domingo, 31 de janeiro de 2021

O Carnaval dos imbecis

Dizem que, por conta da pandemia, não haverá Carnaval. Errado. É justamente por conta da pandemia que haverá Carnaval. Não será a festa a que estamos acostumados, manifestação popular que sacode o Brasil de norte a sul. Revanche gloriosa de ex-escravizados transformando banzo e raiva em alegria e beleza. Uma fresta de poucos dias que nos faz vislumbrar um país diferente, inclusivo, revolucionário. Dois mil e vinte e um celebrará o Carnaval dos ogros. A festa do avesso verá seu avesso: sai a turma do Joãozinho 30, entra a milícia do Zero Três.


Se tem que usar máscara, eles não usam. Se não adianta usar cloroquina, eles distribuem. Se tem que ficar em casa, vão pra balada. Se existe vacina, eles não compram —e fazem campanha contra. Se o Carnaval está cancelado pelas pessoas sensatas que ainda existem no Brasil, não me surpreenderia ver, em fevereiro, blocominions dominando as cidades.

Será o oposto d’“A banda”, do Chico Buarque. “Estava à toa na vida e o capitão me chamou/ Pra ver a banda marchar, gritando coisas de horror”. A concentração, imagino, será diante dos hospitais, para dificultar o trabalho dos profissionais de saúde, o sono dos doentes, zombar do sofrimento das famílias. Não lembram o buzinaço, ano passado, na frente do Hospital das Clínicas?

(Que narrativa esdrúxula leva pessoas a buzinarem para um hospital lotado de pessoas sob risco de vida? O que pensam estes dementes? Que aqueles doentes todos simulam estar com Covid porque foram comprados pela China, pelo PT, pelos homossexuais e maconheiros, por Bill Gates e George Soros para derrubar o governo Bolsonaro? Que todos os médicos e enfermeiros e demais funcionários do hospital, arriscando suas vidas há quase um ano para salvar as nossas, participam do mesmo teatro?).

O Carnaval dos imbecis provavelmente não terá pandeiro, surdo ou cuíca, mas carros de som tocando alguma dance music tosca da década de 90. Tipo “This is the rhythm of the night”, da banda chamada, vejam só, Corona. Pitboys tomando Red Bull contaminarão as falsas loiras de camiseta da seleção.

Famílias tirarão selfies com PMs e huskies siberianos com bandanas alviverdes latirão para os pretos esquálidos que passam por entre os bombados e as bombadas catando latinhas pelo chão.

No Rio, formarão o “Cordão do Bola Branca”, “Misoginia é mais que amor”, “Cordão do Ratatá”, “Minionbloco”. Senhoras entrevistadas na folia, sem máscaras, dirão ao jornal do SBT estar muito impressionadas: “Só cidadão de bem! Nem parece o Brasil! Parece a Fête de la music, em Paris! Se bem que em Paris até tem uma gente diferenciada. Árabe, africano, esses problemas de lá. Aqui não, ó! Só gente normal!”.

Bolsonaro talvez surja nesses blocos com um abadá de caveira. Talvez suba num deles e esbraveje à multidão: “Dois anos atrás, no que tange à questão aí de bloco de Carnaval, o que tinha era golden shower e ideologia gay, talquei?! Agora acabou! Tá tudo dominado! Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”. E o telecoteco que se ouvirá não será dos tamborins, mas dos tiros para o alto, dados pelos necrófilos.

Soa a loucura, como tudo o que estamos vivendo nos últimos anos, mas será apenas mais uma volta do parafuso num país que parece ter decidido suicidar-se coletivamente. Estamos indo bem. Já passam de 220 mil mortos —e contando. Somos os melhores do mundo em matar por Covid, segundo o Lowy Institute, de Sydney. Parabéns aos envolvidos! Ratatatá! Telecoteco! Zirigui-bala-dum-dum!


Crônica de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Esquerdofêmea

 Minha filha ama cor-de-rosa, e eu não sei mais o que fazer a respeito dessa tremenda falta de noção de sua parte. Comprei uma camiseta azul estampada com skatistas irados, e ela falou: “É feia demais”. Na loja, foi direto na saia plissada pink com bolotas salmão: “Olha que linda, mamãe”.

Eu então sentei no chão e expliquei: “Sim, muito bonita, mas todas as cores são legais, e você pode ter bermudas e shorts se quiser, não se sinta obrigada a ter saia porque alguma amiga sua ou mãe de amiga ou tia ou avó ou alguém no desenho ou no filme falou que é o que você deve usar. Você pode usar o que quiser”. Rita tem três anos. Não entendeu nada do meu discurso. Me achou tão chata e louca quanto eu me acho. Agarrou a saia (que de fato era belíssima, e eu só conseguia pensar em como EU MESMA queria pra mim aquela porra de saia divina) e mostrou para o pai: “Quero essa!”. E pronto.

Comprei uma ponte de madeira grande pra ela brincar com carrinhos: “Olha, filha, o carrinho sobe aqui, pega velocidade e lá embaixo sai batendo em tudo”. Onde eu quero chegar com isso, pelo amor de Deus? Ensinar pra Ritinha que é legal acelerar veículos e sair atropelando uma fileira de bonecas Baby Alive de todas as etnias? Socorro! Eu comprei, tal qual a consumista compulsiva que sou, tal qual a filha suprema do capitalismo que sou, o papinho mais superficial da obsessão progressista da bolha em que me encontro e na qual preciso ser aceita todos os dias. Eu paguei à vista minha visão “escola construtivista” e ainda ostentei nas redes sociais. Eu não preciso passar menstruação na cara para ensinar à minha filha que sangrar todo mês é normal, limpo e saudável. E também um saco.

Minha filha quer tudo da temática doméstica. Fogão, ferro, geladeira, pia, aspirador, vassoura. Eu vetei por um tempo, a enchi de bolas e monstros, agora liberei geral. Na caixa vem sempre a foto de uma MENINA brincando, mas que culpa Ritinha tem se a embalagem está errada? Que metam ali um menino também. Quem olha pra esses brinquedos e sente toda a biblioteca feminista cair em cima da cabeça sou eu. Rita está feliz, brincando com utensílios que ela vê a gente usando aqui em casa —tanto eu, quanto o Pedro… mas MUITO mais a Maria e a Lucia, que trabalham aqui. Pra ela é simples, e eu só estou complicando porque sou a típica chata humanista elite, a clássica progressista queridona com empregadas. Eu me tornei a mulher que, na juventude, eu apontava e dizia: “Um dia ainda vou ter uma coluna no jornal pra rir dessa galera”. Pobres dos filhos das pessoas pouco analisadas e que não leem. Pobres dos filhos das pessoas muito analisadas e que leem demais.

Rita tem todo o direito de pirar e dar gritinhos ao ver uma loja inteira cagada de pink. E eu tenho todo o direito de pirar e dar gritinhos junto, porque, mano, de fato dá vontade de morar lá dentro e de ter todas aquelas coisas. Sim, meu nome é Tatiane, estou tentando entrar no mestrado da USP, estou lendo Angela Davis e… comprei uma pochete pink.

Eu quero gritar “FORA, BOLSONARO” e emendar num “EU AMO PINK”. Rita está me devolvendo gostos que sempre foram meus, mas eu aprendi a rejeitar. Não posso ser perua. Não posso ser fútil. Não posso ser mulherzinha. PAREM TUDO, é só uma loja inteira cagada na cor rosa, e se minha filha e eu estamos felizes ali dentro QUE FIQUEMOS EM PAZ.

Rita ama maquiagem e esmalte, e hoje estamos, enquanto termino esta coluna, tão maquiadas, mas tão maquiadas, que periga o universo nos cancelar. Dane-se!


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Festival de incompetência pode ser apenas uma criança com sono

Tudo o que uma criança precisa é de pais adultos, disse Winnicott. Ou talvez tenha sido só minha analista.

Ela disse que foi Winnicott, mas não encontrei na internet a citação —e não quero perguntar pra ela porque não sei se consultas bibliográficas feitas ao longo da semana estão inclusas no valor da sessão.

A intenção da analista era me tranquilizar, imagino eu, mas quem sou eu pra analisar as intenções da analista? Infelizmente não me tranquilizei. Afinal, como é que faz pra virar adulto? Ela fala como se fosse fácil. Nunca me ensinaram isso na escola ou em casa. Também não encontrei no Google.

Achei que quando começasse a beber viraria adulto. Piorou. Descobri que adultos bebem justamente pra esquecer que precisam ser adultos. Achei que se fumasse cigarros viraria adulto —descobri que cigarros só existem pra quem ainda não saiu da fase oral. Cigarro é uma espécie de chupeta que encurta sua vida.

Encontrei na internet uma enorme quantidade de “conteúdo adulto”, mas descobri que era só pornografia. Então ser adulto é viver sem camisa numa república transando com desconhecidos? No rito de passagem à fase adulta preciso mamar o encanador? Torna-se adulto no ato do adultério?

Achei que fosse virar adulto quando tivesse filhos. Eis que descubro, graças ao advento da psicanálise, que não é assim que funciona: um filho só escancara que você não estava pronto pra ter filhos.

Minha sorte é que não estou sozinho. Em toda a minha vida, não conheci um adulto sequer. Acho que você também não. Olhe à sua volta. Aqui mesmo, nas notícias ao redor dessa coluna. Cheio de gente fazendo birra porque não conseguiu o que queria, fazendo besteira pra chamar a atenção dos pais, dando ataque de pelanca porque foi contrariado.

O médico de Bolsonaro já disse, sem perceber o quanto isso era grave, que ele tem um sono tão ruim que não sabe “como consegue raciocionar”.

Ou seja: tudo isso que a gente vê, esse festival de incompetência, esse despreparo misturado com arrogância, tudo isso pode ser apenas uma criança com sono. Quem é pai sabe do que elas são capazes quando não dormem direito.

Olhando para as próximas eleições, já não quero um presidente bom. Bastaria um presidente adulto. Mas onde encontrá-los? Do que se alimentam? Como se reproduzem? Ah, essa parte eu vi num filme.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Conto de Natal


Flávia não gostava do Natal. A família não tinha a tradição de reunir-se. A vida dura e o dinheiro escasso deixaram marcas. Ela achava a data um exagero de comida e gastos desnecessários.

As cartinhas escritas ao Noel, quando criança, por incentivo das professoras, nunca foram atendidas. No ano que pediu uma boneca ganhou um chinelo e um caderno, quando pediu a bicicleta ganhou uma boneca que tinha o nome de Nina escrito em um dos pés. Naquele ano, Flávia ganhou pimenta nas pontas dos dedos para parar de roer as unhas, mas o brinquedo tinha vindo com as unhas roídas e a mãe não parava de dizer que a boneca era linda.

Uma vez o bom velhinho foi na casa de Flávia, não levou presentes, mas era muito carinhoso, pegou a menina de doze anos no colo e alisou mais do que seus cabelos. Por trás da barba, ela sentiu o hálito doce da cana que seu pai sempre teve.

Desde muito jovem trabalhando em bicos e cuidando dos irmãos a jovem nunca teve tempo de estudar, planejar o futuro ou sonhar.

No meio do supletivo se engraçou de Edmilson. Ele limpava as salas do centro comunitário e como ela sempre ficava por último para copiar a matéria eles conversavam. 

No fim de abril do ano seguinte, Flávia madrugou na frente do posto de saúde para conseguir uma ficha. Sentia muita azia e nada parava no estômago. Ficou perturbada com o diagnóstico da gravidez. Ela e Edmilson não tinham ido até o fim, ao menos era assim que ela lembrava.

Escondeu a notícia o que pode, ficou uns meses na casa de uma prima e demorou o tempo da coragem para contar ao namorado.

As camisetas foram ficando curtas, ela cortou o elástico dos shorts. Em dezembro começaram as dores. A criança queria nascer, Flávia vivia no posto, a médica pedia repouso. Edmilson começou a entregar jornais e ela largou as faxinas. Quando a bolsa estourou eles rodaram a cidade de moto atrás de vaga. Acabaram na gruta da Glória. Lá em cima do morro, no hospital Divina Providência nasceu Cristiano, de parto normal e saudável.

Quando Maria o segurou viu em seus olhos todo o seu futuro, todos os milagres, a imensidão do testemunho, mas viu a dor e a cruz. José abraçou os dois em silêncio. Jesus sorriu.

 

Por Bárbara Sanco<https://web.facebook.com/barbara.sanco>

Quem é você na fila do pão?

 Toda fila coloca a questão de seu critério de ordenação. É por ordem de chegada, de altura ou de influência? A expressão “quem é você na fila do pão?” fala disso e faz par com o emblemático “você sabe com quem está falando?”. Ambas se baseiam no uso do poder para determinar quem vale mais, quem merece mais.

Em palestra recente, uma jovem da plateia me dizia que a babá de seu filho havia deixado o próprio filho em sua terra natal. A jovem acreditava que, como esse era um hábito comum no Nordeste, a babá não sofreria com essa ausência, pois já estava acostumada.

A ideia aqui é de que algumas pessoas estariam tão acostumadas com privações, que nem as sentiriam mais. Portanto, nós, os patrões, podemos dormir sossegados, sem nos identificarmos com o sofrimento de subalternos, supostamente acostumados a viver longe dos seus. Trata-se de uma racionalização usada corriqueiramente para não entrarmos em contato com as violências sociais e individuais que impingimos uns aos outros.

Embora cada um viva suas experiências de forma única e intransferível, está em jogo aqui a conveniente hipótese de que uma classe de sujeitos sofreria menos do que outra. De fato, ocorre justamente o contrário: é por sofrer demais, por tempo demais e sozinho, que o sujeito desiste de se lamentar, o que não diminui sua dor, mas sua esperança em expressá-la.

Faltou assistir “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert (2015).

A lógica tão danosa que rege nossas relações sociais é simples: pimenta nos olhos dos outros é colírio. No caso citado são duas violências: as condições de vulnerabilidade social —a funcionária não pode se dar ao luxo de ficar sem esse trabalho— e, cereja do bolo, a falta de reconhecimento da injustiça e do sofrimento decorrentes dessas condições.

Desçamos mais um degrau.

Em “Acontecimento” (Zahar, 2017), Slavoj Zizek relata uma cena presenciada por Jorge Semprún em um campo de concentração nazista —mas poderia ser durante a escravização de indígenas e de africanos. Para encurtar o longo show de horrores que ele descreve, me limito a dizer que durante uma caçada a duas crianças, a menor ficou para trás. A criança maior, num gesto surpreendente, voltou para lhe dar a mão. Morreram as duas de mãos dadas. As mãos dadas na derradeira hora revelam o único traço da cena que merece o título de humano: a solidariedade. Não se trata de amor ao igual, ao familiar, ao narcisicamente investido, mas ao outro qualquer.

Em seu mais recente livro, “Maneiras de Transformar Mundos” (Autêntica, 2020), Vladimir Safatle expõe de forma contundente o gargalo das lutas contra a desigualdade social. Defender mulheres, negros, homossexuais e pobres não pode ser um fim em si mesmo, visto que corremos o risco de apenas trocar posições, mantendo o jogo de poder intacto. Como ele afirma: “Matar senhores nunca foi a ação mais difícil. Mais difícil sempre foi se recusar a ocupar seus lugares, recusar a agir como até agora se agiu”. O livro aponta a poderosa contribuição da psicanálise na discussão política atual e se revela um dos mais acabados testemunhos do fim de uma análise —no caso, do autor.

Furar a fila da vacinação é expor um desconhecido mais vulnerável à morte em nome de um direito autoproclamado.

Para a pergunta “você sabe com quem está falando?”, a única resposta decente seria:“não sei, tampouco você o sabe, mas uma coisa é certa: ambos sofremos, ainda que em condições distintas”.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

domingo, 24 de janeiro de 2021

Ascensão de Biden é uma ótima notícia para todos os que são como eu

Joe Biden deve ser uma das criaturas menos entusiasmantes do mundo, o que me deixa muito entusiasmado.

Depois de quatro anos de excitação estarrecedora, sabe bem esta calma aborrecida.

Paradoxalmente, é uma calma aborrecida que, no início, sobressalta. Ouvindo o discurso de tomada de posse de Biden, fui várias vezes tomado por uma sensação estranha: o presidente dos Estados Unidos não estava a dizer coisas lunáticas. Vou precisar de tempo para me habituar. Não que o presidente estivesse a falar de uma forma particularmente inteligente, ou emocionante —estava apenas a não ser lunático.

O que tornava aquele discurso relativamente banal numa peça de oratória memorável era, precisamente, a sua relativa banalidade.

Nós participamos de uma experiência científica e não sabíamos. A hipótese era: será que, ao fim de quatro anos a olhar para um chimpanzé, as pessoas vão ficar emocionadas quando virem o mais anódino Homo sapiens? A resposta é: sim.

Biden é uma viagem no carro da família, circulando cinco ou dez quilômetros abaixo do limite de velocidade, para garantir que não há problemas. Trump era um acidente rodoviário em cadeia em que todos os carros eram Ferraris amarelos e explodiam no fim.

Durante oito anos, a gente nem sabia bem o nome do Biden. De vez em quando, ele aparecia com o Obama e a gente se recordava da sua existência e voltava a esquecer no minuto seguinte. Biden teve uma evolução extraordinária sem, no entanto, sair do sítio. Só o cenário é que mudou. Ao pé de Trump, é um príncipe. Junto de Obama, era o moço das cavalariças. O que significa, e esta é uma conclusão
perturbadora, que Trump fez de nós melhores pessoas.

A ascensão de Biden é uma ótima notícia para mim e para todos os que são como eu. Nós, os amorfos, os que não temos qualidades especiais ou características dignas de nota, somos subitamente excitantes. A nossa fulgurante banalidade, até aqui desprezada, passou a ter valor. Chegou, finalmente, a nossa era. Preparem-se para normalidade, compostura mínima e mero bom senso. Vai ser mesmo mediano!


Texto do comediante português Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Sem remédio

Ela está sem remédio e então, às quatro da manhã de uma quarta-feira, tem seis ideias para livros infantis e grava áudios longos para seu editor. Seu editor gosta de duas ideias e pergunta se está tudo bem MESMO. Ela está sem remédio e então, enquanto vê um filme, tem quatro ideias de podcasts e grava áudios longos para produtores de podcasts, mas é sábado nove da noite e eles respondem “escuto na segunda” e ela deita no chão da sala e, enquanto vê o filme que deveria servir para que relaxasse e se divertisse, começa a fazer abdominais pois não tem tempo a perder e precisa otimizar o tempo e esse filme parece realmente ótimo e renderia uma resenha, uma coluna e talvez esse mesmo filme dê uma ideia de livro ou podcast ou roteiro e abdominais, ela bem sabe, pioram sua cervicalgia então ela manda mensagens para seu reumatologista e também para sua professora de pilates que, por ser sábado à noite, não respondem de imediato. Então ela resolve ver o filme fazendo listas do que precisa resolver sobre a saúde de sua filha que está ótima, é bem verdade, a filha está maravilhosa, mas não vai ao dentista há mais de um ano, mas é pandemia, mas mesmo assim ela precisa escrever DENTISTA na lista pra que isso pare de gritar dentro do seu cérebro e ela também escreve tudo o que precisa decidir e resolver sobre a obra da sua casa e toda a sua vida profissional de hoje até 2022. E ela faz listas porque é a única forma de ela ficar vendo o filme.

Seu marido pede que ela apenas veja o filme e então ela volta a se sentar no sofá e, escondida, ela começa a cutucar uma bolha no dedão e que delícia cutucar a bolha até que está quase na carne e ela segue cutucando e sai um pouco de sangue. A pele morta e dura e pontuda e ela enfia a ponta da casca do dedão dentro da unha do dedão da mão. E essa dor é gostosa. Será que ela fez bem em ficar sem remédio? Claro que fez. Ela vai meditar e correr e fazer muita terapia e estudar muita psicanálise e vai ficar sem remédios porque eles incham e dão uma pança metade molenga metade inchada estranha e ela sabe que são os remédios que retêm liquido e retˆm também, em um limbo canalha, toda a sua intensidade e vontade de transar e vontade de fazer tantas coisas mas tantas coisas que sometimes são duas da tarde e seu corpo dói tanto que acabou o dia e dói tipo o corpo inteiro inflamado e latejando e ela precisa deitar e deitar é uma merda pois ela gosta de otimizar o tempo. Então ela deita com seu caderno de listas e anota ideias e grava áudios longos para pessoas que curtem algumas das ideias mas perguntam que horas ela vai fazer tudo isso uma vez que ela já não está conseguindo fazer o que tem pra fazer. Ela tira três dias de férias e vai parar no hospital porque parar é insuportável.

Ela está sem remédios e já sente o enjoo chegar e ela estava meio com saudade disso. Do mal-estar meio que permanente e meio que todo dia que faz com que ela não deseje enfiar 67 pães com queijos e doce de leite pra dentro do corpo. Com remédio ela não tem o mal-estar que tantas vezes a fez ir embora de todos os lugares. Mas o bem-estar que ela tem com os remédios faz com que ela queira passar chocolate na parede e comer a parede e ela estava cansada dessa fome que não é ela e desse corpo que consegue ir pra todos os lugares sem medo e sem emoção (e sometimes é tanta emoção que por isso dá medo) mas que não é exatamente o dela. E agora até a pressão voltou a baixar e isso é um saco realmente mas é melhor do que uma pressão absolutamente estável e um olhar passível e equilibrado e que não se importa. Ela se importa tanto que dá medo e que saudade desse medo. Foram três anos sem gritar e arrumar encrenca e brigar e odiar e parece ótimo isso, nossa que pessoa funcional e madura. Mas é uma merda porque, socorro, olhem em volta, precisamos gritar e brigar. E ela escutou Strokes bem alto no carro e ficou inteira arrepiada e, perdão matrimônio, agora ela vê algumas pessoas, de todos os credos e gêneros e idades, e fantasia com elas. Antes ela via as pessoas e falava “obrigada”. Ela está sem remédios e isso é assustador e lindo e vai durar pouco mas ela vai aproveitar. Ela agarra e cheira e beija tanto a sua filha como se depois de três anos pudesse sorver sua filha sem a bolha da correção psíquica e hormonal. Sua filha diz “chega, mamãe, para, tá muito” e nunca chega e nunca para e é uma devoção tão avassaladora que dá medo e dá enjoo e a pressão cai e tá tudo bem.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato era de um racismo delirante

 Devo muito aos livros infantis de Monteiro Lobato, e entendo o esforço dos que, por afeição, querem defendê-lo das acusações de racismo.

O problema é que, apesar de suas qualidades como escritor, de sua extraordinária coragem política e de suas simpatias à esquerda, Lobato era tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista.

Lê-se muito pouco da sua obra para adultos. Lembro o conto “Negrinha”, em que pelo menos se mostravam as crueldades de uma sinhá branca em cima de uma “menina de criação”.

Fui ver o que Monteiro Lobato escreve em “O Presidente Negro”, romance de 1926 que, mesmo depois da ascensão de Hitler, ele não viu problema em reeditar.

No livro, o narrador da história começa falando mal dos Estados Unidos, mas muda de opinião quando ouve de Jane, a bela filha de um cientista, o seguinte argumento: “Que é a América, senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos eugênicos das melhores raças europeias?”.

Ayrton, o narrador, observa que os Estados Unidos não tiveram tanta sorte racial assim. “Entrou ainda, à força, arrancado da África, o negro.” Jane concorda: “Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela feliz composição”. Ayrton acha que o problema pode ser solucionado.

No Brasil, graças à mestiçagem, “dentro de cem ou 200 anos terá desaparecido o nosso negro”.
Ao contrário de Ayrton, Jane não acha “felicíssima” essa saída; na verdade, “estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos de raças díspares”.

A separação entre as raças, ocorrida nos Estados Unidos, não desagrada a Jane: “O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.

Não se pense que o narrador fique horrorizado. Apaixonara-se pela loura filha do cientista e comenta: “Como era forte o pensamento de Miss Jane!”.

Ela contará a Ayrton o que vai acontecer nos Estados Unidos. Primeiro, a população negra começará a crescer, enquanto os brancos praticam o controle da natalidade. Mais que isso: graças ao ministério da eugenia, decidiram matar os defeituosos de nascença e esterilizar os deficientes mentais, os “tarados” etc.

Os negros americanos também vão esbranquiçando, apesar de manterem o “cabelo carapinha”. Ficam com “um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”, diz Jane. “Barata descascada, sei”, responde Ayrton.

Nas eleições de 2228, os brancos se dividem: há um partido de mulheres feministas e outro, de homens. Sai vencedor o líder dos negros já “esbranquiçados”.

Situação grave. Não necessariamente porque os brancos podem tentar um golpe ao estilo de Trump, mas porque a “massa negra” despertava de sua submissão “e tremia de narinas ao vento, como tigre solto na jungle”.

Para se defender, os brancos inventam um raio que “alisa a carapinha”, de modo que “o tipo africano melhorava”. Acontece que o raio também era capaz de...

Não conto o final. Registre-se apenas que “armado de mais cérebro”, “o nobre, o duro” branco irá superar o obstáculo para o “ideal da supercivilização ariana”, impondo “um manso ponto final étnico ao grupo que ajudara a criar a América”.

É ficção? Passemos então a um artigo de crítica de arte, publicado nas “Ideias de Jeca Tatu”, livro de 1919. Chama-se “A Caricatura no Brasil”.

Durante a época colonial, diz Lobato, os portugueses “despejavam” no Brasil tudo quanto fosse “elemento antissocial” do reino. “E como o escravo indígena emperrasse no eito”, continua o autor, “para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível”.

Basta? Tem mais. Numa carta de 1928, Lobato diz que “um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca —mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.

Não é o caso de censurar seus livros infantis. Mas também não há escândalo em adaptá-los. Faz-se isso o tempo todo: “Moby Dick”“As Viagens de Gulliver”, “Pinóquio” foram inúmeras vezes reescritos e facilitados para as crianças; o próprio Lobato fez isso, com “Dom Quixote”, por exemplo.

Mas não dá para ignorar, desculpar e fingir que não existe racismo em Monteiro Lobato. Mais fácil perdoar o Trump.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

domingo, 17 de janeiro de 2021

Não vejo a hora de chegar a minha vez de tomar a vacina do Butantan

 Não vejo a hora de chegar a minha vez de tomar a vacina do Butantan.

O que eu espero de uma boa vacina? Que ela me proteja da doença e, se não proteger completamente, que pelo menos amenize os sintomas e me livre de internação hospitalar e, sobretudo, daquela senhora que vem com a foice.

A Coronavac parece atender a ambas expectativas. Primeiro, porque tem cerca de 50% de eficácia, isto é, com a vacinação meu risco de adoecer cai pela metade. Não é pouco.

Depois, porque dos 4.600 que receberam injeção de placebo, 31 desenvolveram sintomas leves, enquanto nos vacinados apenas sete apresentaram sintomatologia. Esses eventos permitiram concluir que houve 78% de redução do risco de desenvolver sintomas que justificassem procurar atendimento médico.

Doença de intensidade moderada ou grave não ocorreu em ninguém no grupo vacinado, contra sete hospitalizações no grupo placebo. Quer dizer que a proteção contra essas internações é de 100%? Não. Essa conclusão não pode ser tirada a partir de números tão pequenos. Existe a possibilidade teórica de que, ao imunizarmos outros milhares ou milhões, apareçam quadros mais graves.

Em vez de anunciar 100% de proteção contra casos graves e mortes, os divulgadores do estudo deveriam ter dito algo semelhante a “os resultados sugerem que a vacina tem potencial para evitar internações e mortes”. Também, não seria pouco.

A existência de um presidente da República capaz de afirmar que o Ministério da Saúde não compraria a “vacina chinesa do Doria” talvez tenha feito pressão para enfatizar o lado positivo da Coronavac, mas devemos nos ater aos dados para evitar mal-entendidos.

É simples: quero tomar a vacina para reduzir à metade o meu risco de ficar doente; quase 80% o de apresentar sintomas leves e, possivelmente, o de ter doença que exija internação hospitalar. Não está bom? Vai desafogar os hospitais. Quando a epidemia chegou, se soubéssemos que teríamos uma vacina
como essa em menos de um ano, não ficaríamos felizes?

Você, leitor cético, dirá: mas as vacinas da Pfizer e da Moderna atingem 95% de eficácia. Tem razão, mas custam dez vezes mais. E, pior, precisam ser mantidas a -70º C e -20º C, respectivamente. Quando chegam ao ponto de vacinação podem ir para a geladeira comum, mas a da Pfizer perde a validade em cinco dias, e a da Moderna em 30. Quantos conseguiríamos vacinar em tempo tão limitado?

Apesar dessas dificuldades que inviabilizariam a distribuição por um país continental com as desigualdades regionais do nosso, um governo responsável teria comprado as que estivessem disponíveis, pelo menos para os habitantes dos grande centros que dispõem da infraestrutura necessária. Para combater uma epidemia com tantos mortos qualquer ajuda é irrecusável.

A Coronavac e a vacina da AstraZeneca que será produzida pela Fiocruz são de baixo custo e dependem de armazenamento em geladeiras comuns, existentes nos 38 mil pontos de vacinações espalhados pelo território nacional. Você sabia, caríssima leitora, que o nosso desprezado SUS dispõe de 38 mil pontos de vacinação em atividade? Pergunte quantos há em cada país europeu ou nos Estados Unidos, por exemplo.

É muito bom vivermos num país com centros de pesquisa da qualidade da Fiocruz e do Butantan, com pesquisadores capazes de produzir vacinas eficazes em tempo tão curto. O acesso à vacinação
é a única condição para atingirmos a desejada imunidade coletiva. Nenhuma epidemia viral é eliminada sem vacina.

O desafio agora é imunizarmos dezenas de milhões de brasileiros com a maior urgência possível, tarefa que exigirá um esforço centralizado no PNI (Programa Nacional de Imunizações), do Ministério da Saúde. Se essa coordenação falhar, cada estado fará o que bem entender. Será o fim do PNI, que há 45 anos vacina crianças e adultos no maior programa de imunizações gratuitas do mundo.

Agora, é absurdo pretender vacinar tanta gente sem campanhas de divulgação pelo rádio, TV, jornais e internet. Convencer os brasileiros não será tarefa fácil, com tantos criminosos bombardeando os incautos com notícias falsas, tantos ignorantes a prescrever cloroquina e tantos desvairados a pregar um mundo sem vacinas.

Se até hoje o governo federal não fez nenhuma campanha sequer para conter a epidemia, esperar que vá fazê-lo agora é desconhecer a índole de quem o comanda.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Tetinha

 Conheci o Tetinha na Redação de uma revista semanal de notícias. Eu trabalhava com a equipe de marketing, mas, porque estava arrependida da minha formação, me enfiava nas reuniões de pauta e achava aquele universo fascinante. Eu queria escrever para a publicação, e não inventar títulos idiotas para vendê-la. Tetinha era bem mais velho do que eu e gostava bastante de cultivar uma aura de lenda viva do jornalismo por onde passasse. Colecionava prêmios e era famoso por circular de vermelho trechos do texto de todo mundo e escrever em caixa-alta um NÃO cheio de exclamações dramáticas.

Não sei se me faltava experiência ou se faltavam, às incipientes redes sociais, as feministas. O fato é que, aos 25 anos, eu achava a sua empáfia a coisa mais sexy do mundo. Além de tudo, Tetinha era triatleta, tinha a voz grossa e dizia ter sido fiel à ex-esposa durante os 20 anos em que foram casados.

“Olha, querida, se você quer mesmo escrever, esquece esse mundinho ridículo da publicidade e começa com textos de verdade.” E foi o que eu fiz: abri mão de um bom salário e virei sua estagiária. Depois, sem dinheiro pra pagar o condomínio (em uma idade bastante ridícula pra pedir a ajuda da mãe), eu tive que voltar a trabalhar em agência por um tempo. O que foi ótimo, porque aproveitei a distância profissional e chamei o Tetinha para jantar.

Até esse dia, acho importante dizer, Tetinha ainda não tinha esse apelido. Ele era o sr. “um sobrenome muito másculo”, e eu passava mal só de imaginar uma noite inteira com ele. Quantas coisas aquele homem poderia me ensinar sobre a vida, sobre os livros e, principalmente, sobre os prazeres ainda não revelados ao meu corpo neófito na arte do amor? Sei que estamos em 2021, e chamar um cara de “pica das galáxias” e dizer que ele “põe o pau na mesa” não pega bem. Mas pense em mim lá por meados de 2005 e me perdoe: minha libido ainda via esse sujeito poderoso pelos olhos da admiração falocêntrica.

Depois do jantar fomos para o meu pequeno apartamento, e Tetinha, que ainda não tinha esse apelido (mas o teria em alguns minutos), começou a esfregar seu torso no meu enquanto nos beijávamos. Primeiro eu ri, achando que ele estava tão soltinho que acabara de inventar uma espécie de forró que se dança sentado; depois fiquei preocupada, achando que ele era alérgico a frutos do mar e estava convulsionando.

Como ele não ria nem parecia doente, segui no intuito de comer aquele senhor quando Tetinha, que ganharia o apelido em segundos, começou a encaminhar minha mão para algum lugar e… opa será que é o pênis? Opa é agora! E foi então que finalmente alcancei, com a ajuda de Tetinha (o apelido chegaria em 3, 2…), o seu mamilo intumescido. “É isso mesmo?!”, perguntei, confusa. E ele me explicou que não ligava muito pra sexo, o lance dele era a teta. E me pediu, quase chorando, que eu a manipulasse por algum tempo. Nem pra dizer peito. Ele disse TE-TA. Aquela voz outrora vigorosa, que tanto me ensinara sobre Hunter S. Thompson, Nanni Moretti e Keith Jarrett, agora me pedia pra fazer uma espécie de pinça com os dedos e friccionar seus mamilos como se eu quisesse obter uma pequena bolinha de ranho: “Desculpa, mas só vai funcionar se com a mão esquerda você fizer no direito e com a mão direita você fizer no esquerdo”. Por insistência, me submeti a isso, na esperança de que algum gênio ainda saísse daquela lâmpada emasculada.

Quando, por fim, Tetinha atingiu o clímax, eu já estava com tendinite nos dedões e minha vontade de rir era maior do que a de amar a complexidade humana. Levei-o até a porta e ele me pediu que, caso um dia eu fosse escrever sobre isso, que esperasse pelo menos 15 anos. Eu era só uma menina e obedeci.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A humanização do embrião encobre a desumanização dos corpos femininos

1. O  bombeiro adentra o prédio em chamas e vê uma mulher implorando por socorro. Passa direto e abre a porta de um freezer, de onde tira um recipiente com um embrião congelado.

Abraça-o contra o corpo enquanto o teto despenca. “Vai ficar tudo bem”, promete ao zigoto, que não esboça reação. Fora do prédio, o bombeiro é recebido com aplausos, abafando o último grito da mulher que sucumbe ao fogo.

Para conhecer esse herói, basta defender a descriminalização do aborto. Ele surgirá em meio ao incêndio provocado pela declaração, fazendo o que considera o seu dever: salvar vidas. Seu impulso protetor sufoca e mata mulheres todos os dias. A humanização do embrião é uma cortina de fumaça que encobre a desumanização dos corpos femininos.

2. Quando certa manhã acordou de sonhos intranquilos, a mulher em idade fértil encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa incubadora neonatal.

Estava deitada de costas sobre sua carcaça —uma câmara com sensor de temperatura, lâmpadas ultravioleta e fonte de oxigênio. Havia se transformado em uma máquina cuja função era garantir um ambiente termoneutro para o pleno desenvolvimento de um bebê.

Não era um sonho. Não existiam mais sonhos que não fossem garantir um ambiente termoneutro para o pleno desenvolvimento de um bebê. Não havia sido projetada para presidir uma empresa ou disputar um campeonato de balonismo, mas não se deu por vencida. Foi trabalhar como se nada tivesse acontecido. Os pedestres a encaravam como se ela fosse transparente —e ela era.

E o que mais chocava na visão de uma incubadora com uma bolsa atravessada esperando o ônibus era o vazio notório em seu ventre de acrílico.

3. Gol do Bruno Henrique, toca a campainha. São representantes do governo em busca de apoio na luta contra o aborto.

O cidadão de bem cede sua assinatura sem tirar os olhos da tela verde. Mas não se tratava de abaixo-assinado e, sim, de termo de compromisso que o obriga a se submeter a uma vasectomia e o inclui automaticamente na fila de adoção.

Agora, ele não tem escolha a não ser lidar com as consequências de seus atos. Já não pode decidir pelo próprio corpo e pela própria vida.

Só queria assistir ao jogo do Flamengo em paz.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Amiga querida

 Numa cena de "Os Cafajestes", o filme de Ruy Guerra que, em 1962, sepultou as chanchadas da Atlântida e implantou o Cinema Novo, Jece Valadão enfiava um baseado no decote de uma atriz. A cena era atrevida para os padrões. E mais ainda porque a atriz era Germana de Lamare. Não porque fosse filha do pediatra Rinaldo de Lamare, autor do livro "A Vida do Bebê", um clássico do gênero, com dezenas de reedições. Mas porque ela era neta de Luiz Severiano Ribeiro Jr., magnata dos cinemas no Brasil e dono da Atlântida, a grande fábrica de chanchadas.

A ponta nos "Cafajestes", rodada meio de farra, foi sua única passagem pelo cinema. Como muitas meninas bem-nascidas da época, Germana fazia algum teatro, da geração de Dina Sfat e Ítala Nandi, mas nunca pensou numa carreira. Sua paixão era o jornalismo, mais exatamente o Correio da Manhã, de que era repórter, das poucas mulheres então no ramo, e de cujo 2º caderno seria editora.

Germana era amiga de José Celso Martinez Corrêa, para quem abriu seu apartamento na Vieira Souto como Q.G.. Em 1968, várias vezes saímos juntos do Correio, onde eu também trabalhava, para assistir aos ensaios de "Roda Viva", que ele iria estrear no Rio. Germana ficou 12 anos no jornal e, quando este fechou, em 1974, viu-se no espaço. Ir para outro nunca, ela dizia —para quem vivera o Correio da Manhã de Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Moniz Vianna e Paulo Francis, nem o New York Times teria graça.

Germana decidiu dar um trambolhão. Aos 37 anos, voltou a estudar. Prestou o vestibular de medicina e passou os oito anos seguintes em salas de aula, hospitais e enfermarias, dos quais saiu como psiquiatra.
A nova vida que ela começaria ali, pessoal e profissional, renderia sozinha outra coluna. E só poderia ser interrompida pela brutalidade da Covid, que a levou em dezembro último, aos 83 anos. Querida Germana.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Canetas transformaram a trivialidade em ritual no meu círculo familiar

 Meu pai usava caneta-tinteiro, mas de um jeito bastante peculiar e só quando ele sentava à mesa dele. Para longe da mesa, ele levava uma esferográfica descartável, no bolso superior esquerdo do colete.

No meio da escrivaninha dele, estava um conjunto de prata e cristal, que incluía um prato para pequenos papéis e talvez selos, dois frascos para as tintas (os quais, por serem transparentes, tornavam as tintas reconhecíveis —azul escura e vermelha) e, plantada no meio, uma bainha protetora que se confundia com uma pedra semipreciosa, o que dava ao conjunto um aspecto, ao mesmo tempo, de péssimo gosto e mágico, como se a caneta fosse Excalibur, fincada numa montanha e disposta a ser solta só pela mão do futuro rei Arthur (que a pedra e a espada reconheceriam).

Na época, escrever era uma tarefa constante no trabalho de um médico. Não havia computador de mesa, obviamente, e, além das receitas, as anotações do médico, a cada consulta, eram cruciais.

Sempre pensei que a caneta-tinteiro do meu pai estivesse quebrada, porque ele sequer tentava carregá-la de tinta (o que deveria acontecer por um pistão que, à primeira vista, parecia funcionar normalmente). Mas, como disse, ele sequer tentava: servia-se da caneta-tinteiro como se fosse uma pena das antigas —as que a gente molhava na tinta a cada duas ou três palavras.

Só que, no caso, o mesmo mecanismo que, numa caneta-tinteiro, garante o fluxo regular da tinta também fazia que a pena, uma vez molhada, durasse mais e permitisse escrever facilmente por duas ou três linhas.

Em suma, ele usava sua caneta-tinteiro como uma superpena das antigas e, claro, conseguia conciliar o cuidado para evitar os borrões (gotas de excesso de tinta) com uma reserva suficiente para escrever sem ter que estar molhando a pena o tempo inteiro.

Enfim, gostava de vê-lo escrever desse jeito; era uma arte da qual só soube depois da morte dele, que ela não correspondia a nenhum problema real: a caneta Excalibur não tinha nenhum defeito.

Completando o quadro familiar: meu irmão escrevia com esferográficas, de tipo recarregável, que ele terminava e para as quais comprava recargas.

Minha mãe escrevia com esferográficas descartáveis; ela substituía a caneta assim que se formasse uma acumulação de tinta quase sólida, presa na esfera da ponta.

Também ela disseminava as canetas, para que cada gaveta, arquivo ou agenda tivesse uma caneta própria, imediatamente pronta ao uso.

Meu avô (materno, o único que conheci) usava três esferográficas bastante luxuosas, de prata, cada uma com uma história (presente recebido na primeira comunhão ou no fim do ensino médio ou no noivado etc.). Com essas canetas, ele se debruçava sobre La Settimana Enigmistica (a semana em enigmas), o equivalente italiano de Coquetel (na verdade, Coquetel era o equivalente brasileiro da Settimana).

Da escrita dele, o que me sobra é a lembrança do silêncio: a esfera rolando sobre o papel, o suavíssimo toque metálico da esfera ou talvez do próprio mecanismo da caneta, talvez o cheiro também suave das balas que ele chupava enquanto pensava e resolvia enigmas.

A escrita era sempre parte do encanto —como se, em cada caso, a caneta e os gestos transformassem a trivialidade cotidiana em algo sagrado, um rito. Nada demais, escrever é sempre um pouco isso: conferir ao acontecimento a dignidade do registro.

E eu? Eu escrevia com caneta-tinteiro, desde muito cedo.

Ao longo do tempo, os incidentes (bolso da camisa ou do paletô encharcados de tinta) foram raríssimos.
Em compensação, estava com o indicador, o médio e às vezes o polegar da mão direita cronicamente manchados de tinta azul. Não eram manchas intensas; pareciam-se mais com um halo —aquele amarelado de resíduo de combustão na ponta dos dedos dos grandes fumadores.

Mais ou menos dois anos atrás, decidi reunir uma coleção (idealmente completa) de todas as canetas com as quais escrevi na minha vida.

Aquelas às quais eu fui fiel não foram tantas, mais ou menos uma dúzia.

Como me veio a ideia?

Foi porque uma (Montblanc Slimline 1122) sumiu de uma gaveta. Claro, pensei que tinha sido roubada —embora não valesse grande coisa.

Foi a falta de uma caneta que me deixou com a vontade implacável de tê-las todas de volta. Ou talvez de estar de volta para o começo da minha vida, com todas as canetas e as tintas.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Deve haver alguma fraude atrás de tanta fralda nas farmácias por todo lado

 Assisti, com tristeza, ao fechamento da Gávea Shop, a padaria do Moraes Moreira —assim chamada não porque o cantor fosse o seu dono mas um assíduo frequentador.

Era a última padaria do bairro, ou pelo menos da região, a ostentar frangos giratórios e pães colegiais. “Onde tomaremos nossa média requentada?”, perguntavam os passantes. O que substituirá os frangos? A que assistiriam os cachorros que por ali passassem?

“Alguma padaria gourmet”, vaticinavam os pessimistas. Donuts substituirão a rosca; cookies, o mentirinha; macchiatos, a média. O sonho, não tinha dúvida, acabaria. Acabou.

Eis que, no lugar dos sonhos, surgiram 30 opções de protetor solar. Paredes e mais paredes de fralda descartável. Totens de rejuvenescedores dermocalmantes para reparação corporal. No lugar da Gávea Shop, brotou uma Farma Life.

O curioso é que já tinha sete farmácias nas redondezas. Numa distância de 200 metros: Venâncio, Pacheco, Belacap, Cristal, Raia, Drogasmil e outra Cristal. Todas elas oferecendo os mesmos remédios, dos mesmos laboratórios.

Nenhuma delas trabalha com homeopatia, manipulação ou fitoterapia. Quando tive pedra nos rins, procurei em todas elas um chá de quebra-pedra. Um cabelo-de-milho. Não encontrei. Mandaram, com desdém, procurar no Mundo Verde. Encontrei.

Não tem um dia nessa cidade em que não feche um bar, um teatro, uma padaria. Houve um tempo em que abriam, no seu lugar, igrejas e salões de beleza. Menos mal: lá não se falta assunto. Fala-se bem de Deus e mal dos outros, ou vice-versa. Na farmácia, nem isso. Só se troca um CPF e um “seu troco, senhor”, no máximo um obrigado, e olhe lá.

Às vezes suspeito de algum esquema. Deve haver alguma fraude atrás de tanta fralda. É a cara do Brasil descobrir que as farmácias estão para o Bolsonaro como as joalherias para o Cabral (inclusive explicaria a cloroquina).

Mas talvez seja apenas um sinal dos tempos. A drogaria diz muito sobre como estamos:
assépticos, hipocondríacos, solitários —não se vai em bandos à farmácia. Nela encontra-se tudo, menos o que você mais precisa: maconha, cerveja, psilocibina, ácido lisérgico, gás hilariante, quebra-pedra.

Ainda vão trocar o sol pela luz fria, a terra pelo porcelanato e trocar o nome do país pra BR LIFE, a primeira nação-farmácia.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

As mudanças foram enormes de 1901 a 1921; agora, o passo é arrastado

Pode ser só impressão minha, mas acho que este século está andando muito devagar. Já estamos em 2021, e nos últimos 20 anos não aconteceu tanta coisa assim. Compare com o século 20. De 1901 a 1921, o mundo ficou irreconhecível.

As mulheres de espartilho, chapéu de plumas, sombrinha e vestidão preto até os pés deram lugar a melindrosas com saia acima do joelho, cabelo curtinho e cílios postiços.

Matronas de carruagem foram substituídas por aviadoras que fumavam nas horas vagas. E que votavam, também, em diversos países. A Austrália começou em 1902, a Finlândia, em 1906, a Inglaterra, em 1918 e os Estados Unidos, em 1920. 

Enquanto isso, em 2021 estamos comemorando a aprovação do direito ao aborto na Argentina, sem previsão no caso brasileiro. Política? Em 1910, só havia quatro repúblicas na Europa: França, Portugal, Suíça e San Marino.

Vinte anos depois, o quadro tinha mudado radicalmente. As dinastias seculares dos Romanov, na Rússia, dos Habsburgo, na Áustria, e dos Hohenzollern, na Alemanha, estavam enterradas.

Não falo do terremoto que foi a revolução bolchevique. Sua radical novidade, ainda fresca em 1921, foi também um fator de barbárie, e aquele falso futuro se esfacelou.

De qualquer modo, uma pessoa acostumada aos padrões de 1900 tinha tudo para ficar de cabelo em pé 20 anos depois.

O que temos agora? As democracias se veem desafiadas pelo populismo autoritário de TrumpBolsonaro e outros. Mas não se trata, por enquanto, de um abalo como os que se viram entre 1901 e 1921.

No começo do século 20, Pissarro e Monet ainda exploravam as nuances do impressionismo, e Picasso ainda era bem comportado. Em 1921, a arte já tinha explodido com o urinol de Duchamp. O cinema, surgindo do zero, já se estabelecera plenamente, com ChaplinFritz Lang e Cecil B. de Mille.

O que de novo tivemos no século 21? A Netflix, o aperfeiçoamento dos seriados, os efeitos de computador? Até os robôs marcam passo.

Em resumo, o mundo de 2021 não ficou muito diferente do de 2001. A maior revolução tecnológica destes tempos, a internet, já existia. Os celulares inteligentes, o streaming de música, o Waze, são subprodutos.

Continuamos demorando 11 horas de avião para chegar à Europa, continuamos pesquisando soluções para o câncer e o Alzheimer, continuamos consumindo plástico, carne e gasolina. Nem o papel acabou.

De significativo, nos últimos 20 anos deixamos de usar o talão de cheques. O hábito de fumar pertence claramente ao passado. Mas a legalização da maconha e outras drogas vai a passos de tartaruga. Verdade que o vegetarianismo cresce.

Tento me lembrar de outras mudanças, mas verifico que, para o bem ou para o mal, o século 21 ainda não começou.

Três acontecimentos importantes se deram até aqui: o atentado do 11 de Setembro, com o início da “guerra contra o terrorismo”; a crise de 2008, que se prolonga sem mexer muito com a hegemonia ideológica dos neoliberais; e agora, a pandemia.

Nada que se compare, creio, ao impacto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa.

Dá para prever, nos próximos dez anos, o crescimento do trabalho em casa, o declínio de uma infinidade de empregos (barbeiros, quem diria?), o fim do papel-moeda, uma revalorização da presença do Estado na economia, novas bolhas e estouros financeiros.

Mas, em matéria de mudança radical, acho que será preciso esperar mais um pouco.

Uma coisa das dimensões de 1914-1918 só vai vir com um verdadeiro apocalipse ambiental. Ou, Deus nos livre, com um conflito nuclear com China, Estados Unidos, Irã e Coreia do Norte pelo meio.

Hipóteses terríveis, mas que aí sim modificariam a face do mundo, se ainda houver mundo. Fora isso, a maior mudança que prevejo para o século 21 ainda está para acontecer.

Olhando um pouco além da política e da economia, o século passado ficará como o século das mulheres. Mudou-se (claro que ainda falta muito) um quadro de opressão com milênios de existência.

Cem anos foram pouco tempo, se pensarmos que desde a pré-história a humilhação, a violência, o mando masculino prosseguia quase inalterado.

Quem sabe o 21 marque um processo semelhante no que diz respeito aos negros e às demais etnias sob dominação dos brancos. O caminho da igualdade entre os sexos foi sendo aberto com pequenas e grandes modificações, com muitas e várias resistências; a igualdade entre as raças não tem por que não ir adiante.

São os meus votos, para este ano e para os próximos.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo