“Não aguento mais ficar preso aqui dentro, já faz mais de dois meses. Será que ela morreu?”
“Morreu nada, dá para ouvir a perambulação pela casa. Tem algo muito grave acontecendo.”
“O que pode ser tão grave? Uma guerra? Uma invasão alienígena? Um apocalipse zumbi?”
“Pior. Acho que ela virou feminista radical.”
“Mas o que isso tem a ver com a gente?”
“Partindo do pressuposto de que o valor de uma mulher não depende de sua adequação às normas de beleza, talvez ela veja o uso de brincos como parte de um ritual de submissão conhecido como performance de feminilidade, que reforça ainda mais as estruturas de dominação patriarcal, entende?”
“Onde você aprendeu isso?”
“Na gaveta de sutiãs não se fala em outra coisa. Eles estão embolorados, com medo de que ela possa fazer uma fogueira com eles a qualquer momento.”
“Esse pessoal anda cheirando muita naftalina, não cai nessa pilha.”
“Corre o boato de que os salto-altos estão cobertos de poeira, a maquiagem apodrece na nécessaire, a gilete oxida no banheiro, os perfumes evaporam nas prateleiras. Por que ela deixaria de se arrumar do dia para noite?”
“Calma, pode ser depressão também. Vamos torcer.”
“Me diz uma coisa. Qual o sentido da existência?”
“O tédio definitivamente não está te fazendo bem, cara.”
“Qual a nossa missão no mundo? Enfeitar um par de lóbulos? Por quê? Pra quê?!”
“Como assim pra quê? O brinco é um dos ornamentos mais antigos. Nossos ancestrais foram usados por imperadores, soldados, piratas, marinheiros, muito antes da gente se tornar símbolo feminino, celebrado em grandes obras-primas como ‘Moça com o Brinco de Pérola’...”
“Onde você aprendeu isso?”
“O que eu faço no meu tempo livre é problema meu.”
“Ela não precisa mais da gente. Ouso dizer que nunca precisou.”
“Fale por você, querido.”
“Queria ter a sua autoestima.”
“Você é idêntico a mim.”
“Eu sou um penduricalho ridículo e irrelevante.”
“Acho que é você quem está com depressão.”
“Tempos sombrios, meu caro.”
“Não fico assim desde que perdi minha tarraxa. Será que ela sente a nossa falta?”
“Que absurdo, tarraxas não têm sentimentos.”
“Eu não estava falando da tarraxa.”
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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