãe de um romance ou do meu divã. Você é imensa demais, e nem que passasse uma vida inteira escrevendo eu daria conta.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo