No livro "Meu Menino Vadio" (ed. Intrínseca), relato seco e corajoso de sua experiência como pai de um menino autista, o jornalista carioca Luiz Fernando Vianna condena o emprego depreciativo que a palavra "autista" ganhou na política brasileira.
"Tornou-se comum políticos –inclusive um ex-presidente da República– chamarem seus opositores de 'autistas', acusando-os de estarem dissociados da realidade", anota. "Também já fizeram isso intelectuais, artistas, jornalistas, uma presidente do Supremo Tribunal Federal."
O problema com isso? "Em primeiro lugar, é um uso mentiroso. Em segundo lugar, significa estigmatizar uma parte da população que precisa ser incorporada à vida social, e não rotulada como incapaz de fazê-lo", argumenta Vianna. "Se hoje evitamos adjetivos como 'retardado' e 'mongoloide', devemos poupar de agressão semelhante as pessoas com autismo."
Se o tal uso não é propriamente mentiroso, mas metafórico, o segundo argumento me convence no ato. Vasculho a memória para descobrir se eu mesmo usei algum dia a palavra "autista" com esse sentido. Talvez sim, não me lembro bem. O que garanto é que não o farei de novo.
Trata-se, como se vê, de uma daquelas controvérsias que costumamos agrupar sob um amplo guarda-chuva no qual, em letras garrafais, está escrito "PC –politicamente correto".
Amplo demais, o guarda-chuva presta um desserviço ao debate. Abriga preocupações muito diversas e sugere que, diante delas, temos dois caminhos: aceitar ou repudiar todas. Em bloco. Não é uma dicotomia inteligente.
Rejeitar como "coitadismo" a totalidade dos argumentos PC é menosprezar o papel da língua, reflexo da sociedade, na perpetuação de vilezas. Nenhum uso está acima da crítica.
Aceitar de saída todos esses argumentos é ignorar que a língua, arena política onde o pau quebra, pertence à sociedade que a fala e não a um ou outro grupo. Toda crítica está sujeita à crítica.
Enquanto a coletividade não chega a uma conclusão (debates eternos não estão descartados), a decisão cabe ao indivíduo. Senhor da sua fala, ele não precisa esperar o veredito da sociedade para fazer sua escolha política e moral.
Examino o verbo "judiar" (maltratar). Tem óbvio ranço antissemita, embora haja dúvida sobre seu sentido original: referência aos maus-tratos que os judeus infligiram a Jesus ou aos que eles sofrem desde então? De uma forma ou de outra, decido cortá-lo do meu vocabulário.
Agora examino "denegrir". Racista? Procuro algo que sustente a tese. O que se suja fica escuro, encardido, fuliginoso, e o resto parece coincidência cromática. Nem todo charuto é um símbolo fálico, como provam o elefante branco e a febre amarela. No meu tribunal íntimo, absolvo a palavra.
Somos convocados a tomar decisões desse tipo o tempo todo. O que é ótimo.
O PC comete abusos e se expõe ao descrédito quando, por exemplo, insiste em eufemismos ridiculamente rebuscados para palavras funcionais ou tenta censurar dicionários, como se estes inventassem o vocabulário que apenas retratam.
No entanto, a reflexão permanente que ele propõe tem o mérito de nos deixar ligados. Os problemas sociais não serão resolvidos na língua e pela língua, mas negar que ela esteja incluída no pacote é desconhecer sua natureza.
Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário