Devo muito aos livros infantis de Monteiro Lobato, e entendo o esforço dos que, por afeição, querem defendê-lo das acusações de racismo.
O problema é que, apesar de suas qualidades como escritor, de sua extraordinária coragem política e de suas simpatias à esquerda, Lobato era tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista.
Lê-se muito pouco da sua obra para adultos. Lembro o conto “Negrinha”, em que pelo menos se mostravam as crueldades de uma sinhá branca em cima de uma “menina de criação”.
Fui ver o que Monteiro Lobato escreve em “O Presidente Negro”, romance de 1926 que, mesmo depois da ascensão de Hitler, ele não viu problema em reeditar.
No livro, o narrador da história começa falando mal dos Estados Unidos, mas muda de opinião quando ouve de Jane, a bela filha de um cientista, o seguinte argumento: “Que é a América, senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos eugênicos das melhores raças europeias?”.
Ayrton, o narrador, observa que os Estados Unidos não tiveram tanta sorte racial assim. “Entrou ainda, à força, arrancado da África, o negro.” Jane concorda: “Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela feliz composição”. Ayrton acha que o problema pode ser solucionado.
No Brasil, graças à mestiçagem, “dentro de cem ou 200 anos terá desaparecido o nosso negro”.
Ao contrário de Ayrton, Jane não acha “felicíssima” essa saída; na verdade, “estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos de raças díspares”.
A separação entre as raças, ocorrida nos Estados Unidos, não desagrada a Jane: “O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.
Não se pense que o narrador fique horrorizado. Apaixonara-se pela loura filha do cientista e comenta: “Como era forte o pensamento de Miss Jane!”.
Ela contará a Ayrton o que vai acontecer nos Estados Unidos. Primeiro, a população negra começará a crescer, enquanto os brancos praticam o controle da natalidade. Mais que isso: graças ao ministério da eugenia, decidiram matar os defeituosos de nascença e esterilizar os deficientes mentais, os “tarados” etc.
Os negros americanos também vão esbranquiçando, apesar de manterem o “cabelo carapinha”. Ficam com “um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”, diz Jane. “Barata descascada, sei”, responde Ayrton.
Nas eleições de 2228, os brancos se dividem: há um partido de mulheres feministas e outro, de homens. Sai vencedor o líder dos negros já “esbranquiçados”.
Situação grave. Não necessariamente porque os brancos podem tentar um golpe ao estilo de Trump, mas porque a “massa negra” despertava de sua submissão “e tremia de narinas ao vento, como tigre solto na jungle”.
Para se defender, os brancos inventam um raio que “alisa a carapinha”, de modo que “o tipo africano melhorava”. Acontece que o raio também era capaz de...
Não conto o final. Registre-se apenas que “armado de mais cérebro”, “o nobre, o duro” branco irá superar o obstáculo para o “ideal da supercivilização ariana”, impondo “um manso ponto final étnico ao grupo que ajudara a criar a América”.
É ficção? Passemos então a um artigo de crítica de arte, publicado nas “Ideias de Jeca Tatu”, livro de 1919. Chama-se “A Caricatura no Brasil”.
Durante a época colonial, diz Lobato, os portugueses “despejavam” no Brasil tudo quanto fosse “elemento antissocial” do reino. “E como o escravo indígena emperrasse no eito”, continua o autor, “para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível”.
Basta? Tem mais. Numa carta de 1928, Lobato diz que “um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca —mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.
Não é o caso de censurar seus livros infantis. Mas também não há escândalo em adaptá-los. Faz-se isso o tempo todo: “Moby Dick”, “As Viagens de Gulliver”, “Pinóquio” foram inúmeras vezes reescritos e facilitados para as crianças; o próprio Lobato fez isso, com “Dom Quixote”, por exemplo.
Mas não dá para ignorar, desculpar e fingir que não existe racismo em Monteiro Lobato. Mais fácil perdoar o Trump.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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