sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Cada país tem a desigualdade que escolhe?

A desigualdade voltou a ganhar destaque recentemente no Brasil, a partir de novos dados que indicam uma estabilidade da concentração de renda dos mais ricos, desde 2006.
Vários especialistas já se manifestaram sobre o assunto, apontando que esse resultado decorre da ampliação dos estudos para incluir dados tributários, que melhor capturam a renda do capital no topo da pirâmide.
De fato, a queda da desigualdade registrada pelo IBGE é mais focada na renda do trabalho, em que se verifica uma melhora da distribuição, até 2011, por qualquer medida utilizada.
Quando se incluem dados tributários na análise, o resultado ainda é um aumento da parcela de renda dos mais pobres, mas com estabilidade da parcela dos mais ricos.
Em outras palavras, a classe média perdeu participação no total de renda e isso ajuda a entender parte do conflito político recente.
Em um texto de 2016, Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, apontou que a desigualdade é uma escolha política, não um resultado de forças externas à sociedade.
Palma analisou a distribuição pessoal de renda em 129 países, dividindo cada sociedade em três grupos: mais pobres (40% na base da pirâmide), classe média (os 50% seguintes) e os ricos (os 10% no topo).
Segundo Palma, há uma regularidade na maioria dos casos: a classe média detém aproximadamente 52% da renda pessoal, independentemente do grau de desigualdade do país em questão.
Onde a desigualdade é alta, os ricos têm uma parcela elevada do total da renda, enquanto os pobres têm uma parcela reduzida. Onde a desigualdade é baixa, os ricos têm uma parcela menor, e os pobres, uma parcela maior do bolo. Nos dois casos, a classe média tem cerca de 52% da renda pessoal.
Minha interpretação dos resultados de Palma é que, onde a desigualdade é alta, a classe média aceita que os ricos sejam muito ricos desde que os pobres sejam muito pobres. Já onde a desigualdade é baixa, a classe média aceita que os pobres sejam menos pobres, desde que os ricos não sejam tão ricos.
A "tolerância à desigualdade" de cada país reflete, portanto, sua preferência de renda relativa. Onde a desigualdade é alta, caso do Brasil, a classe média tolera a riqueza excessiva desde que sua renda também seja excessiva em relação aos mais pobres.
Como apontou o sociólogo Jessé de Souza, essa escolha (um resquício do período de escravidão) pode explicar mais de nossa história do que a hipótese do patrimonialismo, tão em voga ultimamente.
Esse é um tema a ser aprofundado, sobretudo porque a recente perda relativa da classe média contribuiu para o crescimento de uma oposição virulenta a governos de esquerda e políticas de inclusão social.
Essa oposição geralmente se agrupa sob a bandeira politicamente correta de combate à corrupção, mas seu crescimento também tende a fazer os pobres voltarem a ser mais pobres via apoio a uma agenda regressiva de política econômica.
A alternativa progressiva seria fazer com que os ricos contribuam mais para a redução da desigualdade. Essa foi uma falha dos governos do PT. Demoramos muito para enfrentar o problema. Corrigir esse erro é o caminho a seguir, além de ser perfeitamente compatível com o combate à corrupção.
Mas temo que isso só acontecerá quando a desigualdade subir para um nível que ameace a sobrevivência da classe média.
NELSON BARBOSA, doutor pela New School for Social Research, é professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV) e da UnB e pesquisador do Ibre. Foi ministro da Fazenda e do Planejamento (governo Dilma). Escreve às sextas-feiras, a cada 14 dias, nesta coluna.


Texto de Nelson Barbosa, na Folha de São Paulo

Texto de Santo Agostinho criou a culpa cristã frente ao sexo, afirma autor

Li um extraordinário ensaio de Stephen Greenblatt, na "New Yorker" de 19 de junho: "How St. Augustine Invented Sex", como santo Agostinho inventou o sexo.
Greenblatt é um autor de quem tento não perder nada, desde que li "The Swerve", de 2012 ("A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno", Companhia das Letras —esgotado, como pode?).
"The Swerve", para mim, está na lista dos 200 livros que é necessário ter lido para não morrer idiota.
Enfim, no ensaio da "New Yorker", Greenblatt aponta nas "Confissões" de santo Agostinho (fim do século 4) a origem das dificuldades da cultura cristã com os prazeres da carne.
O artigo está ligado ao novo livro de Greenblatt: "The Rise and Fall of Adam and Eve" (Norton, 2017), o surgimento e a queda de Adão e Eva, em que trata da aparição e eventual queda, na nossa cultura, do casal com o qual a Bíblia começa —sua história, suas imagens e sua inquietante exemplaridade.
Discute-se até hoje: há quem diga que eles são exemplo da miserável desobediência humana, e há quem diga que eles são os antepassados do Prometeu de Goethe, criaturas rebeldes a seu criador e orgulhosas de sua humanidade.
É o dilema de Adão e Eva: servidão e vergonha? Ou heroísmo da liberdade?
Tanto faz que a gente acredite ou não que eles foram realmente o primeiro casal criado. O que importa, para Greenblatt, é que sua fábula foi, durante séculos, uma maneira maravilhosa de agitar questões essenciais.
No sucesso da história de Adão e Eva, a função de Agostinho é crucial.
Inicialmente, Agostinho achava que o Gênesis era uma história para boi dormir.
Só depois de sua conversão, ele descobriu que Adão e Eva expulsos do Éden lhe eram muito úteis 1) para fundar a ideia de um pecado original (com o qual todos nasceríamos, por causa do pecado do casal inaugural) e 2) para que o tal pecado original fosse identificado com o tesão carnal.
Ou seja, pela desobediência de Adão e Eva, todos nascemos com a tara do desejo sexual.
O batismo nos livra do pecado original. E o que faremos para nos livrar do desejo sexual?
Ainda estou lendo o novo livro de Greenblatt. Enquanto isso, o artigo da "New Yorker" me mandou de volta para as "Confissões".
Minha primeira leitura do texto se dera no primeiro ano de faculdade. E minha lembrança era parecida com as quartas capas das inúmeras edições de bolso das "Confissões": um texto moderno, uma maneira de o autor interrogar suas próprias entranhas mais íntima e cativante que a de Montaigne nos "Ensaios".
Pois bem, pasmei. Um pouco porque o tempo passou e um pouco pelo prisma de Greenblatt, encontrei outro livro, inquietante e mórbido. Agostinho escreve para justificar a repressão, que ele se impõe, de seu próprio prazer carnal e de um passado que ele considera devasso e do qual ele não nos diz quase nada (homossexualidade? Promiscuidade? Vai saber).
Ele se consagra à castidade, seguindo o desejo de sua mãe, com quem, aliás, ele conhece uma espécie de êxtase orgásmica simultânea. E se defende contra seu próprio desejo transformando-o em pecado original de todos os humanos, do qual é necessário que todos se redimam.
Claro, o sexo é necessário para a reprodução, mas, para o cristão, os órgãos sexuais deveriam responder ao intelecto como qualquer outro órgão (sem tesão involuntário, então) e funcionar sem paixão e sem gozo especial, como quando alguém peida à vontade (exemplo dele, sorry).
Pela ficção seria difícil construir um relato tão exemplar do que é uma neurose.
Agora, que eu saiba, não há outros casos de um relato mórbido grave que tenha tido um sucesso comparável. Agostinho conseguiu mesmo transformar o asco doentio por seu próprio tesão em condenação do desejo sexual numa cultura inteira, por séculos.
As encruzilhadas da vida são curiosas.
Agostinho inventou um deus que pudesse ajudá-lo a reprimir seu desejo carnal.
Eu, desde a adolescência, deixei de acreditar no deus de Agostinho justamente porque me parecia absurdo que ele se preocupasse em reprimir o desejo carnal de quem quer que seja e especialmente o meu. Ou seja, ele chamou deus para que o auxiliasse na luta contra seu próprio prazer. Eu achei que realmente não precisava de um deus que fosse oposto a meus prazeres.
Alguém dirá que por isso irei ao Inferno. Veremos. Por enquanto, o fato é que Agostinho atormentou a vida de centenas de milhões. Eu, não.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Ecos de Setembro

“O peito avoluma e arqueia como cogote de potro. E as ventas se abrem gulosas por cheiro de madrugada. Potrilhos em disparada num Setembro de alvoroto.” É assim mesmo, mestre Aureliano de Figueiredo Pinto, bem assim como definiste nos versos do belíssimo e enigmático poema “Chimarrão da Madrugada”. Eu lembro que quando ainda cursava o Mestrado em Literatura Brasileira, na Ufrgs, decidi estudar tua poesia porque nela eu sentia o ardor, o cheiro e as metáforas que eu não enxergava em nunhum outro poeta. Por isso te elegi, querido doutor Aureliano, tu que deixaste de fazer tanta coisa, que recusaste tantos convites, mas preferiste cuidar de doentes em Santiago, junto aos pobres. E, ao mesmo tempo, escreve tão lindos versos, pois a poesia estava encravada em tua alma campeira. Por isso sempre te compreendi, porque de alguma forma somos parecidos, pelo menos no gosto pelas coisas do pago, pelo menos no gosto pela poesia, por tudo aquilo que fica entre o céu e a terra, aquilo que existe.
Quando chega setembro a gente aqui do Sul fica de outro jeito. As gurias suspiram e mexem em cadernos antigos a procura de antigas pétalas. Os irmãos ensebam botas, rédeas e lavam pelos de matungos enquanto as velhas brilham olhos de vidro nas janelas. Há um perfume diferente em setembro que contamina o ar, o cheiro da costela na brasa empesta os parques, homens a cavalo passam nos desvãos dos arrabaldes. É setembro. É este, mas a gente sabe que ele vem trazendo muitos outros que ficaram para trás, ele e seus ecos. Ouvem-se gritos, relinchos da eguada adelgaçada, um mês em que os peões churrasqueiam junto com os patrões, contam causos, riem e viram irmãos de novo. Será? Os historiadores só veem as causas e os resultados, não veem os entremeios. Perdemos a guerra? Sim, mas ganhamos uma identidade que talvez nunca tivéssemos sem aquela guerra de dez anos. Nossos ancestrais lutaram em muitas outras, mas esta foi a crucial para o nosso povo.
O decênio de 35 ainda ecoa em nós. Foram os peões, os negros, os mercenários, os fazendeiros, os nobres, todos os que caíram atravessados pelas lanças que ainda gritam nesses acampamentos. É fogo, é fumaça, é o som das gaitas e as fanfarronices, os versos, os desafios de trova, as declamações, tudo entreverado. Mais recentemente, um pouco de interesse comercial, palavras distorcidas sobre cultura, folclore, tradicionalismo, nativismo e regionalismo. Mas tudo isso faz parte do contexto, dos interesses que mudam sempre.
É setembro outra vez. De novo, muito alvoroço pelas ruas de todos os lugares, pequenos, médios ou grandes. Cavaleiros invadem as cidades, bem montados, aperos prateados, pilchas novas, revivendo um passado assim, nem tão glorioso. É preciso antes de tudo, compreender. Análises poderão mais tarde se mostrar precipitadas. Somos assim, esse é nosso destino e assim será, gostemos ou não. A realidade, meus amigos, não existe, existe apenas uma representação. Setembro vem, todos os anos, para que possamos representar tudo aquilo que fomos ou pensamos que fomos. Pouco importa.
O Rio Grande renasce nos setembros, nos fogões campeiros, onde retumbam ecos da nossa história. Ritual sagrado repassado de geração a geração por esse teimoso povo aqui do Sul.

Texto de Paulo Mendes no Blog Campereadas, no Correio do Povo

Brasileiros, mais um esforço para sermos liberais

Domingo, 10 de setembro, em Porto Alegre, o Santander Cultural encerrou a exposição "Queermuseu". O banco se apavorou diante das ameaças de boicote por clientes indignados com algumas das obras expostas –as quais ofenderiam a moral e instigariam pensamentos e atos impuros.
Uma parte, ao menos, dos protestos veio de pessoas que se declaram "liberais". Mamma mia. Liberal é quem defende, antes de mais nada, a liberdade do indivíduo (limitada apenas pelo Código Penal). Um liberal que não gostasse das obras expostas visitaria outra exposição. Ponto. Pretender boicotar o banco se a exposição não for fechada, essa é a conduta de grupos confessionais ou totalitários (fascistas ou comunistas).
Enquanto isso, os verdadeiros liberais, de esquerda ou de centro, tanto faz, escrevem colunas nos jornais, como eu agora, mas não agem. O que seria agir? Simples. Por sorte, sou cliente Itaú. Se eu fosse cliente Santander, acho que, nesta altura, fecharia minhas contas. Não aceitaria ser cliente de um banco que não corta nem sequer os pelos da orelha em nome da arte, mas chama seu serviço VIP de Van Gogh.
No dia 14, em Campo Grande, deputados registraram boletim de ocorrência alegando que um quadro exposto no Museu de Arte Contemporânea local faria apologia da pedofilia (de fato, a obra é uma denúncia).
Fora que a Constituição do Brasil é assim ludibriada, constato que, depois de milhares de abusos sexuais de crianças por parte de padres católicos (acobertados pela Igreja durante anos), ninguém denunciou inúmeras imagens que a Igreja propõe a seus fiéis e que alimentam a paixão pedofílica de seus ministros. Conheci padres atormentados, tentados e perseguidos pelas vinhetas do santo abraçando "com amor" as criancinhas que tanto gostavam dele. Se eu fosse procurador, é aí que procuraria a apologia do crime de pedofilia.
Mas o que me importa hoje é que o moralismo mais grosseiro exerce sua força política em chantagens eleitorais (ou comerciais, como com o Santander). Enquanto isso, os liberais se indignam e não agem –provavelmente pela antipatia que eles sentem por toda forma de ação coletiva. Mas como resistir a um obscurantismo no qual não gostaríamos de viver?
Um candidato que se diz liberal procura apoio nos fundamentalistas religiosos? Fora da nossa lista.
Um deputado promove uma lei para "curar" os gays ou, em geral, as pessoas que gozam de uma forma diferente da dele? Vamos pensar em como inserir, no próximo manual diagnóstico estatístico, o fundamentalismo religioso e moral como patologia?
Três anos atrás, em Veneza, entrei na igreja de San Zanipolo (João e Paulo). O guarda exigiu que a namorada de meu filho, que estava de shorts, escondesse suas pernas com uma manta.
"Quem instaurou essa regra?". Ele respondeu: "O papa". Perguntei se o papa tinha telefonado pessoalmente para o pároco. "Você não acha que o papa tem mais o que fazer?". Ele, consciente do ridículo, admitiu que não tinha sido o papa pessoalmente.
Perguntei se eu poderia entrar sem camisa. "Não!". Apontei para um crucifixo: "Ele estava nu". Ele respondeu que "Ele pode"... porque é Jesus". Concordei e continuei: "E os outros? Os mártires que aparecem nus nos quadros que decoram as igrejas do mundo inteiro?". Ele: "Também podem, porque foram supliciados". Minha vez: "Alguém que tivesse a cicatriz de uma cirurgia torácica ou cardíaca ou então as marcas do açoite por ter sido batido quando criança por pais sádicos, ele poderia? Você consideraria que ele foi supliciado?". "Não", ele respondeu, "os mártires morreram". "Então", resumi, "os mortos podem comparecer nus na igreja, os vivos, não. É isso?".
O homem ficou calado e irritado. Eu: "Sabe, eu sou terapeuta de adolescentes. Se seu problema for evitar que as pessoas se excitem sexualmente, você tem um problema: conheci dezenas de meninas que se masturbaram durante anos olhando para uma representação do momento em que arrancam os seios de santa Águeda mártir. E conheci dezenas de meninos que passaram anos se masturbando olhando para são Sebastião amarrado e transfixado de flechas. Os mártires são uma tremenda inspiração erótica...".
Os incendiários, às vezes, se fazem de bombeiros.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Você está insatisfeita com o corpo?

No Brasil, o corpo jovem e magro é extremamente valorizado. Não é à toa que as brasileiras investem tanto tempo e dinheiro na busca incessante de construir a aparência ideal. Elas consideram o corpo um verdadeiro capital.
Quando pergunto o que as mulheres mais invejam nos homens, elas respondem, categoricamente, liberdade, especialmente liberdade com o próprio corpo.
Quando pergunto o que mais invejam nas mulheres, elas dizem beleza, corpo, magreza, juventude e inúmeros aspectos relacionados à aparência.
O que mais me preocupa neste culto ao corpo é o enorme sofrimento que ele provoca nas mulheres, inclusive nas que são consideradas belas, jovens, magras e atraentes.
Inúmeras pesquisas revelam que a brasileira é a campeã na busca do "corpo perfeito": somos as primeiras ou segundas (após os EUA) em número de cirurgias estéticas, as que mais desejam fazer alguma plástica, as que mais deixam de ir a festas ou até mesmo ao trabalho por se sentirem gordas e feias, as que mais pintam o cabelo, as que mais consomem remédios para emagrecer, para dormir e antidepressivos etc.
Como disse uma professora de 45 anos, a valorização da juventude só nos faz sentir, cada vez mais precocemente, velhas:
"Quando fiz 40 anos tive a maior crise da minha vida. Descobri que sou uma mulher invisível, transparente, sem qualquer tipo de beleza e sensualidade. Não tenho tempo para cuidar de mim, com tantas obrigações com a casa, filhos adolescentes, marido, trabalho e ainda me sinto culpada por não conseguir malhar e emagrecer. Estou exausta, deprimida, irritada e não durmo direito. É uma luta diária com o meu corpo que só me traz frustração e a sensação de que sou um fracasso como mulher".
A professora revela que algumas amigas são viciadas em plásticas e fazem qualquer loucura para emagrecer: fumam, comem papinha de bebê, tomam laxantes etc. Disse que existe uma espécie de "gordofobia" e "velhofobia" ao seu redor.
Ela mostra a mesma angústia de inúmeras brasileiras: "Como posso me sentir tão velha e acabada se só tenho 45 anos? Por que tanto sacrifício para conquistar um corpo que eu sei que é impossível? Como posso lutar tanto por liberdade e ser prisioneira da insatisfação com o meu próprio corpo?".


Texto de Mirian Goldenberg na Folha de São Paulo

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Dr. Machismo

O primeiro obstetra indicado parecia um ursinho carinhoso, de tão doce e baixinho. Eu já estava me deleitando em segurança e afetividade filial quando ele mandou, sem dó, no meio do meu ultrassom transvaginal: "Se for menina o cérebro demora mais para se formar, se é que um dia se forma". E riu, buscando na face de meu marido chocado alguma camaradagem, um aval "testosterônico" para a piadota estúpida. Nunca mais voltei ali.
Tentei a segunda indicação e já na sala de espera vi que o relacionamento não iria pra frente. O lugar parecia um lounge do shopping Cidade Jardim. Mulheres muito magras, maquiadas e montadas lançavam à atmosfera, sem nenhum pudor, angústias existenciais tão ocas quanto as de uma Barbie sem útero: "Tadinha da minha Pietra, convive na escola com amiguinhos que têm jatinho particular e sofre por não ter um".
O médico era tratado como uma estrela intocável (de fato, me cobrou uma fortuna e nem sequer encostou em mim, suas assistentes é que fazem tudo). O corre-corre de enfermeiras e secretárias mais parecia os bastidores de um famoso show que entraria no ar assim que eu, ou qualquer gestante, topasse ser a escadinha insignificante para o grande protagonista da manhã. Depois de solar ininterruptamente, por uma hora, sobre como ele era incrível, me sobraram cinco minutos para que eu perguntasse se era normal andar meio esquecida. Ao que ele respondeu, terno, elegante: "Querida, mulher já é burra, imagina com a progesterona causando edema cerebral!" Nunca mais voltei ali.
Finalmente marquei com uma mulher. Talvez eu a abraçasse e chorasse apenas por ela ter uma vagina. Finalmente estava a salvo! Não. Me lembrei que mulheres também podem ser muito machistas quando ela começou a falar que o mais importante, durante a minha gestação, era não esquecer de ser atraente para o meu marido. Eu precisava me manter bonita, agradável e com apetite sexual. Eu tinha que me forçar a sair de casa, fazer ginástica e, caso não estivesse a fim do sexo em si, não custava "fazer um agradinho". Era isso ou "liberar um 'freepass' pro maridão sair". Sim, eu ouvi essa frase. Eu tinha uma lista com 200 perguntas que nada tinham a ver com meu marido (tampouco com a alegria peniana dele), mas a consulta acabou virando dicas cretinas de revista funesta. Quem, com azia, prisão de ventre, enjoo, enxaqueca, sono e cansaço quer transar? Bom, segundo essa médica, era preciso "se forçar um pouquinho". Ela coroou seu discurso dizendo que amamentação não era pra durar mais do que três meses e que "bebês são muito chatos, legal é quando a criança já consegue discutir política". Nunca mais voltei.
Traumatizada pelos doutores tradicionais, quase caí no papo dos pequenos templos dos ditadores da fofura. Aquela gente que te olha como se você fosse um Hitler de pança só porque a situação "parir num riacho a 3.000 quilômetros de um bom hospital" não lhe parece a opção mais adequada. Não, eu não quero passar gengibre no mamilo, camomila na vulva e chia no ânus, eu quero tatuar "viva a descoberta da anestesia" na testa! Enfim liberta do espartilho ecológico "parindo como no século 15" travestido de cartilha bondosa da mãe natureza, ainda sigo em busca do que, em essência, deveria ser muito simples: um médico que não fale tanta merda.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo