quarta-feira, 5 de abril de 2017

A fotografia, que sempre serviu à memória, se faz ela mesmo relíquia

Graças ao celular e à máquina digital, todo mundo pode ser fotógrafo atualmente. Ou melhor, não pode. A diferença entre um profissional e um amador continua imensa, apesar das facilidades técnicas.
Quando as máquinas ainda tinham filme, eu mal me arriscava a tirar alguma foto. Sempre, na revelação, a imagem saía cortada, tremida ou desfocada -se é que saía. Hoje, posso fazer 10 ou 15 cliques em seguida, esperando que alguma coisa se salve.
Mas nada disso se confunde com a fotografia do profissional -para quem, até mais do que na pintura, a arte será sempre a "cosa mentale" a que se referia Leonardo da Vinci: mais que habilidade mecânica, um ato de intelecto, de sensibilidade.
Mesmo assim, a arte da fotografia trata de expandir-se, fugindo dos recursos tecnológicos hoje acessíveis a qualquer um. Vai-se tornando, por vezes, uma espécie de artesanato, de gravura, de escultura até.
É o que percebo de uma exposição que acaba de ser inaugurada na galeria Virgílio, "Raros, Vintages e Inéditos" -que fica em cartaz até o dia 29 de abril.
Há fotos mais clássicas, como a de um menino em Cuba por Tatiana Altberg. De costas, bem no centro da imagem, o garoto vê um jogo de futebol no que deve ser o terreno de uma casa demolida.
O fundo da foto, com o arranjo casual das pequenas figuras humanas entre paredes em ruínas, lembra algumas criações clássicas de Henri Cartier-Bresson (1908-2004).
A silhueta do menino, em primeiro plano, ficaria quase como um eixo estático, uma coluna de simetria, não fosse pelo detalhe decisivo: ele está de pé, retinho, mas com as pernas cruzadas, como quem quisesse fazer um gol de letra.
O desequilíbrio dentro do equilíbrio, a instabilidade dentro da ordem dá sentido ao que poderia ser apenas uma imagem morta, igual a qualquer outra.
Mas o menino, que vê de longe uma cena ao estilo de Cartier-Bresson, talvez simbolize outra coisa no contexto da exposição.
É a fotografia clássica, dos grandes mestres, que já se encara com uma espécie de recuo.
Os tempos são outros. Há quem use a fotografia como ponto de partida para "outra coisa". Cris Bierrenbach constrói, não sei se bem quadros ou esculturas, colando pedaços de fotos numa espécie de mosaico monocromático, de brilho vivo e forma recortada.
São como emblemas do masculino e do feminino -uma cobra e um triângulo-, que só de perto se mostram feitos de fotografia.
As imagens de Raquel Moliterno, impressas em papel pardo de desenho, parecem imitar o claro-escuro dos murais mais pálidos, dos nus descoloridos de um pintor como Pontormo (1494-1557). Só sua repetição, em três versões cada vez mais sombrias, explica que tudo é foto.
Em vez usar papel, Elizabeth Lee imprime sua fotografia (o mostrador de um relógio Citizen antigo) em cima de uma folha quase seca.
É a passagem do tempo, medida na tecnologia de meados do século 20, que se desenha sobre a superfície, eterna e frágil, que se colhe de uma árvore do outono.
A passagem do tempo ganha um clima quase fúnebre no trabalho de Bruna Queiroga, que recupera a velhíssima técnica das chapas de vidro: a fotografia de uma guirlanda de flores se superpõe à de uma mulher vitoriana, enquadrada ela própria pela moldura de um precário espelho.
Em tons de sépia, com várias camadas, a imagem é quase estereoscópica, e novamente voltamos à profundidade que se sugeria no retrato do garoto cubano: revisita-se o passado -na técnica e no imaginário-, sem deixar de manter distância diante dele.
Nada resume tão bem o espírito da exposição quanto a pequena foto de Tiana Chinelli. É uma vista, também em sépia, dos prédios de São Paulo. Só que, em vez de usar papel, a fotógrafa revelou a foto sobre uma telinha transparente de celular.
O século 19, o 20 e o 21 se concentram num objeto só. A fotografia, que sempre serviu à memória do passado, se faz ela mesmo relíquia -mas relíquia feita agora, irrepetível, artesanal e contemporânea.
O termo "pós-moderno" ficou fora de moda, mas corresponde bem ao que está em jogo na mostra: o avanço tecnológico é visto como se fosse coisa do passado, e o antigo volta -não como ressurreição, mas como fantasma.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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