Li um extraordinário ensaio de Stephen Greenblatt, na "New Yorker" de 19 de junho: "How St. Augustine Invented Sex", como santo Agostinho inventou o sexo.
Greenblatt é um autor de quem tento não perder nada, desde que li "The Swerve", de 2012 ("A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno", Companhia das Letras —esgotado, como pode?).
"The Swerve", para mim, está na lista dos 200 livros que é necessário ter lido para não morrer idiota.
Enfim, no ensaio da "New Yorker", Greenblatt aponta nas "Confissões" de santo Agostinho (fim do século 4) a origem das dificuldades da cultura cristã com os prazeres da carne.
O artigo está ligado ao novo livro de Greenblatt: "The Rise and Fall of Adam and Eve" (Norton, 2017), o surgimento e a queda de Adão e Eva, em que trata da aparição e eventual queda, na nossa cultura, do casal com o qual a Bíblia começa —sua história, suas imagens e sua inquietante exemplaridade.
Discute-se até hoje: há quem diga que eles são exemplo da miserável desobediência humana, e há quem diga que eles são os antepassados do Prometeu de Goethe, criaturas rebeldes a seu criador e orgulhosas de sua humanidade.
É o dilema de Adão e Eva: servidão e vergonha? Ou heroísmo da liberdade?
Tanto faz que a gente acredite ou não que eles foram realmente o primeiro casal criado. O que importa, para Greenblatt, é que sua fábula foi, durante séculos, uma maneira maravilhosa de agitar questões essenciais.
No sucesso da história de Adão e Eva, a função de Agostinho é crucial.
No sucesso da história de Adão e Eva, a função de Agostinho é crucial.
Inicialmente, Agostinho achava que o Gênesis era uma história para boi dormir.
Só depois de sua conversão, ele descobriu que Adão e Eva expulsos do Éden lhe eram muito úteis 1) para fundar a ideia de um pecado original (com o qual todos nasceríamos, por causa do pecado do casal inaugural) e 2) para que o tal pecado original fosse identificado com o tesão carnal.
Ou seja, pela desobediência de Adão e Eva, todos nascemos com a tara do desejo sexual.
O batismo nos livra do pecado original. E o que faremos para nos livrar do desejo sexual?
Ainda estou lendo o novo livro de Greenblatt. Enquanto isso, o artigo da "New Yorker" me mandou de volta para as "Confissões".
Minha primeira leitura do texto se dera no primeiro ano de faculdade. E minha lembrança era parecida com as quartas capas das inúmeras edições de bolso das "Confissões": um texto moderno, uma maneira de o autor interrogar suas próprias entranhas mais íntima e cativante que a de Montaigne nos "Ensaios".
Pois bem, pasmei. Um pouco porque o tempo passou e um pouco pelo prisma de Greenblatt, encontrei outro livro, inquietante e mórbido. Agostinho escreve para justificar a repressão, que ele se impõe, de seu próprio prazer carnal e de um passado que ele considera devasso e do qual ele não nos diz quase nada (homossexualidade? Promiscuidade? Vai saber).
Ele se consagra à castidade, seguindo o desejo de sua mãe, com quem, aliás, ele conhece uma espécie de êxtase orgásmica simultânea. E se defende contra seu próprio desejo transformando-o em pecado original de todos os humanos, do qual é necessário que todos se redimam.
Claro, o sexo é necessário para a reprodução, mas, para o cristão, os órgãos sexuais deveriam responder ao intelecto como qualquer outro órgão (sem tesão involuntário, então) e funcionar sem paixão e sem gozo especial, como quando alguém peida à vontade (exemplo dele, sorry).
Pela ficção seria difícil construir um relato tão exemplar do que é uma neurose.
Agora, que eu saiba, não há outros casos de um relato mórbido grave que tenha tido um sucesso comparável. Agostinho conseguiu mesmo transformar o asco doentio por seu próprio tesão em condenação do desejo sexual numa cultura inteira, por séculos.
As encruzilhadas da vida são curiosas.
Agostinho inventou um deus que pudesse ajudá-lo a reprimir seu desejo carnal.
Eu, desde a adolescência, deixei de acreditar no deus de Agostinho justamente porque me parecia absurdo que ele se preocupasse em reprimir o desejo carnal de quem quer que seja e especialmente o meu. Ou seja, ele chamou deus para que o auxiliasse na luta contra seu próprio prazer. Eu achei que realmente não precisava de um deus que fosse oposto a meus prazeres.
Alguém dirá que por isso irei ao Inferno. Veremos. Por enquanto, o fato é que Agostinho atormentou a vida de centenas de milhões. Eu, não.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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