sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Sem remédio

Ela está sem remédio e então, às quatro da manhã de uma quarta-feira, tem seis ideias para livros infantis e grava áudios longos para seu editor. Seu editor gosta de duas ideias e pergunta se está tudo bem MESMO. Ela está sem remédio e então, enquanto vê um filme, tem quatro ideias de podcasts e grava áudios longos para produtores de podcasts, mas é sábado nove da noite e eles respondem “escuto na segunda” e ela deita no chão da sala e, enquanto vê o filme que deveria servir para que relaxasse e se divertisse, começa a fazer abdominais pois não tem tempo a perder e precisa otimizar o tempo e esse filme parece realmente ótimo e renderia uma resenha, uma coluna e talvez esse mesmo filme dê uma ideia de livro ou podcast ou roteiro e abdominais, ela bem sabe, pioram sua cervicalgia então ela manda mensagens para seu reumatologista e também para sua professora de pilates que, por ser sábado à noite, não respondem de imediato. Então ela resolve ver o filme fazendo listas do que precisa resolver sobre a saúde de sua filha que está ótima, é bem verdade, a filha está maravilhosa, mas não vai ao dentista há mais de um ano, mas é pandemia, mas mesmo assim ela precisa escrever DENTISTA na lista pra que isso pare de gritar dentro do seu cérebro e ela também escreve tudo o que precisa decidir e resolver sobre a obra da sua casa e toda a sua vida profissional de hoje até 2022. E ela faz listas porque é a única forma de ela ficar vendo o filme.

Seu marido pede que ela apenas veja o filme e então ela volta a se sentar no sofá e, escondida, ela começa a cutucar uma bolha no dedão e que delícia cutucar a bolha até que está quase na carne e ela segue cutucando e sai um pouco de sangue. A pele morta e dura e pontuda e ela enfia a ponta da casca do dedão dentro da unha do dedão da mão. E essa dor é gostosa. Será que ela fez bem em ficar sem remédio? Claro que fez. Ela vai meditar e correr e fazer muita terapia e estudar muita psicanálise e vai ficar sem remédios porque eles incham e dão uma pança metade molenga metade inchada estranha e ela sabe que são os remédios que retêm liquido e retˆm também, em um limbo canalha, toda a sua intensidade e vontade de transar e vontade de fazer tantas coisas mas tantas coisas que sometimes são duas da tarde e seu corpo dói tanto que acabou o dia e dói tipo o corpo inteiro inflamado e latejando e ela precisa deitar e deitar é uma merda pois ela gosta de otimizar o tempo. Então ela deita com seu caderno de listas e anota ideias e grava áudios longos para pessoas que curtem algumas das ideias mas perguntam que horas ela vai fazer tudo isso uma vez que ela já não está conseguindo fazer o que tem pra fazer. Ela tira três dias de férias e vai parar no hospital porque parar é insuportável.

Ela está sem remédios e já sente o enjoo chegar e ela estava meio com saudade disso. Do mal-estar meio que permanente e meio que todo dia que faz com que ela não deseje enfiar 67 pães com queijos e doce de leite pra dentro do corpo. Com remédio ela não tem o mal-estar que tantas vezes a fez ir embora de todos os lugares. Mas o bem-estar que ela tem com os remédios faz com que ela queira passar chocolate na parede e comer a parede e ela estava cansada dessa fome que não é ela e desse corpo que consegue ir pra todos os lugares sem medo e sem emoção (e sometimes é tanta emoção que por isso dá medo) mas que não é exatamente o dela. E agora até a pressão voltou a baixar e isso é um saco realmente mas é melhor do que uma pressão absolutamente estável e um olhar passível e equilibrado e que não se importa. Ela se importa tanto que dá medo e que saudade desse medo. Foram três anos sem gritar e arrumar encrenca e brigar e odiar e parece ótimo isso, nossa que pessoa funcional e madura. Mas é uma merda porque, socorro, olhem em volta, precisamos gritar e brigar. E ela escutou Strokes bem alto no carro e ficou inteira arrepiada e, perdão matrimônio, agora ela vê algumas pessoas, de todos os credos e gêneros e idades, e fantasia com elas. Antes ela via as pessoas e falava “obrigada”. Ela está sem remédios e isso é assustador e lindo e vai durar pouco mas ela vai aproveitar. Ela agarra e cheira e beija tanto a sua filha como se depois de três anos pudesse sorver sua filha sem a bolha da correção psíquica e hormonal. Sua filha diz “chega, mamãe, para, tá muito” e nunca chega e nunca para e é uma devoção tão avassaladora que dá medo e dá enjoo e a pressão cai e tá tudo bem.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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