A desigualdade voltou a ganhar destaque recentemente no Brasil, a partir de novos dados que indicam uma estabilidade da concentração de renda dos mais ricos, desde 2006.
Vários especialistas já se manifestaram sobre o assunto, apontando que esse resultado decorre da ampliação dos estudos para incluir dados tributários, que melhor capturam a renda do capital no topo da pirâmide.
De fato, a queda da desigualdade registrada pelo IBGE é mais focada na renda do trabalho, em que se verifica uma melhora da distribuição, até 2011, por qualquer medida utilizada.
Quando se incluem dados tributários na análise, o resultado ainda é um aumento da parcela de renda dos mais pobres, mas com estabilidade da parcela dos mais ricos.
Em outras palavras, a classe média perdeu participação no total de renda e isso ajuda a entender parte do conflito político recente.
Em um texto de 2016, Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, apontou que a desigualdade é uma escolha política, não um resultado de forças externas à sociedade.
Palma analisou a distribuição pessoal de renda em 129 países, dividindo cada sociedade em três grupos: mais pobres (40% na base da pirâmide), classe média (os 50% seguintes) e os ricos (os 10% no topo).
Segundo Palma, há uma regularidade na maioria dos casos: a classe média detém aproximadamente 52% da renda pessoal, independentemente do grau de desigualdade do país em questão.
Onde a desigualdade é alta, os ricos têm uma parcela elevada do total da renda, enquanto os pobres têm uma parcela reduzida. Onde a desigualdade é baixa, os ricos têm uma parcela menor, e os pobres, uma parcela maior do bolo. Nos dois casos, a classe média tem cerca de 52% da renda pessoal.
Minha interpretação dos resultados de Palma é que, onde a desigualdade é alta, a classe média aceita que os ricos sejam muito ricos desde que os pobres sejam muito pobres. Já onde a desigualdade é baixa, a classe média aceita que os pobres sejam menos pobres, desde que os ricos não sejam tão ricos.
A "tolerância à desigualdade" de cada país reflete, portanto, sua preferência de renda relativa. Onde a desigualdade é alta, caso do Brasil, a classe média tolera a riqueza excessiva desde que sua renda também seja excessiva em relação aos mais pobres.
Como apontou o sociólogo Jessé de Souza, essa escolha (um resquício do período de escravidão) pode explicar mais de nossa história do que a hipótese do patrimonialismo, tão em voga ultimamente.
Esse é um tema a ser aprofundado, sobretudo porque a recente perda relativa da classe média contribuiu para o crescimento de uma oposição virulenta a governos de esquerda e políticas de inclusão social.
Essa oposição geralmente se agrupa sob a bandeira politicamente correta de combate à corrupção, mas seu crescimento também tende a fazer os pobres voltarem a ser mais pobres via apoio a uma agenda regressiva de política econômica.
A alternativa progressiva seria fazer com que os ricos contribuam mais para a redução da desigualdade. Essa foi uma falha dos governos do PT. Demoramos muito para enfrentar o problema. Corrigir esse erro é o caminho a seguir, além de ser perfeitamente compatível com o combate à corrupção.
Mas temo que isso só acontecerá quando a desigualdade subir para um nível que ameace a sobrevivência da classe média.
NELSON BARBOSA, doutor pela New School for Social Research, é professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV) e da UnB e pesquisador do Ibre. Foi ministro da Fazenda e do Planejamento (governo Dilma). Escreve às sextas-feiras, a cada 14 dias, nesta coluna.
Texto de Nelson Barbosa, na Folha de São Paulo.
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