Dizem que, por conta da pandemia, não haverá Carnaval. Errado. É justamente por conta da pandemia que haverá Carnaval. Não será a festa a que estamos acostumados, manifestação popular que sacode o Brasil de norte a sul. Revanche gloriosa de ex-escravizados transformando banzo e raiva em alegria e beleza. Uma fresta de poucos dias que nos faz vislumbrar um país diferente, inclusivo, revolucionário. Dois mil e vinte e um celebrará o Carnaval dos ogros. A festa do avesso verá seu avesso: sai a turma do Joãozinho 30, entra a milícia do Zero Três.
Se tem que usar máscara, eles não usam. Se não adianta usar cloroquina, eles distribuem. Se tem que ficar em casa, vão pra balada. Se existe vacina, eles não compram —e fazem campanha contra. Se o Carnaval está cancelado pelas pessoas sensatas que ainda existem no Brasil, não me surpreenderia ver, em fevereiro, blocominions dominando as cidades.
Será o oposto d’“A banda”, do Chico Buarque. “Estava à toa na vida e o capitão me chamou/ Pra ver a banda marchar, gritando coisas de horror”. A concentração, imagino, será diante dos hospitais, para dificultar o trabalho dos profissionais de saúde, o sono dos doentes, zombar do sofrimento das famílias. Não lembram o buzinaço, ano passado, na frente do Hospital das Clínicas?
(Que narrativa esdrúxula leva pessoas a buzinarem para um hospital lotado de pessoas sob risco de vida? O que pensam estes dementes? Que aqueles doentes todos simulam estar com Covid porque foram comprados pela China, pelo PT, pelos homossexuais e maconheiros, por Bill Gates e George Soros para derrubar o governo Bolsonaro? Que todos os médicos e enfermeiros e demais funcionários do hospital, arriscando suas vidas há quase um ano para salvar as nossas, participam do mesmo teatro?).
O Carnaval dos imbecis provavelmente não terá pandeiro, surdo ou cuíca, mas carros de som tocando alguma dance music tosca da década de 90. Tipo “This is the rhythm of the night”, da banda chamada, vejam só, Corona. Pitboys tomando Red Bull contaminarão as falsas loiras de camiseta da seleção.
Famílias tirarão selfies com PMs e huskies siberianos com bandanas alviverdes latirão para os pretos esquálidos que passam por entre os bombados e as bombadas catando latinhas pelo chão.
No Rio, formarão o “Cordão do Bola Branca”, “Misoginia é mais que amor”, “Cordão do Ratatá”, “Minionbloco”. Senhoras entrevistadas na folia, sem máscaras, dirão ao jornal do SBT estar muito impressionadas: “Só cidadão de bem! Nem parece o Brasil! Parece a Fête de la music, em Paris! Se bem que em Paris até tem uma gente diferenciada. Árabe, africano, esses problemas de lá. Aqui não, ó! Só gente normal!”.
Bolsonaro talvez surja nesses blocos com um abadá de caveira. Talvez suba num deles e esbraveje à multidão: “Dois anos atrás, no que tange à questão aí de bloco de Carnaval, o que tinha era golden shower e ideologia gay, talquei?! Agora acabou! Tá tudo dominado! Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”. E o telecoteco que se ouvirá não será dos tamborins, mas dos tiros para o alto, dados pelos necrófilos.
Soa a loucura, como tudo o que estamos vivendo nos últimos anos, mas será apenas mais uma volta do parafuso num país que parece ter decidido suicidar-se coletivamente. Estamos indo bem. Já passam de 220 mil mortos —e contando. Somos os melhores do mundo em matar por Covid, segundo o Lowy Institute, de Sydney. Parabéns aos envolvidos! Ratatatá! Telecoteco! Zirigui-bala-dum-dum!
Crônica de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.