"O Capital no Século 21", cuja tradução para o português finalmente chega às livrarias, é o grande lançamento deste e, talvez, de muitos anos. O francês Thomas Piketty elege um problema urgente, a desigualdade, e o esmiúça cientificamente. Ilumina a treva ideológica que o encobre, situa-o na história e o expõe em todo o seu horror.
A sua investigação, que percorre 20 países e dois séculos, preserva situações e ritmos. Mas adquire energia ao captar movimentos de longo prazo e a sua abstração. E a generalização a que Piketty chega é contraintuitiva: apesar do progresso, vivem-se tempos de regressão, de restauração da desigualdade dos anos 1920. Andamos para trás.
O livro chega laboriosamente a uma lei geral, à alma do capitalismo. A saber: desde o final do século 18, a taxa de lucro do capital (de cerca de 5%), é superior à do crescimento (de 1%).
Assim, quem herda um apartamento acumulará mais do que quem paga aluguel ou prestações. Já quem recebe de herança uma grande empresa tenderá a investir em rendimentos financeiros, mais lucrativos que a produção. O capital se perpetua e se expande por meio da herança e da financeirização.
A lei de ferro põe por terra mitos repetidos à náusea na campanha eleitoral. O acesso à educação, por exemplo, serve para disseminar saberes que facilitam a ascensão social. O próprio Piketty é fruto dessa dinâmica: cursou a escola pública na França, foi professor universitário nos Estados Unidos, é um quadro do partido no poder, o PS, Partido Socialista.
Por si só, porém, a educação não garante que o grosso do povo tenha uma vida estável. Ele está condenado à precariedade, a disputar poucos empregos e salários minguados, já que a mecânica econômica se apoia na desigualdade.
Piketty sustenta que não só a burguesia usufrui da concentração. Criou-se nas últimas décadas uma casta de superexecutivos, à qual o empresariado destina rendimentos do capital, na forma de bônus e ações, e que aufere ganhos centenas de vezes superiores à remuneração média. É o tal 1% de privilegiados, propagado pelo Occupy Wall Street (classificação que Piketty, aliás, disputa, pois que ela prescinde da noção de classe social).
"O Capital no Século 21" não esposa o determinismo econômico, evidenciando que a desigualdade não cresceu de maneira constante. As guerras e revoluções, a descolonização e a organização dos trabalhadores foram decisivas para que se chegasse à atual configuração.
Ou seja, a desigualdade só diminuiu com crises e destruição massiva. Contra elas, Piketty advoga a taxação progressiva do capital e a limitação do direito de herança. Há aí um buraco negro filosófico, um déficit de imaginação.
Piketty projeta que a taxa de crescimento dos Brics, os grandes países em desenvolvimento, voltará em breve à média de crescimento, de 1%. Mesmo assim, não vê nada além da reforma fiscal mundial --para a qual não há nem instituições nem força política capaz de levá-la a cabo.
Ele reconhece que a taxação planetária não será estabelecida em comitês multinacionais, nem por meio de pacatos processos eleitorais. A revolução bolchevique, ele diz, ficou para trás. A vitória do capital, consubstanciada dois séculos depois da Revolução Francesa, teve dimensão histórica.
Mas haverá novas revoluções, com formas que é impossível vislumbrar hoje. O seu livro é uma contribuição para o entendimento social. Permite saber em que pé o capital está, e o que pode ser feito.
Muito que bem. Mas por que, em vez do imposto universal, não imaginar uma economia e uma sociedade sem o capital, sem a desigualdade que ele enseja? Isso poderia ser feito a partir dos próprios dados de "O Capital no Século 21". A esquerda que está no poder, mas não sabe aonde ir, agradeceria.
Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo.