Nasceu e viveu naquelas várzeas. E agora, depois de dias e dias de estafante jornada, trotando, caminhando, cortando campos e andando por antigas estradas, está a vê-las de novo. E por isso chora. Não se preocupa, está sozinho, ninguém enxergará essas lágrimas sentidas. Lá está o açude que desde muito novo nele brincou com sua mãe. E olha, lá perto da restinga, o cocho ao lado do umbu solitário, onde comia com seus amigos, em impetuosas manhãs de setembro, correndo de lá e para cá, em disparadas, aproveitando o vento na cara e em suas melenas jovens e, sim, eram potros sem dono, na flor da idade, livres pelas invernadas.
Depois, bueno, quanta água rolou, quanto casco na estrada, meses se cansando em matagais, nadando dia e noite em aguaceiros. Quanta saudade no lombo. Eram gritos diferentes, um gado diferente, um charco e um calor tão estranho. Ainda lembra daquele caminhão que um dia chegou bufando e nele foram encaixotados à força, a laço, a gritos e a mangaço. Foram muitos dias de estrada. O destino não importa. Era uma terra seca, áspera e árida. E lá os homens eram hostis, mal-educados, não fez amizade com ninguém. Ele e os demais foram tratados como jamais haviam sido. E os usaram para tudo, sem dó, em tudo que era serviço.
Até que um dia decidiu pular a cerca. Isto ele lembrava desde os tempos da Vila Rica. Era uma brincadeira preferida de um antigo companheiro, dono de bolicho, que largava tudo para estar com ele. Juntos, cruzavam várzeas, riachos, coxilhas, estradas de chão, invernadas, tudo, tudo mesmo. Aquele sim era um bueno amigo para a lida de campo. Guri, ainda, mas já um homem na forma de tratar, no jeito de falar, e sempre trazia um mimo de amigo para amigo. Então, ficava ali, bem na porteira à espera, à espreita, do amigo que às vezes demorava, mas sempre vinha. Quase sempre de freio e pelego na mão. E ganhavam o mundo, os dois, como uma dupla haragana sem destino. Ele e o amigo, depois de muito galopar, buscavam a sombra das pitangueiras das velhas sangas. O amigo sempre levava um livro, para ler e recitar poemas ao entardecer. Ele, que não sabia ler, ficava ao lado olhando o sol colorado indo embora, tingindo aquelas tão lindas tardes do Sul.
Agora, enxerga ao longe o umbu solitário e ali deita, pois o corpo se mostra extenuado, os músculos estão exaustos, e, enfim, se dá conta que esta velho, muito velho. Com os olhos rente ao chão percebe que ali não existe mais campo, só uma enorme lavoura. Ouve o ronco do trator e não se importa, se estica todo sobre a terra em que nasceu. Como está dentro de um baixio, uma espécie de cova na terra fofa, quando o trator aparece nem dá tempo de fugir. Uma roda enorme estoura-lhe a cabeça e tudo finda. Lá em cima, na cabine, o tratorista, escutando música sertaneja moderna em seu celular com fones de ouvido pensa “é só uma pedra”.
No outro dia, uma plantadeira passa espalhando sementes de soja sobre seu corpo inerte. E ele, que voltou já matungo velho para rever sua querência, morto, não tem nem o direito de saber que veio apenas para servir de adubo para a mais badalada commoditie do rincão.
Conto de Paulo Mendes, na Correio do Povo.
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