terça-feira, 30 de junho de 2015

A crise da Grécia e as armas do capital

O cerco imposto à Grécia tem antecedentes desde que o mundo conheceu a maior máquina de globalização da história: a do capital financeiro.
Esse processo se inicia ainda no século 19, sob a batuta do Banco da Inglaterra e o sistema de conversão em ouro. Um país só poderia emitir moeda se lastreada em ouro depositado em seu banco central.
Cada vez que a Inglaterra sofria algum problema de liquidez, bastava um leve aumento nas taxas da Libor para atrair ouro de outros países, obrigando os respectivos governos a enxugar a liquidez.
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De certo modo, o ponto central de distinção entre desenvolvidos e emergentes estava na maior ou menor vulnerabilidade externa.
Desde o início, um dos grandes mercados do capital financeiro foram os empréstimos a governos. E, quando os empréstimos não eram honradas, o calote justificaria até a invasão do país devedor pelo credor, conforme decisão da Corte Internacional de Haia, referendada pelo representante brasileiro, Ruy Barbosa.
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A vulnerabilidade externa sempre foi um dos grandes fatores de debilidade da economia brasileira. Ao longo da história, o país renegociou várias vezes as dívidas.
Ao longo do século, sempre houve um conflito entre prioridades nacionais e as prioridades do capital financeiro. Para este interessa o livre trânsito e a previsibilidade. Por tal, entenda-se políticas cambiais previsíveis. As grandes oscilações cambiais são aproveitadas pelos mais espertos, mas não pelo todo.
Para as nações, projetos de desenvolvimento jamais prescindiram de moedas competitivas (desvalorizadas) nas fases iniciais de desenvolvimento. É o que assegura a condição de competir, via preços, com os produtos tecnologicamente mais avançados dos países centrais.
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Ao longo de toda história econômica do século, vigoraram as tentativas de impedir a autonomia da política cambial. Em parte da história – especialmente no século 19 – através da conversibilidade do ouro.
No pós guerra, através do acordo de Bretton Woods, definindo paridades cambiais a serem obedecidas pelas nações, o Brasil entrou de pé esquerdo no acordo porque entre a definição das paridades e o início da sua implementação houve uma inflação interna que apreciou a moeda brasileira.
A cada soluço de crescimento, com Vargas, JK, Jango, Figueiredo, Sarney, FHC havia uma crise nas contas externas interrompendo a caminhada.
Depois, com a União Europeia, os países membros abdicaram da sua própria moeda.
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Hoje em dia, quando um país devedor quebra, sem dispor da alternativa de promover políticas cambiais competitivas, não é necessário a diplomacia das canhoneiras.
Basta uma agência de risco rebaixar a nota e cortar-se o fluxo de oxigênio. Antes disso, os capitais locais fogem do país sem encontrar obstáculos pela frente. Nos últimos dias, 4 bilhões de euro deixaram a Grécia. E a dívida renegociada é de 2 bilhões de euros.
Nos próximos dias, será um Zeus nos salve. E se constatará que avanços imensuráveis do setor financeiro, criação de ferramentas sofisticadíssimas, união de algumas das maiores economias mundiais... Tudo isso foi insuficiente para salvar um pequeno país, berço da civilização ocidental. Salvou apenas os capitais que afundaram a Grécia.

Reprodução do Blog do Luís Nassif.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Morre o tradicionalista Nico Fagundes, aos 80 anos

Morre o tradicionalista Nico Fagundes, aos 80 anos

Cantor, compositor e apresentador estava internado há cerca de um mês no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre


Um dos expoentes da cultura tradicionalista do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Fagundes morreu na noite desta quarta-feira, no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre. O músico, historiador e folclorista tinha 80 anos e estava internado há cerca de um mês por conta de uma infecção respiratória — em decorrência de complicações, teve constatada falência múltipla de órgãos. O velório de Nico, como era conhecido, será realizado na manhã de quinta-feira, no Salão Negrinho do Pastoreio, no Palácio Piratini.
O também tradicionalista Ernesto Fagundes descreveu a morte do tio como "uma grande perda":
— Sempre foi um guerreiro, um apaixonado pela vida. Foi um grande amigo, tio e parceiro.
Nos últimos anos, Nico enfrentou uma série de problemas de saúde — um derrame, em 2000, e uma infecção que chegou a deixá-lo em coma, em 2010. O autor da célebre letra do Canto Alegretense nasceu em Alegrete em 4 de novembro de 1934 — município que homenagearia com a composição, um dos hinos da música regionalista.
Chegou a Porto Alegre aos 20 anos e rapidamente se enturmou com os fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Inicialmente, atuou como poeta e divulgador da obra de, entre outros, Aparício Silva Rillo e Jayme Caetano Braun.

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Jornalista investiga morte de inglesa por predador sexual

Jornalista investiga morte de inglesa por predador sexual

Richard Lloyd Parry junta peças do assassinato de hostess no Japão em 2000
Preconceitos sociais e as muitas falhas na apuração policial são retratadas em 'Devoradores de Sombras', lançado pela Três Estrelas
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA

A imprensa começava a perder interesse no desaparecimento de Lucie Blackman, jovem inglesa que chegara ao Japão em 2000 para trabalhar como hostess num bar, quando o jornalista inglês sediado em Tóquio Richard Lloyd Parry viu na história um livro em potencial.
O motivo, depois de meses de investigações infrutíferas, foi a entrada em cena de um novo personagem: Joji Obara, milionário japonês filho de zainichis (imigrantes coreanos), tão discreto em público quanto capaz de atrocidades entre quatro paredes.
As peças que Lloyd Parry juntou a partir do crime cometido por Obara em meados de 2000, e de outros que passaram a vir à tona, fazem de "Devoradores de Sombra" um thriller digno das várias listas de melhores do ano (ou da década) que frequentou desde o lançamento, em 2011.
Lançada agora pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, a obra amarra a trajetória de Lucie, os riscos vividos pelas mulheres que trabalham na noite de Tóquio, a corrupção policial japonesa, o preconceito sofrido pela comunidade coreana no país e a abjeta vida de Obara, de garoto solitário a empresário que por décadas registrou em vídeo os estupros que cometeu.
"As reportagens que fiz na época não davam conta da complexidade da história. O que faz exatamente uma hostess? Por que o julgamento durou tanto? Qual o problema da família de Lucie?", diz Lloyd Parry, por e-mail.
Obara "era diferente de qualquer personagem" que o autor tivesse encontrado antes. Nascido em Osaka, em 1952, filho de um casal coreano que migrou para o Japão antes da Segunda Guerra, cresceu numa mansão --seu pai fez enorme fortuna, não se sabe exatamente como.
Sem amigos, foi mudando de nome e acumulando propriedades durante a vida até se tornar esse homem do qual várias hostesses guardavam péssimas e poucas lembranças --os encontros com ele sempre terminavam com elas apagadas, drogadas, num apartamento na praia.

POLÍCIA

Boa parte do livro é dedicada à descrição da investigação promovida pela polícia japonesa, cuja atuação, para Lloyd Parry, demonstra uma "incompetência institucional" --apesar de uma quantidade enorme de pistas, foram sete meses até o corpo da vítima ser localizado.
Uma das razões, para o autor, foi um modelo de investigação que prioriza a confissão do acusado. Para a polícia japonesa, segundo ele descreve, não basta saber que um crime foi cometido e como, mas descobrir por quê.
"Não foi só que eles demoraram demais a descobrir o que tinha acontecido com Lucie depois que ela desapareceu. Joji Obara deveria ter sido mandado para a cadeia vários anos antes --pelo menos em 1992, quando matou outra jovem mulher, Carita Ridgway", diz o autor.
Por anos, várias mulheres que terminaram encontros com Obara desacordadas o denunciaram, mas a polícia nunca fez nada a respeito.
"Não sei como é no Brasil, mas, na Inglaterra, há o senso comum de que é injusto culpar a vítima de violência sexual pelo que aconteceu com ela. A morte de uma prostituta --e Lucie estava longe de ser uma-- é tão trágica e inaceitável quanto a morte de uma freira."
Para o jornalista, a polícia não dava atenção às denúncias por não acreditar que fosse necessário se preocupar com quaisquer violências que as hostesses sofressem nos encontros com seus clientes.
Foi preciso Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, se manifestar a respeito para o caso ser solucionado, e Obara, condenado.


Reprodução da Folha de São Paulo

Racismo


O racismo voltou a exibir sua feiura nos Estados Unidos, no homicídio de nove paroquianos negros, entre os quais a reverenda Clementa Pinckney, senadora estadual pelo Partido Democrata na Carolina do Sul, durante uma aula sobre a bíblia na Igreja Episcopal Metodista Africana Emanuel, a mais antiga congregação negra no sul do país. O homicídio em massa foi supostamente perpetrado por Dylann Roof, 21, um atirador racista.
O presidente Barack Obama expressou sua frustração quanto ao mais recente episódio de mortes de negros nos últimos meses, bem como quanto à tarefa de um dia afastar os norte-americanos de seu amor aparentemente obsessivo por armas de fogo.
Depois de um ano de intenso debate sobre as relações raciais nos EUA por conta de diversas mortes de negros desarmados por policiais brancos, e de um movimento renovado pelos direitos civis, é triste que o primeiro presidente negro do país se veja forçado a lidar constantemente com o legado do racismo em sua sociedade.
Até onde os políticos se importam, a questão se reduziu ao simbolismo da bandeira confederada desfraldada sobre a sede do Legislativo da Carolina do Sul, transferida a um mastro no chão em 2000. Obama declarou que a bandeira deveria estar em um museu. Para a maioria dos norte-americanos, ela é símbolo da escravidão, repressão e vergonha. Para a Carolina do Sul, especialmente, a memória da guerra civil pesa muito. Ela foi o primeiro Estado a se declarar favorável à confederação. Foi em Charleston que os primeiros disparos da guerra foram feitos. Foi em abril de 1861 que o bombardeio confederado ao Forte Sumter deflagrou os quatro anos de luta entre o norte e o sul. O Estado, que tinha uma população de 301 mil pessoas livres e 402 mil escravos, perdeu 12 mil homens brancos durante a guerra, a maior porcentagem entre todos os Estados sulistas.
A Carolina do Sul também proveu um dos heróis negros da guerra civil, Robert Smalls, escravo que escapou com o código secreto dos confederados, contendo sinais e a localização das minas e torpedos posicionados na baía de Charleston. Ele também ajudou a persuadir Abraham Lincoln a aceitar soldados negros no exército da união. As forças confederadas abandonaram o Forte em 1865, e o 54º Regimento de Massachusetts, uma unidade negra, marchou para a cidade de Charleston.
Os paroquianos negros da igreja Emanuel receberam com gentileza o jovem branco Dylann Roof quando ele se uniu ao seu grupo de estudo da Bíblia. Talvez, nos próximos dias, os brancos e negros devam recordar sua história compartilhada, a do ex-escravo e unionista Robert Small e eles possam todos começar a deixar para trás os divisivos ódios do passado.

A maioridade penal

Pelas últimas pesquisas Datafolha, nove brasileiros em cada dez aprovam a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
Misteriosamente, o debate sobre a redução da maioridade penal se tornou um debate político. Talvez porque a proposta tenha sido apoiada por deputados considerados de direita (a dita bancada da bala).
Ou talvez por causa de um cálculo, que pode ser certeiro, mas cuja conclusão não convence: 1) em sua maioria, os menores infratores são de família pobre; 2) portanto, a redução da maioridade penal colocará mais adolescentes pobres na cadeia; 3) conclusão: essa mudança é um ataque contra os pobres.
Ou ainda porque punir é considerado um verbo "de direita", enquanto verbos de esquerda seriam "entender, explicar, reeducar". Nota: cá entre nós, reeducar pode ser muito pior que punir.
Enfim, um leitor me pergunta se estou satisfeito. Claro que não. Eu não sou a favor da redução da maioridade penal: sou contra a própria ideia de definir uma maioridade penal.
Qualquer data que a gente estabeleça é arbitrária. Se assalto e mato com 15 anos e 364 dias, serei um menor infrator. Se assalto e mato no primeiro dia de meus 16 anos, ou seja, 24 horas depois, serei um adulto criminoso. É bizarro.
As razões invocadas para justificar o estatuto do menor vão desde a pouca experiência de vida até o desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal.
Mas há adultos com uma experiência de vida miserável, assim como há adultos impulsivos cujo córtex pré-frontal, provavelmente, não é muito mais desenvolvido que numa crianças de nove anos. Por que as mesmas razões não valeriam como justificativa para esses adultos?
Acredito que há crimes que são, por assim dizer, próprios da adolescência, de sua rebeldia, de sua inconsequência e mesmo de sua estupidez. E há crimes que são crimes, e basta. O critério não é só a gravidade, mas também a motivação, as circunstâncias, os precedentes, ou seja, fatores que dificilmente podem ser enumerados num Código Penal. Por isso, acho que um juiz ou um júri deveriam decidir, em cada caso, se um acusado será julgado como menor ou como adulto.
Aparte: se não confiarmos em juízes e júris, melhor desistirmos da própria ideia de poder judiciário, não é?
Quatro adolescentes, no fim de maio, em Castelo de Piauí, estupraram, cegaram, torturaram e tentaram assassinar a pedradas quatro meninas, uma das quais morreu. Não é só o requinte de crueldade, mas também a atitude deles diante de seu próprio ato e da Justiça, junto com uma total falta de empatia, que me convencem de que não foi um crime "adolescente", e que eles devem ser julgados como adultos.
Os acusados são meninos econômica e culturalmente miseráveis. Concordo, mas 1) de novo, se a miséria econômica e cultural for uma atenuante, por que ela não valeria também para os criminosos adultos?; 2) a miséria cultural nem sempre é apenas uma imposição do mundo (a escola é ruim, os pais não valorizam), pode também ser escolha do indivíduo ("não quero estudar, quero ser bandido").
Outros alegarão que os adolescentes podem mais facilmente ser "recuperados" por medidas socioeducativas; portanto, encarcerá-los seria um desperdício. Concordo com a ideia de que o encarceramento de jovens julgados como adultos aconteça em cárceres distintos dos para adultos. Mas, antes disso, acredito que nenhuma medida socioeducativa possa começar com uma espécie de desculpa; ao contrário, não vejo como a gente pode esperar recuperar quem quer que seja sem começar pelo reconhecimento da plena responsabilidade do indivíduo pelos seus atos.
Na verdade, na discussão sobre a maioridade penal, o que está em jogo não é a infância, não é a adolescência, mas é a nossa visão da infância e da adolescência, como épocas de preparação e de suposta "felicidade" infantil.
A mesma pesquisa Datafolha que citei antes relata que, entre as razões a favor da redução da maioridade penal, está o fato de que os jovens de hoje "amadurecem mais cedo". É o contrário: os jovens amadurecem cada vez mais tarde; numa progressão linear, nos últimos 200 anos, eles são infantilizados, privados de deveres, direitos e responsabilidade.
Nesse quadro, reduzir a maioridade penal é uma virada cultural. Talvez estejamos enfim dispostos a parar de idealizar a infância e a termos jovens um pouco mais adultos mais cedo.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Consciência tem pouco controle sobre decisões, indica nova teoria

A consciência pode ser bem menos poderosa do que se pensa. De acordo com a nova teoria proposta por um pesquisador da Universidade do Estado de São Francisco (SFSU), nos EUA, a consciência seria um canal passivo, e não uma força que exerce controle.
Em um estudo publicado na revista Behavioral and Brain Sciences (Ciências do Cérebro e do Comportamento, em tradução livre) na última segunda (22) e divulgado pela Universidade do Estado de São Francisco, o professor de psicologia Ezequiel Morsella sugere que a consciência funciona como uma espécie de intérprete.
"O intérprete apresenta a informação, mas não é responsável pelos argumentos nem age sobre o conhecimento que é compartilhado", explica Morsella em entrevista à assessoria de imprensa da Universidade. "Da mesma forma, as informações que percebemos em nossa consciência não são criadas por processos conscientes nem são uma reação de processos conscientes. A consciência é o homem médio, e ele não trabalha tanto quanto você pensa."
Na teoria do Passive Frame, proposta pelo professor, a consciência é mais reflexiva e menos propositiva do que a sabedoria popular acredita. A consciência humana não teria controle sobre os diversos impulsos (necessidades, pensamentos, sensações e reações físicas) que passam por nossa mente a todo instante.
"Por muito tempo pensamos que a consciência resolvia problemas e tinha muitas partes dinâmicas, mas na realidade ela é bem mais básica e estática do que isso", explica Morsella. "Esta teoria é bastante contraintuitiva", acrescenta.
De acordo com o estudo, o "livre-arbítrio" não tem relação com a consciência, ela não decide nada nem nos guia em momentos de escolha. A consciência seria apenas responsável pela transmissão de informações que controlam a ação voluntária do sistema muscular esquelético.
Morsella compara a consciência à internet. A rede de computadores pode ser usada para comprar livros, pesquisar ou qualquer outra tarefa, mas quem toma as decisões é a pessoa em frente ao computador. A internet é apenas sua ferramenta.

Pensamentos não estão conectados

A teoria também nega a crença popular de que um pensamento consciente leva ao outro. "Um pensamento não sabe do outro, ele apenas tem acesso e age sobre a mesma informação inconsciente", diz Morsella.
A teoria levou mais de dez anos para ser desenvolvida e tem grandes implicações para o estudo de transtornos mentais. "Por que você tem um desejo ou pensamento que você não deve ter? Porque, em certo sentido, o sistema de consciência não sabe que você não deveria estar pensando em alguma coisa", disse Morsella . "Um gerador de impulso não sabe que um desejo é irrelevante para os outros pensamentos ou ações em curso."
Para o professor, uma das dificuldades de se estudar a consciência está no uso da própria consciência para estudá-la. "Durante a maior parte da história humana, a caça e a coleta e outras preocupações mais urgentes requeriam ações voluntárias executadas rapidamente. A consciência parece ter evoluído para esses tipos de ações, e não para entender a si mesma", concluiu. 

Reprodução do UOL Ciência.

Primavera Árabe e guerra na Síria geram crise em turismo na Jordânia


RANA F. SWEIS
DO "NEW YORK TIMES"

Os guias de turismo se sentaram em um trailer branco e poeirento a poucos passos do portão principal, tomando um café preto e forte e fumando. Havia 42 deles, prontos a mostrar a um visitante um sítio arqueológico mundialmente famoso, em até nove idiomas. Mas, ainda que este fosse um dia ensolarado de primavera, não havia trabalho para 38 deles.
"Quatro anos atrás, eu faria de dois a quatro tours por dia", disse Ahmed al-Qaim, 43, que trabalha como guia turístico há 19 anos. "Agora, nós mais ficamos sentados discutindo coisas do tipo 'Como você gosta do café?'"
As ruínas da cidade antiga de Gerasa, hoje conhecida como Jerash, estão entre as mais bem preservadas de qualquer cidade provincial do Império Romano. Monumentos e templos, banhos e anfiteatros, praças e colunatas transportam os visitantes para os primeiros séculos depois de Cristo, quando a cidade prosperou sob imperadores como Trajano, Adriano e Antonino. As marcas de bigas ainda podem ser vistas nos antigos pavimentos.
O sítio de cerca de 650 mil metros quadrados já foi uma das principais atrações turísticas da Jordânia, e uma fonte sustentável de receitas a longo prazo. Mas fica a apenas cerca de 30 quilômetros da fronteira com a Síria, onde uma guerra civil tem se estendido há quatro anos –e os conflitos na região são tudo, menos um ímã para visitantes estrangeiros.
Locais em toda a Jordânia estão sofrendo. Em 2010, um ano antes de a Primavera Árabe irromper na região, 8,2 milhões de pessoas visitavam o país, segundo o Banco Mundial, mas em 2013 o número caiu a 5,4 milhões, e continua em queda. Muitos dos estrangeiros que vêm agora não são turistas, mas pessoas trazidas pela exata perturbação que os mantém longe: voluntários, diplomatas, jornalistas, refugiados.
O ministro de Turismo e Antiguidades disse que as visitas a Jerash caíram cerca de 35% neste ano, em relação a 2014. Em outros destinos, como o monte Nebo, Wadi Rum e Karak, a queda foi ainda mais aguda, em cerca de 50%.
"Quando olho pela região, não vejo motivos para ser otimista", disse Ahmad Shami, autoridade do ministério responsável por Jerash. "Temos a responsabilidade de promover e preservar Jerash, porque este local pertence ao mundo e à humanidade."
Alguns jordanianos dizem que aquilo que o ministro chama de problema é, na verdade, uma oportunidade. "Ninguém está indo ao Iêmen, à Síria ou ao Iraque", disse Thiab Atoom, que recentemente abriu um restaurante na estrada que leva ao portão de Jerash. "Isso não é algo que deve ser usado contra nós –deveria ser uma oportunidade de dizer 'a Jordânia é um refúgio, venha para cá!', mas não estamos fazendo o suficiente para atrair visitantes."
Em tempos mais calmos, alguns anos atrás, era fácil para turistas agendar um tour com paradas em três sítios antigos espetaculares –começando em Petra, famosa cidade entalhada em colinas de pedra rosada no sul do país, então em Jerash e em seguida Palmyra, na Síria.
Palmyra tem muitas coisas comuns com Jerash –as duas foram cruzamento de culturas no mundo antigo e ambas exibem bem preservadas colunatas e majestosos anfiteatros romanos. Mas a cidade síria recentemente caiu sob o controle do grupo extremista Estado Islâmico, que tem ficado conhecido por pilhar ou destruir muitos artefatos culturais.
De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, baseado no Reino Unido, o EI usou o anfiteatro de Palmyra para matar quase duas dúzias de prisioneiros.
Na mesma semana, em Jerash, cerca de 40 meninas em uniformes escolares azuis sorriram e cumprimentaram um pequeno grupo de turistas chineses, que posaram para fotos coletivas segurando sombrinhas para se proteger do sol.
Escavações recentes mostraram que Jerash tem sido inabitada desde a era do bronze, deixando para trás camadas de antiguidades das civilizações grega, romana e bizantina e do califado de Umayyad. A cidade moderna tem cerca de 200 mil habitantes e o principal mercado fica bem ao lado do sítio arqueológico, com fileiras de lojas de roupas e acessórios e barracas de vegetais cercadas por mesquitas, casas de alvenaria e prédios degradados.
Especialistas dizem que não mais do que um quarto da cidade antiga já foi escavado, e que importantes ruínas romanas provavelmente ainda estão abaixo dos atuais mercados e casas.
A baixa no turismo ameaça muitos trabalhos em Jerash e algumas lojas de antiguidades já fecharam as portas. Moradores e donos de negócios locais jogam a culpa em muitas direções –na beligerante vizinhança da região por assustar os visitantes, no governo e nas autoridades do turismo por fazer pouco para atraí-los de volta, na comunidade internacional por não resolver a crise e acabar com a violência brutal.
Se as coisas não melhorarem logo, "será uma tragédia", disse Shami, do ministério de antiguidades. "Qual será o resultado quando todas essas pessoas perderem seus meios de subsistência?"

Tradução de GUSTAVO SIMON


Reprodução da Folha de São Paulo.

Como o PT blindou o PSDB e se tornou alvo da PF e do MPF

De como o governo Lula profissionalizou a PF mas não a política
Mais do que questões partidárias, a motivação maior da Operação Lava Jato é a revanche de duas operações anteriores que foram sacrificadas pelo jogo político: a Satiagraha e a Castelo de Areia. E é um exemplo eloquente dos erros de Lula e do PT em relação à Polícia Federal.
No primeiro governo Lula, o Ministro Márcio Thomas Bastos mudou a face da PF e do combate ao crime organizado no país. O reaparelhamento da PF, a criação da Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), o preparo de procuradores e policiais federais para, junto com técnicos da Receita e do Banco Central, entender os becos intrincados do sistema financeiro, tudo isso fez parte de um processo que mudou o patamar de competência tanto da PF quanto do MPF.
Tinha-se, agora, pela primeira vez no país um sistema de combate ao crime organizado e, ao lado, um modelo político ancestral trafegando na zona cinzenta da legalidade, cujos exemplos anteriores foram as revelações trazidas pelas CPIs do Banestado e dos Precatórios.
Estimulados, os agentes e procuradores saíram a campo para enfrentar o maior desafio criminal brasileiro: desbastar a zona cinzenta onde circulavam recursos do narcotráfico, de doleiros, de corrupção pública e privada, de esquentamento de dinheiro, das jogadas financeiras, e por onde passavam as intrincadas relações entre política e negócios que estavam na base da governabilidade do país.
Quando calhava de delegados e procuradores encontrarem um juiz justiceiro de primeira instância, colocava-se em xeque todo o sistema de blindagem historicamente praticado no país.
Duas das mais expressivas operações - a Satiagraha e a Castelos de Areia - pegavam o coração da máquina tucana.
A primeira centrava fogo em Daniel Dantas, do Banco Opportunity, principal beneficiário do processo de privatização, sócio da filha de José Serra, administrador dos fundos do Instituto Fernando Henrique Cardoso, pessoalmente favorecido por ele, quando presidente da República,  em episódios que se tornaram públicos - como seu jantar no Palácio do Alvorada, cuja sobremesa foi a cabeça de dirigentes de fundos de pensão que se opunham a ele.
A segunda, a Castelo de Areia, pegava na veia os acordos de empreiteiras com os governos José Serra e Geraldo Alckmin. Quem leu o inquérito garantia haver provas robustas, inclusive, dos acertos para tirar das costas dos presidentes de empreiteiras a responsabilidade criminal pelas mortes no acidente com o Metrô.
Satiagraha foi abortada pela ação conjunta do Ministro Gilmar Mendes - defendendo o seu grupo político - e do próprio Lula, afastando Paulo Lacerda da Abin e os policiais que conduziam a operação, depois dos factoides plantados pela Veja e por Gilmar. E também devido às investidas da operação sobre José Dirceu.
Foi a primeira chaga aberta nas relações da PF com o PT e Lula.
No caso da Castelo de Areia, a alegação foi de que a investigação começou a partir de uma denúncia anônima. Especialistas que analisaram o inquérito, do lado das empreiteiras, admitem que não havia erro processual. O inquérito era formalmente perfeito. Terminou no STJ de forma estranha, negociado pelo ex-Ministro Márcio Thomas Bastos, na condição de advogado da Camargo Correia.
Foi assim que o PT, através de seus Ministros e criminalistas, livrou o PSDB dos seus dois maiores pepinos, mas ficou com uma conta alta espetada nas costas.
A revanche veio no pacto da Lava Jato, entre PF, MPF e o sucessor de Fausto De Sanctis: Sérgio Moro - que teve papel central não apenas na Lava Jato mas na AP 470, do mensalão, como assessor da Ministra Rosa Weber.
A rebelião da primeira instância
A anulação da Satiagraha e da Castelo de Areia nos tribunais superiores produziu intensa revolta entre juízes de primeira instância, MPF e PF.
Tome-se o caso da Satiagraha.
A lei diz que decisão de juiz de primeira instância precisa passar primeiro pela segunda e terceira instância até chegar ao STF (Supremo Tribunal Federal). No controvertido episódio da concessão de dois habeas corpus, Gilmar Mendes atropelou a lei e as próprias decisões do juiz Fausto De Sanctis e mandou soltar os detidos.
Houve abusos, sim. O show midiático com a TV Globo, a prisão do ex-prefeito Celso Pitta, já doente terminal e outros. Mas também foi  divulgada uma conversa de Dantas afirmando que o desafio seria passar pela primeira instância, pois nas instâncias superiores havia "facilidades".
Conseguiu não apenas os dois HCs de Gilmar, como sua participação em dos factoides criados para a revista Veja e, depois, trancar a ação no STJ (Superior Tribunal de Justiça), de onde até hoje não saiu.
Todo o desgaste da Satiagraha e da Castelo de Areia, perante a opinião pública transformou-se em blindagem para a Lava Jato. Com o agravante de, no Ministério da Justiça, encontrar-se o mais inodoro Ministro da história da República.
Se os alvos fossem tucanos e o Ministro relator do STF Gilmar Mendes, não haveria problemas. Gilmar atropelaria a lei e concederia os HCs. E o Ministro Cardozo agiria valentemente em nome do “republicanismo”.
Agora, tem-se na relatoria do STF um Ministro técnico, formalista, sem vinculações partidárias. No Ministério da Justiça, um Ministro anódino, incapaz de conter os abusos “em nome do republicanismo”. Na Procuradoria Geral da República, um procurador geral empenhado com a sua reeleição tendo como principal opositor um colega que critica sua "leniência" (!!!) na Lava Jato. Finalmente, uma imprensa que ajudou a liquidar com a Satiagraha pelas mesmas razões que, hoje em dia, defende a Lava Jato.
Como é um jogo de poder, procuradores, delegados, Moro não se pejam em montar alianças com grupos de midia claramente engajados no jogo de interesses políticos e comerciais, alguns deles em aliança com o crime organizado.
O jogo poderia ter se equilibrado um pouco se o PGR aplicasse a lei e atuasse contra vazamentos de inquéritos sigilosos ou pelo menos aceitasse a denúncia contra Aécio Neves. Seria uma maneira de mostrar isenção e impedir a exploração política do episódio.
Mas hoje em dia a corporação MPF é fundamentalmente anti-PT. A ponto de fechar os olhos quando um ex-PGR, Antonio Fernandes dos Santos, livrou Dantas do mensalão e, logo depois, aposentado, ganhou um mega-contrato da Brasil Telecom, quando ainda controlada pelo banqueiro.
Enfim, o PT colhe o que plantou. E o PSDB planta o que não colheu.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

FHC pode fazer qualquer coisa porque está acima de uma coisa chamada justiça

Uma das frases mais descaradas da cena política moderna foi pronunciada hoje por FHC.
Ele disse não ver problemas em empreiteiras darem dinheiro para seu instituto. Para o instituto de Lula, é outra história.
Por cínica que seja, por despudorada que soe, a frase não poderia ser mais correta, no mundo das coisas reais.
Para simplificar, FHC pode tudo porque é um intocável.
A imprensa não o fiscaliza e a Justiça não o aborrece: é a retribuição que o 1% dá aos que defendem seus interesses, como FHC.
Ele pode comprar no Congresso os votos que lhe permitiriam um segundo mandato.
Não acontece nada.
Ele pode nomear seu genro para uma função estratégica na administração do petróleo e depois demiti-lo quando este de divorciou da filha, numa bofetada sinistra no conceito de meritocracia.
Não acontece nada.
Ele pode arrumar uma sinecura para uma filha no Congresso.
Não acontece nada.
Ele pode patrocinar com recursos públicos uma nova gráfica das Organizações Globo, saudada como um retrato do século 21 mas hoje um fracasso miserável.
Não acontece nada.
Ele pode nomear um juiz como Gilmar Mendes para o STF, completamente alinhado com o PSDB.
Não acontece nada.
A lista é interminável.
O caso das empreiteiras é apenas mais um.
Seu herdeiro entre os intocáveis é Aécio. Eis outro que pode tudo.
Aécio pode ser amigo do peito de um homem em cujo helicóptero foi encontrada meia tonelada de pasta de cocaína.
Nenhum jornal o questiona sobre isso. Nenhum sequer cita a amizade, expressa em fotos em que ambos estão abraçados.
Aécio pode construir um aeroporto particular com dinheiro público e, em questão de semanas, se sentir tão inimputável que se põe a fazer discursos moralistas.
Aécio pode dar dinheiro público a rádios de sua família – dele mesmo, portanto – em Minas Gerais.
Ninguém o cobra por isso.
Como FHC, Aécio pode tudo. Pode ser flagrado por um vídeo completamente bêbado numa madrugada no Rio, pode fugir de um teste no bafômetro – e ainda assim o apelido de Brahma será dado a Lula.
A impunidade de homens como FHC e Aécio é uma das maiores tragédias nacionais.
Enquanto ela persistir, a Justiça será desacreditada, objeto de escárnio e ira. E a mídia será o que é: o pilar de um sistema em que o 1% pode fazer qualquer coisa.
A posteridade não haverá de ser tão complacente para figuras como FHC e Aécio.
Seus netos haverão de vê-los representados como símbolos de uma sociedade iníqua, injusta – repulsiva.

Reprodução de texto de Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Canis et circensis

O mundo híbrido de sentimentos e tecnologias é capaz de promover algumas crueldades jamais imaginadas. Um exemplo recente está na Sony, que ao descontinuar o suporte e manutenção de sua linha de robôs caninos AIBO, condena à morte certa os cerca de 150 000 beagles que vendeu entre 1999 e 2005. Diferente dos animaizinhos que supostamente teriam sofrido maus tratos no Instituto Royal de São Roque, o fim da vida desses cãezinhos digitais será tão indolor quanto a "morte" de qualquer outro dispositivo eletrônico.
O mesmo, no entanto, não poderá ser dito de seus pobres donos. Muitos deles, especialmente os mais velhos, desenvolveram com seus mascotes eletrônicos uma relação mais intensa do que normalmente se dá com traquitanas computadorizadas. Para alguns, suas máquinas ganharam vida própria.
É fácil julgar esses usuários. Um robô é mais cômodo e conveniente do que um animalzinho, da mesma forma que um cão ou gato é mais cômodo e conveniente do que uma criança. A realidade, no entanto, é mais complicada e sutil. Por demandarem um longo período de treinamento e adaptação, os bonecos, como os mascotes vivos, criam em seus donos uma forma de dependência psicológica. Por mais que as necessidades e demandas de um aparelho digital sejam construídas, a relação emocional entre pessoas e objetos é mais comum do que se imagina. Ela se dá nos telefones que são customizados com capinhas, protetores de tela e diversos aplicativos e configurações, dando a seus usuários um trabalho que uma TV, uma máquina de lavar ou um liquidificador jamais ousariam.
É uma relação delicada. Quando dá certo, ela oferece a seus donos um ombro amigo, mesmo que artificial, para que frustrações com relação a um mundo exterior cada vez mais frio e competitivo sejam desabafadas. Em sociedades extremamente agressivas, como as do Japão e de Cingapura, em que mostrar qualquer fragilidade (em casos mais extremos, até procurar ajuda psicológica) é considerado sinônimo de fraqueza, esses tamagotchis - vivos ou não - são válvulas de escape possíveis. O mesmo se dá para os espaços sociais agressivos e isolados em que um número cada vez maior de jovens é obrigado a viver, abandonados pelos pais e oprimidos pelo grupo.
AIBO é mais do que um brinquedo. Como várias "loucuras" que mal deixaram o Japão, o cãozinho é pouco conhecido no Ocidente. Acrônimo para Robô de Inteligência Artificial e homônimo para "amigo" ou "parceiro" em japonês, os últimos Aibos eram capazes de falar mais de mil palavras, compreender mais de cem e se exprimir em mais de 60 estados emocionais. Os mais empáticos podiam ver o mundo de seu ponto de vista através de uma câmara embutida na cabeça do cãozinho.
É fácil dizer que um robô não é um ser vivo, mas o que identifica a "vida" em uma relação afetiva? Cães são vivos, mas não compreendem. Robôs não são vivos, mas estão cada vez mais próximos de uma simulação bastante razoável de compreensão. Como previu o Teste de Turing, a máquina não precisa pensar, desde que aparente fazê-lo.
Já faz um tempo que os gêneros fantásticos da literatura lidam com essa dialética existencial. Em 1982, os androides de Blade Runner se comportavam como humanos, se sentiam vivos e se revoltavam com o fato de serem temporários. Em Toy Story, o astronauta Buzz Lightyear tem de aprender a notícia deprimente de que, em vez do indivíduo livre e autêntico que acredita ser, ele não passa de um boneco, vendido em grandes quantidades em lojas, idêntico a milhares de outros, banal e com discurso previsível.
Nos planos da Sony, o cãozinho deveria se transformar em uma nova plataforma, como o PlayStation. Mas os primeiros modelos eram limitados, e como aconteceu com o Orkut para o Google, o AIBO nunca passou de um projeto paralelo para a empresa, acostumada a vender produtos às dezenas de milhões, não centenas de milhares. Na virada do século, quando a gigante japonesa entrou em crise, o projeto foi encerrado. A assistência técnica durou mais uma década. Mas o aparelho é muito mais complicado do que um jipe ou fusca, por isso as peças começaram a rarear e as oficinas fecharam. Sobrou para mecânicos informais que canibalizam partes funcionais de alguns para consertar outros.
Tem coisas do Japão que parecem Ficção Científica. Para a religião Xintoísta, muito popular no país, tudo está interligado. Suas divindades, os "Kami", podem ser definidos como espíritos ou essências presentes em cada objeto. Partes de um todo indivisível, eles estão integrados à essência humana em uma grande rede complexa. É misticismo, mas está cada vez mais próximo do futuro. Mesmo que seja uma versão de futuro em que não se imagine viver. 


Texto de Luli Radfahrer, na Folha de São Paulo

A longa sombra da escravidão

Os Estados Unidos são um país muito menos racista do que já foi, e não estou falando apenas sobre o fato ainda notável de que um afro-americano ocupe a Casa Branca.
O racismo institucional cru que prevaleceu antes que o movimento dos direitos civis pusesse fim a Jim Crow [leis adotadas principalmente nos Estados do sul dos EUA] acabou, embora persista uma discriminação mais sutil. As atitudes individuais também mudaram, em alguns casos drasticamente. Por exemplo, tão recentemente quanto nos anos 1980, a metade dos americanos era contra o casamento interracial, posição hoje apoiada por uma pequena minoria.
Mas o ódio racial ainda é uma força poderosa em nossa sociedade, como acabamos de ser lembrados, com horror. E sinto muito dizer isto, mas a divisão racial ainda é uma característica definidora de nossa economia política, o motivo pelo qual os EUA são únicos entre as nações avançadas no tratamento duro que dão aos menos afortunados e em sua tendência a tolerar sofrimentos desnecessários entre seus cidadãos.
É claro, dizer isso provoca negações iradas de muitos conservadores, portanto tentarei ser frio e cuidadoso aqui e citarei algumas evidências avassaladoras da constante centralidade da raça na política nacional.
Minha compreensão pessoal do papel da raça na excepcionalidade dos EUA foi amplamente moldada por dois trabalhos acadêmicos.
O primeiro, do cientista político Larry Bartels, analisou o afastamento da classe trabalhadora branca dos democratas, que ficou famoso em "Qual É o Problema do Kansas?", de Thomas Frank. Ele afirmou que os trabalhadores brancos foram induzidos a votar contra seus próprios interesses pela exploração de questões culturais pela direita. Mas Bartels mostrou que a virada dos trabalhadores contra os democratas não foi um fenômeno nacional -- foi totalmente restrito ao sul, onde os brancos se tornaram majoritariamente republicanos depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da adoção por Richard Nixon da chamada estratégia sulista.
E essa mudança de partido, por sua vez, foi o que conduziu à virada à direita da política americana depois de 1980. A raça possibilitou o reaganismo. E até hoje os brancos sulistas votam majoritariamente nos republicanos, chegando a 85% ou mesmo 90% no Sul profundo.
O segundo trabalho, dos economistas Alberto Alesina, Edward Glaeser e Bruce Sacerdote, intitulava-se "Por que os Estados Unidos têm um Estado do Bem-Estar no Estilo Europeu?". Seus autores -- que não são, aliás, especialmente liberais -- exploraram diversas hipóteses, mas afinal concluíram que a raça é central, porque nos EUA os programas que ajudam os necessitados são com frequência vistos como programas que ajudam "Aquelas Pessoas": "Nos EUA, a raça é o fator isolado mais importante de previsão de apoio à assistência social. As difíceis relações raciais nos EUA são claramente um grande motivo da ausência de um Estado do bem-estar americano".
Mas esse trabalho foi publicado em 2001, e você poderia se perguntar se as coisas mudaram desde então. Infelizmente, a resposta é não, como se pode ver examinando como os Estados estão implementando -- ou se recusando a implementar -- o Obamacare.
Para os que não têm acompanhado essa questão, em 2012, a Suprema Corte deu aos Estados a opção, caso preferissem, de bloquear a expansão do Medicaid pela Lei de Acesso à Saúde, uma parte vital do plano de oferecer seguro-saúde aos americanos de baixa renda.
Mas por que um Estado decidiria exercer essa opção? Afinal, os Estados poderiam ter um programa financiado pela federação que daria grandes benefícios a milhões de cidadãos, despejaria bilhões em suas economias e ajudaria a apoiar seus provedores de serviços de saúde. Quem recusaria tal oferta?
A resposta é: 22 Estados nesta altura, embora alguns possam eventualmente mudar de ideia. E o que esses Estados têm em comum? Principalmente, uma história de escravidão: só um ex-membro da Confederação expandiu o Medicaid e, enquanto poucos Estados do norte participam do movimento, mais de 80% da população de Estados que recusam o Medicaid vivem em unidades que praticavam a escravidão antes da Guerra Civil.
E não é apenas a reforma da saúde: uma história de escravidão é um forte fator de previsão de tudo, desde o controle das armas (ou ausência dele) aos salários mínimos baixos, hostilidade aos sindicatos e política fiscal.
Então sempre será assim? Os EUA estão condenados a viver para sempre politicamente à sombra da escravidão?
Eu gostaria de pensar que não. Por um lado, nosso país está se tornando mais diversificado etnicamente, e a antiga polaridade negro-branco lentamente se torna antiquada. Por outro, como eu disse, nós realmente nos tornamos uma sociedade muito menos racista, e em geral muito mais tolerante, de muitas maneiras. Com o tempo, deveríamos esperar ver diminuir a influência da política de racismo disfarçado.
Mas isso ainda não aconteceu. De vez em quando você ouve um coro de vozes declarando que a raça não é mais um problema nos EUA. É excesso de otimismo; ainda somos assombrados pelo pecado original de nosso país.

Texto de Paul Krugman, no UOL Notícias