Arrastava as sandálias sob um sol de maçarico quando um ambulante a interpelou.
“Imunização para Covid-19 na minha mão é mais barato.”
“Que isso? Contrabando de vacina?”
“Que vacina o quê, minha senhora, seringa é um perigo, transmite um monte de doença. Fora que hoje em dia cabe até microchip no buraco da agulha, os grandes conglomerados querem monitorar a nossa vida, fica esperta.”
“Amigo, se eu não matei o algoritmo do Instagram de tédio não é um microchip que vai fazer alguma diferença.”
“E os efeitos colaterais, mutação de DNA?”
“Até onde eu li, nenhuma vacina é capaz de alterar a cadeia genética, mas, se for o caso, eu puxei o temperamento explosivo do meu pai e herdei as varizes da minha avó, vai que eu resolvo isso também?”
“Pensa bem, porque o meu produto é 100% orgânico, sem química de laboratório. Imunização artesanal, coisa fina.”
“Engraçado porque eu só tô vendo uma garrafa PET vazia.”
“Não parece, mas essa garrafinha é artigo de luxo. Com uma baforada disso aqui, a senhora já garante seu IgG reagente em uma semana. Essa remessa foi produzida em casa, minha mulher testou positivo e tossiu aqui dentro. É cultivo familiar, eu que passei para ela, meu filho passou para mim e assim por diante.”
“Sei não, tanta gente pegando isso de graça.”
“Ah, mas um produto desses a senhora não encontra no supermercado, no shopping, nem no Neymarpalooza.”
“Pois bem, um amigo meu caiu nessa e tá intubado.”
“Mas aí ele que reclame com o fornecedor dele. Eu tenho toda a documentação certinha aqui comigo, PCR, sorologia, pode conferir. A senhora deveria se informar. O presidente mesmo disse que a melhor vacina é o vírus.”
“E também que a vacina pode te transformar em jacaré”.
“Mais um motivo para comprar comigo. Mais seguro.”
“Mais seguro? Prefiro virar um dos maiores predadores do reino animal, que passa a maior parte do tempo hibernando, pegando sol e boiando na água, do que botar minha vida em risco.”
“Quem perde é a senhora. Uma dose rende para mais de uma pessoa, é só tomar cuidado para não deixar passar a validade, o vírus sobrevive até 72 horas no plástico e... Ih, sujou. Disfarça, disfarça.”
“Que houve? É a polícia?”
“Pior. É o Atila Iamarino.”
Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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