“O peito avoluma e arqueia como cogote de potro. E as ventas se abrem gulosas por cheiro de madrugada. Potrilhos em disparada num Setembro de alvoroto.” É assim mesmo, mestre Aureliano de Figueiredo Pinto, bem assim como definiste nos versos do belíssimo e enigmático poema “Chimarrão da Madrugada”. Eu lembro que quando ainda cursava o Mestrado em Literatura Brasileira, na Ufrgs, decidi estudar tua poesia porque nela eu sentia o ardor, o cheiro e as metáforas que eu não enxergava em nunhum outro poeta. Por isso te elegi, querido doutor Aureliano, tu que deixaste de fazer tanta coisa, que recusaste tantos convites, mas preferiste cuidar de doentes em Santiago, junto aos pobres. E, ao mesmo tempo, escreve tão lindos versos, pois a poesia estava encravada em tua alma campeira. Por isso sempre te compreendi, porque de alguma forma somos parecidos, pelo menos no gosto pelas coisas do pago, pelo menos no gosto pela poesia, por tudo aquilo que fica entre o céu e a terra, aquilo que existe.
Quando chega setembro a gente aqui do Sul fica de outro jeito. As gurias suspiram e mexem em cadernos antigos a procura de antigas pétalas. Os irmãos ensebam botas, rédeas e lavam pelos de matungos enquanto as velhas brilham olhos de vidro nas janelas. Há um perfume diferente em setembro que contamina o ar, o cheiro da costela na brasa empesta os parques, homens a cavalo passam nos desvãos dos arrabaldes. É setembro. É este, mas a gente sabe que ele vem trazendo muitos outros que ficaram para trás, ele e seus ecos. Ouvem-se gritos, relinchos da eguada adelgaçada, um mês em que os peões churrasqueiam junto com os patrões, contam causos, riem e viram irmãos de novo. Será? Os historiadores só veem as causas e os resultados, não veem os entremeios. Perdemos a guerra? Sim, mas ganhamos uma identidade que talvez nunca tivéssemos sem aquela guerra de dez anos. Nossos ancestrais lutaram em muitas outras, mas esta foi a crucial para o nosso povo.
O decênio de 35 ainda ecoa em nós. Foram os peões, os negros, os mercenários, os fazendeiros, os nobres, todos os que caíram atravessados pelas lanças que ainda gritam nesses acampamentos. É fogo, é fumaça, é o som das gaitas e as fanfarronices, os versos, os desafios de trova, as declamações, tudo entreverado. Mais recentemente, um pouco de interesse comercial, palavras distorcidas sobre cultura, folclore, tradicionalismo, nativismo e regionalismo. Mas tudo isso faz parte do contexto, dos interesses que mudam sempre.
É setembro outra vez. De novo, muito alvoroço pelas ruas de todos os lugares, pequenos, médios ou grandes. Cavaleiros invadem as cidades, bem montados, aperos prateados, pilchas novas, revivendo um passado assim, nem tão glorioso. É preciso antes de tudo, compreender. Análises poderão mais tarde se mostrar precipitadas. Somos assim, esse é nosso destino e assim será, gostemos ou não. A realidade, meus amigos, não existe, existe apenas uma representação. Setembro vem, todos os anos, para que possamos representar tudo aquilo que fomos ou pensamos que fomos. Pouco importa.
O Rio Grande renasce nos setembros, nos fogões campeiros, onde retumbam ecos da nossa história. Ritual sagrado repassado de geração a geração por esse teimoso povo aqui do Sul.
Texto de Paulo Mendes no Blog Campereadas, no Correio do Povo.
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