Aberta a grande porta, o saguão do seminário foi invadido pela rumba "Siboney", mandada do outro lado da rua pelo comitê de um candidato à Presidência. Mas o som do mundo a recepcionar o já ex-seminarista também podia ser a marchinha carnavalesca "Jardineira". Ou o samba "Implorar". Ou outro. A depender da ocasião em que a cena era descrita por seu protagonista.
Em 1945 também não houve campanha presidencial, a ditadura de Getúlio só foi derrubada em outubro. Datas, situações, fatos podiam ficar sob a rubrica "rigor histórico". Nenhuma memória valeria a imaginação de um pormenor ou de um fato capazes de dar dramaticidade, sabor original, um toque literário que fosse, à realidade insatisfatória. Conter o impulso ficcionista, quando obrigatório fazê-lo, parecia revoltante a Cony, uma repressão ao privilégio da sua fertilidade imaginosa.
Há uma diferença essencial a ser observada, sempre, nas rebeldias ficcionais de Cony contra a memória dos fatos e mesmo contra fatos. Cony não inventava, no sentido de uma elaboração. Sua fonte não era a má-fé. O fictício lhe ocorria, jorrava, nada mais que isso, e ganhava a sua certeza com uma convicção capaz até de provocar atritos e mágoas.
Em crônica na Folha, um momento de nostalgia levou-o a falar das saídas juntos do "Correio da Manhã", sempre alta noite, dele, Antonio Callado, Luiz Alberto Bahia e eu. Deixei passar, mas logo fui indagado sobre aquelas noites e companhias, e pressenti mais um equívoco a caminho. O quarteto podia ser um trio: nunca trabalhei com Callado e Bahia.
Imprecisão irrelevante, não era o caso de correção. Bastaria informá-lo. Mas foi impossível convencer Cony de que me lembrava bem de onde trabalhei e em que época. Sua certeza de minha presença incluía, além de conversas, caronas no seu carro até minha casa. Nada mais a discutir. Nunca o vi aceitar com naturalidade uma observação, de quem quer que fosse, sobre divergências suas com a memória alheia. Ficção e realidade eram uma coisa só.
Nem por isso soube que guardasse por muito tempo alguma zanga da sua sensibilidade. Exceto, talvez, pelo que foi ou seria o boicote ao seu romance "Pessach".
Mas, no caso, o ressentimento não era de pessoas determinadas e, sim, do Partido Comunista. Comunistas ligados à cultura negaram o boicote. Ainda, porém, que Cony pudesse ter uma visão desproporcional de parte da história, tinha razão quanto à discriminação aplicada ao seu livro, publicado paralelamente ao "Quarup" de Callado.
O episódio com "Pessach" mostrou a muitos um Cony desconhecido. Emergia ali, do Cony ameno, bem-humorado, ótimo de conversa, um Cony áspero, rijo, inabordável. Grosseiro até, como o próprio caso era. E muito emocional.
Fui dos que se enganaram com o seu temperamento, embora anos antes. Indefinido politicamente, Cony me pareceu o mais adequado para uma seção, "Diálogo", que decidi lançar no "Correio da Manhã", para diálogo mesmo com leitores missivistas. Eram tempos de radicalidade política muito maior que a atual, embora sem o ódio público do país embrutecido de hoje em dia.
Errei na escolha. As respostas para a seção inaugural eram de violência assustadora. Jornal não publicava carta de leitor fascistoide insultando jornalista gratuitamente nem achava que jornalista tem que engolir insulto. Foram dias de seção a ser reescrita e de cuidados nas relações. Comecei a desvendar ali uma violência refreada que me explicava algo para mim intrigante na literatura do escritor Cony de até então: a violência subjacente.
A mesma carga esteve, sob outra forma e outro propósito, nos artigos de Cony seguintes ao golpe de 64. Ainda há quem atribua esses escritos a uma dose descontrolada de irresponsabilidade do autor. Estive muitas vezes com Cony naqueles dias, conversando sobre artigos escritos e a escrever. Sua consciência do que fazia, do que sentia necessidade pessoal de fazer, era absoluta. E, enfim, mais forte do que a impulsão do ficcionista.
Os anos que passou, como dizia, sem escrever, na verdade foram sem publicar sua literatura. Certa vez o admitiu, para nunca mais. Avião o incomodava, e suponho que por isso falasse muito em nossas idas e vindas de reuniões em São Paulo.
Tinha muita coisa escrita, sim, e parte dela começava a ser aproveitada —como se pode notar em trechos de um ou outro romance da sua "volta". Mas esse não era um assunto de que gostasse. Parecia preferir conversas sobre outros autores. Aos novos, aliás, tratava com farta generosidade.
Em toda a história da Academia Brasileira de Letras, Cony foi o único autor de quatro discursos de admissão —três de posse, incluída a do próprio, e um de recepção. Nem seus colegas de fardão sabem disso, a não ser os que só entraram com o nome.
Janio de Freitas, na Folha de São Paulo, a respeito do recentemente falecido colega Carlos Heitor Cony.
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