sexta-feira, 1 de maio de 2020

Não é você, mãe

Daqui a alguns dias lanço um livro. É sobre a relação de uma mulher grávida com a sua família. A protagonista, Karine, narra a genética de esquisitices dos parentes mais próximos, tentando adivinhar
—preocupada e na mesma medida desejosa— se sua filha vai nascer com tal (e tamanha) herança neurótica.

Minha mãe da vida real, que acaba de virar ficcional, porque isso é uma crônica, leu uma prova do livro e está há semanas sem querer muito papo comigo. Ela não se conforma com o tanto que eu posso “fantasiar, mentir e inventar” a respeito da minha história.

Sim, mãe, obrigada por ser a única a perceber isso. Eu não aguento mais quando alguém me pergunta: “Como você se sente expondo tanto a si mesma e as pessoas?”.

Eu sei que eu deveria fazer um texto sobre a pandemia (ou sobre o pandemônio ou apenas sobre o demônio), como todos os cronistas deste jornal, mas eu peço licença para escrever sobre a minha mãe.

Eu gostaria de dizer que ela é a mulher mais linda, engraçada e inteligente que já conheci. E que, por essa frase estar tão mal escrita, ter cara de cartão brega de aniversário e se afastar tanto de parecer literatura, talvez se aproxime da verdade.

Ninguém cozinha melhor do que ela, entende um filme melhor do que ela, fala mal do Bolsonaro melhor do que ela. Eu estudo inglês há três décadas e nunca consegui falar tão bem quanto ela (nem mesmo em português).

Obrigada, mãe, por ter me ajudado financeiramente até eu ter quase vergonhosos 30 anos e por me sustentar psiquicamente até hoje.

Minha mãe é meu maior exemplo de mulher. E é também chata e maluca.

Tem lá no livro uns 20% de fatos verídicos? Ah, sempre tem.

Se eu tocasse violão, certamente daria meus tapas na madeira pra ganhar ritmo. Ninguém é escritor sem ser destrutivo. Ainda assim, mãe, por Deus, não é sobre você.

Ruth, nome verdadeiro da minha amada progenitora, não se conforma com a mãe vulgar, sem dotes culinários, perversa e de palavreado chulo do livro. Essa mulher que é criada a partir de tanta coisa que li e assisti e imaginei. E eu, que sempre escrevi tudo em primeira pessoa, que me exponho como única forma possível de oxigenar meus músculos, preciso dizer: não existe autoficção, romance memorialístico, autobiografia. Tampouco existe ficção pura. Existe literatura e fim de papo.

Eu escrevi um livro chamado “Depois a Louca Sou Eu” sobre uma personagem que se dopa o dia inteiro para suportar a vida. Maluca, insegura, inconstante, apavorada, infantil. Tem lá uns 25% de verdade? Talvez 37%? Como saber?

A obra vendeu bem, e, em todas as entrevistas, jamais me perguntaram da protagonista. Queriam saber como eu fazia pra pagar as contas sendo uma doida que vivia medicada. Eu tenho vontade de esfregar no asfalto mijado a cara da pessoa que me pergunta isso.

Mas eu pago as contas e cuido de tanta gente e trabalho tanto, mas tanto, e escrevo pra jornal e cinema e teatro e televisão e podcast e crio minha filha tão maravilhosamente bem e passo tantas horas estudando psicanálise e lendo e aconselhando amigos e sendo mais equilibrada do que minha fantasia aniquiladora de pessoas jamais imaginou, que me falta tempo pra rejeitar o simplismo.

Mãe, herdei de você a complexidade. Você sabe que um papel jamais será você. Você não é nenhuma coluna, nenhum livro. Nem meu pensamento e jamais minha fala.

Você não é a mãe de um romance ou do meu divã. Você é imensa demais, e nem que passasse uma vida inteira escrevendo eu daria conta.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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