Sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020. Eu só queria queimar a largada do Carnaval, mas a largada alagou. Me espremo dentro de um boteco com alguns foliões que também querem se proteger da chuva.
Imprensado contra o balcão, um senhor tenta assistir ao jornal na TV.
O presidente da OMS diz que o número de vítimas do coronavírus é pequeno —1.200 casos em 26 países—, mas é preciso agir logo, se a canoa não virar, eu chego lá, cantamos cada vez mais alto, o
Carnaval está só começando.
Carnaval está só começando.
Sexta-feira, 13 de março de 2020. Moramos a uma quadra de distância e ela me convidou para tomar uma taça de vinho na sua varanda. Nos cumprimentamos com o cotovelo. Amiga, se eu morrer, que foto minha você vai postar no Instagram? Você não vai morrer. Eu sou asmática e se você escolher uma selfie, volto para assombrar. Me dá um trago disso aí.
Dou. Pactos de saliva valem mais do que os de sangue.
Sexta-feira, 3 de abril de 2020. Recebo um link que me joga em uma sala do Zoom. É uma festa surpresa para mim. Reencontro amigos pixelados, as vozes desencontradas das bocas, o brilho da tela no brilho do olho, fones de ouvido gigantes, ninguém se escuta direito, desliga o microfone que está dando eco, sinto muito pela sua avó, põe uma playlist aí, galera acho que peguei essa merda, ele não vai ter coragem de demitir o ministro da Saúde, cortei a franja sozinha e deu nisso, vamos cantar parabéns,
improvisa com o isqueiro, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida.
improvisa com o isqueiro, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida.
Sexta-feira, 17 de abril de 2020. Pedi algumas cervejas. O entregador usa máscara, mas sei que sorri para mim pelas pálpebras. Erro a senha do cartão, de propósito, para que ele fique mais um pouco. Erro a senha de novo, agora deu branco de verdade, estou diante de um verdadeiro herói, quero abraçá-lo, mas a OMS não deixa, maldita transação aprovada, pode cancelar a segunda via, obrigada, boa noite.
Sexta-feira, 1º de maio de 2020. “Qual a boa?”, perguntam no grupo. Live do BaianaSystem com Gilberto Gil, depois Heavy Baile, mas também tem Tereza Cristina, Siba, Só Pra Contrariar, Naiara Azevedo, Edson Gomes, Potyguara Bardo, Pitty, Xande de Pilares, Leonardo, Parangolé, Francisco El Hombre, já me perdi, como o Brasil é grande, nossas lives são as mais animadas, festa a gente sabe fazer. A cada sexta que passa, me pergunto se essa festa está virando um enterro ou se o enterro está virando uma festa.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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