Quando Aldir Blanc completou 50 anos, ganhou de Dorival Caymmi uma declaração daquelas de arrebentar as coronárias. "Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo."
A declaração de Caymmi abre o caminho para que falemos de um Blanc menos conhecido que o letrista genial, morto nesta segunda-feira (4), aos 73 anos, e um dos maiores da história da música brasileira (há quem ache o maior, como este que escreve). O carioca está inteiro, talvez mais que nas letras das canções, nas crônicas de Blanc, um dos grandes nomes do gênero da nossa literatura.
Os subúrbios (no plural, conforme Lima Barreto ensinou), os assombros da infância, a cultura das ruas, o Carnaval, o marido exemplar de olho grande na vizinha, o malandro que vive de pequenos golpes, a católica que recebe o caboclo e sai dando passes nas festas de família, o vascaíno fã do Ademir, o general de pijamas que vez por outra ameaça dar tiros para o alto, o otário, a normalista, a família tijucana, os fantasmas da cidade, os meninos mais levados. Tudo isso forma o mosaico das obsessões blanquianas transformadas em matéria prima pelo escritor.
Já vai distante o ano de 1978, quando Blanc abriu as portas da literatura marcando um golaço –"Rua dos Artistas e Arredores". A compilação de dezenas de colunas publicadas no Pasquim –Blanc estreou no jornal em 1975, com a crônica "Fimose de Natal"– reconstruía as cenas vividas, sonhadas e deliradas pelo menino que passou grande parte da infância em Vila Isabel e apresentava tipos inesquecíveis, como o conquistador barato Esmeraldo Simpatia é Quase Amor, personagem que acabou dando o nome de um dos principais blocos de Carnaval do Rio de Janeiro.
Todos os livros que vieram depois e crônicas de Blanc, inclusive aquelas sobre o jazz, uma paixão, trazem o espanto da infância, mesmo quando aparentemente não é ela que está ali. Numa de suas letras mais reveladoras, a composição "Canário da Terra", parceria com João de Aquino, Blanc finca bandeira no Estácio de Sá, bairro onde nasceu e voltou a morar na entrada da adolescência, depois dos anos de Vila Isabel. "Eu sou da Maia Lacerda e essa merda faz parte de mim."
Essa merda praticada, vivida, delirada e criada nas letras e crônicas de Blanc é mesmo uma forma de viver (e morrer) como o bandido de filme de Velho Oeste em pleno saloon. Se for para ir para o beleléu, o negócio é sacar a arma e meter bronca. Essa é a única sanidade possível em tempos em que a cidade, a escola, o botequim, a universidade, a imprensa, a padaria, a igreja, a seleção brasileira de futebol e a escola de samba viraram empresas
Certa feita, ao prefaciar um livro de Blanc, me recordei de Guimarães Rosa, que começou e terminou o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras pronunciando o nome da cidade em que nasceu, Cordisburgo. A última frase pública de Rosa (que se encantou quatro dias depois da posse na ABL) foi a do homem que se mistura ao chão de onde vem. "Eis aqui Cordisburgo!"
Pois eu imagino hoje um Blanc de cotovelo no balcão, sem fardão e sem penacho, brandindo a máxima que há de se perpetuar nas biroscas, terreiros, e vielas cariocas e se entranhar na rua dos Artistas com a força da linha de frente do Expresso da Vitória atravessando a zaga inimiga. Na comemoração do gol, dizem que uma frase ecoou na hora em que o Blanc, como o Ogum iorubá e seus 10 mil cavalos, beijou a cruz de malta e cravou no chão a espada de menino para se fundir com a terra em que nasceu, viveu, amou e se encantou. "Eis aqui o Rio de Janeiro!"
Texto de Luiz Antonio Simas, na Folha de São Paulo.
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