quarta-feira, 19 de abril de 2017

Nenhum passageiro se sente atendido na classe econômica

Companhias aéreas fazem parte, pelo que sei, do setor de transportes –como as de ônibus, de táxis ou navios de cruzeiro. Mas talvez o correto seria dizer que se dedicam ao mundo do carregamento –como caminhões frigoríficos e trens de carga.
O caso do passageiro arrancado à força de um voo da United Airlines pode ter sido uma exceção. Só que nem tanto assim.
O médico David Dao tinha comprado direitinho sua passagem no voo 3411 de Chicago para Louisville. Mas a United Airlines, seguindo uma prática usual nesse mercado, tinha vendido mais lugares do que os disponíveis; é o "overbooking".
Como havia funcionários da companhia interessados em entrar no voo, ofereceu-se uma quantia de US$ 400 dólares, mais estadia em hotel, para o passageiro que desistisse da viagem. Ninguém se dispôs a tanto, e a oferta subiu para US$ 800.
A situação se manteve: os funcionários da United não poderiam embarcar. Invocou-se então uma lei (como é que isso existe?) autorizando a tripulação a retirar os passageiros que bem entendesse, sem consentimento.
O médico David, de 69 anos, foi um dos escolhidos; resistiu. Chega a segurança do aeroporto, arranca-o da "poltrona" (convenhamos, a palavra é um acinte). Ele grunhe como um animal conduzido ao matadouro. Terminou sem dois dentes, um nariz quebrado, uma concussão não sei onde, e um lugar, espero que confortável, na ambulância.
O presidente da United, ou melhor, o "CEO" (nomezinho besta, esse também), tomou a palavra para um comunicado oficial.
E cumprimentou os funcionários!
Oscar Munoz ganha uma fortuna de salários, bônus, ações, "shares", "stocks" ou o que quer que seja para desempenhar o papel de "liderança corporativa". Segundo o site salary.com, foram US$ 6,7 milhões em 2015.
Depois de sua intervenção, quando o caso já corria na internet, as ações da United entraram em parafuso na Bolsa de Valores. Oscar Munoz acordou então de seu sono entre as nuvens, tomou seu desjejum, escovou os dentes e foi às redes sociais pedir desculpas.
"A Família United não é desse jeito", esclareceu o alto canastrão –que não foi, longe disso, ejetado do cargo: promete "fazer melhor" da próxima vez.
O "overbooking" até que tem razões de ser. Se compro ingresso para um teatro, e deixo de ir, não me garantem lugar na plateia em outro dia. Bem ou mal, se perco o voo, as companhias aéreas me põem no avião seguinte.
Seja como for, é fora de dúvida que nenhum passageiro se sente plenamente atendido em seus direitos ao viajar na classe econômica.
Por motivos de segurança, mas não só isso, ele se vê numa situação mais próxima de um internato para adolescentes rebeldes, de um hospital público, de um destacamento militar.
Acordam-no na hora que acharem melhor; nem sempre está autorizado a ir ao banheiro; a comida é aquela, e se quiser; a aeromoça o inspeciona, para ver se está sentado retinho na cadeira; para pedir alguma coisa (e ele não conseguirá) é preciso que levante a mão.
Trata-se de uma das poucas ocasiões, de resto, em que o cidadão de classe média alta se vê confrontado por flagrantes desigualdades sociais. Logo além de uma fina cortininha, estão os privilegiados da Executiva: que conforto, que luxo, que bem-estar! Fica ao encargo de sua imaginação o mundo da Primeira Classe.
Ei-lo, para resumir, na Terceira, ouvindo patacoadas sobre o prazer de voar em nossas aeronaves.
Que passe a ser tratado aos cachações, como um refugiado subsaariano ou um adolescente negro do Capão Redondo, já passa dos limites.
Vivemos na plenitude um estado de revolta contra os políticos e o Estado de maneira geral. A Odebrecht, com tudo o que fez de errado, pelo menos entregava suas obras. São os deputados, os ministros, os governadores que concentram nossa indignação.
Talvez –daqui a 10 ou 20 anos– esse sentimento desapareça, por tédio, conformismo ou reforma radical. A revolta haverá de concentrar-se, então, sobre as grandes corporações e seus abusos.
As fraudes da indústria automobilística no controle da poluição, a arrogância das companhias aéreas, a mão de obra escrava nas grifes de moda, a manipulação nos preços dos remédios, os falsos rótulos de comida "light", os estelionatos bancários, tudo isso aparece nos jornais; poderes estatais desacreditados e corruptos respondem mal ao que acontece. A luta continua; aliás, nem começou.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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