No escritório de Carlos Heitor Cony, perto do computador, havia duas pequenas reproduções de Goya. Uma correspondia à fase mais atormentada do pintor: embrulhadas em roupas negras, bruxas se acocoravam contra um céu de chumbo.
Ao lado, uma cena galante de arlequins e cortesãs, num parque ensolarado e verde-claro, fazia lembrar que o artista espanhol tivera seu fastígio em pleno século 18, antes que a brutalidade das invasões napoleônicas modificasse sua visão de mundo.
O primeiro quadro, dizia ele, "são meus romances". O segundo, "as crônicas".
De certo modo, Cony aceitava a opinião tradicional, que associa a crônica a um texto sorridente, descompromissado e ligeiro.
A morte de Carlos Heitor Cony priva o país, e a Folha, de um mestre absoluto do gênero –e de um escritor cujo profissionalismo jamais permitiria infringir abertamente as regras prescritas pela convenção.
Seus textos para o jornal foram, portanto, deliciosos de ler, arejados, com um leve perfume de poesia que ele dosava à perfeição.
Mas acontecia de as sombras grotescas das feiticeiras de Goya cruzarem sua memória no meio de uma frase –para serem afastadas num gesto quase que de mau humor, com o qual Cony recuperava a graça exigida pelo gênero jornalístico.
Depois de deixar o seminário, ele se impregnou da filosofia existencialista. Sartre e Camus abriram sua sensibilidade para o absurdo e para a absoluta solidão do indivíduo nas suas escolhas morais.
Pego, meio ao acaso, uma crônica de Cony. Chama-se "Acidente de percurso da química e da gula". Começa assim:
"Não sei bem por que, mas eram considerados primos. Em algum ponto havia uma bifurcação genética e os Almeida da Silva tinham alguma coisa a ver com os Moraes, nossa família materna."
O registro, claro, é o da memória, cotidiana e doméstica. Não se trata, contudo, de recuperar o passado. O narrador não se lembra bem do parentesco; na verdade, nunca soube –e sugere que isso não tem importância.
Surge então o detalhe, este sim memorável: naquele ramo da família havia seis mulheres. "Casaram-se no devido tempo, um dos maridos mexia com produtos químicos, daí que todos eles receberam a classificação coletiva de 'Químicos'".
Apesar de característico, o traço mantém certa imprecisão: "no devido tempo" (quando?), "um dos maridos" (qual?), "mexia" (vendia? Fabricava?), "produtos químicos" (de que tipo?).
Pouco importa. O fato de serem chamados de "químicos" não interfere em nada no desenvolvimento da história, que se concentra no fato de que esses parentes eram "vorazes".
"A especialidade deles", continua Cony, "era frequentar festas em que havia bufê." O líder do grupo, chamado Eurico, vivia da renda de "cinco casas no Cachambi". Dormia "até tarde e, à tarde" (note-se o falso descuido ao repetir a palavra), "gostava de Vicente Celestino e empadinhas de camarão".
Nada disso, parece dizer Cony, tem importância ou razão de ser. Vivemos num universo em que as coisas são simplesmente assim. Poderiam ser quatro casas, poderiam ser em outro bairro, poderia ser outro cantor, poderia ser outro salgadinho. Nada disso modifica nada.
A turma fica sabendo de um casamento rico, mas o convite por escrito não veio. A festa seria na casa de um "comerciante de queijos" na rua Sacadura Cabral. Ou seria em outra rua? Talvez a Gago Coutinho?
Naquele mundo arbitrário do texto, em que um detalhe poderia ser outro qualquer, eis que a imprecisão, a falta de motivos para que algo seja o que é, contamina os próprios personagens –também eles se confundem no específico, trocam uma coisa por outra qualquer.
Terminam parando no lugar errado –e batem à porta (outro acaso inexplicável) de um poeta famoso nos anos sessenta, menos pelo talento do que pelo engajamento político: Thiago de Mello, que organizara uma recepção a outro poeta, um chileno chamado Juvêncio Valle.
A noite transcorre com o chileno recitando versos sobre "a libertação dos povos da América Latina e dos povos afro-asiáticos". Quando acaba o último poema, "Thiago de Mello mandou buscar umas pizzas numa padaria no Largo do Machado".
E a crônica termina nessa frase, como se nenhuma conclusão fosse possível.
Cony é um artista do anticlímax.
O senso lírico da desimportância de todas as coisas se traduz, para Cony, em absurdo, em falta de sentido. Sua ironia não é doce, como em tantos outros cronistas: é no desespero que ele encontrou a sua graça.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, a respeito de Carlos Heitor Cony, recentemente falecido.
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