terça-feira, 30 de setembro de 2014

Eritreia, um país sob opressão


Eritreia, um país sob opressão

Falta um elemento importante nos debates na Europa sobre como lidar com o fluxo de migrantes desesperados da África: a crise na Eritreia. A cada mês quase 4.000 eritreus tentam fugir da opressão reinante no país, segundo um relator especial da ONU. Asmara, a capital do país, revela a dimensão dos problemas. Nos cafés não há conversas sobre o governo do ditador Isaias Afworki e jamais há protestos nas ruas.
Qualquer sinal de manifestação é sufocado rapidamente, e opositores ao regime são presos imediatamente e torturados, muitas vezes em prisões subterrâneas em áreas remotas do país.
Nesses locais eles ficam presos em recipientes de metal nos quais o calor é insuportável e recebem pouca água e alimentação. O direito a julgamento inexiste, e os presos não podem recorrer de suas sentenças judiciais.
Essa opressão é assustadoramente invisível. A polícia não está presente nas avenidas ensolaradas de Asmara, e soldados também não têm atuação clara.
Mas basta começar a fazer fotos com uma câmera para que as pessoas o encarem e o apontem. Nesse sistema secreto de terror, remanescente do comunismo soviético, todo cidadão é um espião em potencial.
O regime na Eritreia também exerce controle por meio do "recrutamento para o Exército Nacional", que é compulsório para homens e mulheres a partir dos 17 anos e sem prazo fixo para terminar. É fácil compreender por que os eritreus enfrentam viagens perigosas para fugir.
Em 3 de outubro de 2013, 366 jovens eritreus se afogaram na costa da ilha de Lampedusa, na Itália. Na noite após o naufrágio, eu vi os sobreviventes de luto por seus mortos.
Eles foram levados a um hangar no aeroporto para identificar os entes queridos em meio a longas fileiras de caixões de madeira escura, e uma fileira de cinco caixões brancos menores para as crianças mortas.
O choro mais parecia um uivo de desespero e um grito pedindo ajuda para uma geração obrigada a viver em um país onde não há esperança de um futuro melhor.
Enquanto as pessoas se reuniam nas principais ruas de Asmara após o naufrágio para ver fotos dos mortos, a polícia chegou para dispersar a multidão, porém antes anotou os nomes de quem estava presente.
"Ninguém virá nos salvar", disse uma professora de 30 anos que encontrei em maio quando estava indo para Asmara. Ela pediu para manter seu nome em sigilo e contou que antes trabalhava para ONGs europeias, mas essas organizações foram expulsas pelo governo em 2006.
Afworki nega que o país precise de qualquer ajuda externa. "Isaias mantém nosso país isolado para que ninguém saiba o que realmente acontece lá", comentou a professora. Funcionários públicos ganham em média um salário mensal de 500 nakfas (cerca de R$ 36 na cotação do mercado negro) e representam uma mão-de-obra barata para os setores público e privado, sobretudo nas áreas de mineração e construção que cada vez mais atraem investimentos chineses.
Muitos eritreus recorrem a atividades informais para alimentar suas famílias. Em Massawa, outrora um porto importante no mar Vermelho, Awate Tsegay aluga seu carro para estrangeiros e espera ganhar dinheiro suficiente para atravessar a fronteira e se reunir a seus irmãos no Sudão.
"Os militares exigem até US$ 1.000 (R$ 2.380) por cabeça para esconder os fugitivos em um carro e levá-los para o outro lado em segurança", relatou ele.
O governo estimula tacitamente a migração ilegal e introduziu recentemente uma taxa de 2% sobre remessas de dinheiro do exterior.
Chegando ao Sudão, os eritreus evitam a polícia e aceitam qualquer trabalho disponível até ter condições de pagar a um intermediário que os leve à Líbia ou ao Egito, onde podem tentar fazer a travessia para a Europa.
As travessias no deserto são muito perigosas, e muitos refugiados são vítimas de torturas e do tráfico de órgãos.
Apesar disso tudo, Afworki, que está no poder há 30 anos, ainda se faz de vítima e usa o conflito na fronteira com a Etiópia, que é muito mais forte, como pretexto para o controle rígido imposto sobre a população da Eritreia.
Diplomatas da União Europeia manifestam preocupação com a violação sistemática dos direitos humanos. Todavia, se realmente estivesse decidida a intervir nas causas do êxodo da Eritreia, a Europa pressionaria Afworki a afrouxar sua mão de ferro.
A comunidade internacional também tem agido pouco para resolver o conflito na fronteira com a Etiópia e menos ainda para apoiar as forças de oposição eritreias que poderiam desafiar os generais e encaminhar o país para eleições democráticas multipartidárias.
O fato é que a oposição eritreia está dividida e mal representa uma ameaça para o regime do ditador Isaias Afworki.
"Os grupos democráticos mais atuantes estão baseados no Sudão ou na Europa", explica Valentina Fusari, pesquisadora na universidade em Asmara.
Grupos étnicos menores de dissidentes estão no exílio e não têm organização suficiente para tornar-se uma opção viável.
No atual estágio, sem esforços coordenados da oposição, a ditadura continuará impondo o terror e obrigando a população a optar entre ficar no país sem liberdade ou partir em viagens potencialmente mortais.


Texto de Vittorio Longhi, para o The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo

Crise de confiança nas elites


Crise de confiança nas elites

Por NEIL IRWIN

Um plebiscito destinado a transformar a Escócia em um país independente e acabar com o Reino Unido tal qual o conhecemos fracassou, mas teria tido sucesso caso apenas 5% dos votos mudassem de lado.
Um partido de direita e anti-imigração obteve na Suécia a mais expressiva votação da sua história em uma eleição.
E, nos Estados Unidos, novos dados do Censo mostram que as famílias de classe média ganharam 8% a menos no ano passado (descontada a inflação) do que em 2007. O que essas histórias têm em comum é o seguinte: elas revelam uma crise de confiança na elite global.
Há um acordo implícito nas democracias modernas: tudo bem que os ricos e poderosos desfrutem de jatos particulares e casas extraordinariamente caras, desde que o resto da população também tenha um aumento consistente do seu padrão de vida.
Mas só a primeira parte do trato vem sendo cumprida, e os eleitores estão expressando sua frustração de maneiras que variam de acordo com o país, mas que têm em comum a sensação de que a ordem estabelecida não lhes serve.
Isso ficou evidente nas votações da Escócia e da Suécia, nos resultados expressivos dos partidos de extrema-esquerda e extrema-direita nas eleições deste ano para o Parlamento Europeu, na ascensão do Tea Party nos Estados Unidos e na instabilidade política que levou o Japão a ter seis primeiros-ministros desde 2007.
Em grau mais detalhado, as queixas escocesas contra a classe dominante inglesa são quase diametralmente opostas às do Tea Party ou dos direitistas suecos. Os escoceses querem um aumento dos gastos sociais, ao invés da sua redução, e seu movimento têm um forte traço ambiental antinuclear.
Mas sempre existem pessoas que divergem dos rumos da política em seu país. A razão de ser de um Estado é ter um aparato que canalize preferências díspares para um conjunto sensato de opções políticas.
O que diferencia o momento atual é que o descontentamento com a conjuntura é tão elevado que chega a colocar em xeque a tolerância em relação às instituições governamentais tais quais existem hoje.
Desde a crise financeira, os Estados Unidos vêm registrando um crescimento mais intenso do que o Reino Unido, o Japão e a Europa continental, e sua economia é 6,7% maior do que era no final de 2007.
Mas os trabalhadores americanos não estão se beneficiando. O Departamento do Censo informou recentemente que a renda familiar média ajustada pela inflação foi de US$ 51.939 (R$ 123.615) em 2013, um aumento de apenas US$ 180 em relação 2012, e ainda 8% abaixo dos níveis de 2007.
O pico de renda de 2007 já era ligeiramente inferior ao pico de 1999. Em outras palavras, uma família americana de classe média está hoje pior do que há 15 anos. A discussão sobre a economia em geral se concentra em coisas como a geração de empregos e o crescimento do produto interno bruto (PIB). Mas ninguém se alimenta de PIB.
A cada pleito, os EUA parecem em condições de viver uma onda eleitoral que faça um dos partidos obter um avanço importante.
Pode parecer contraditório o fato de Obama e os parlamentares democratas terem sido eleitos com uma votação esmagadora em 2008, mas que em 2010 tenha ocorrido uma guinada em favor do Tea Party. No entanto, é isso que se pode esperar num mundo onde a política tradicional oferece resultados medíocres.
No Reino Unido, o governo trabalhista liderado por um primeiro-ministro escocês (Gordon Brown), com um ministro das Finanças também oriundo dessa região (Alistair Darling), estimulou o predomínio das finanças na economia britânica, ensejando o surgimento de grandes bancos globais numa Londres cada vez mais cosmopolita como o centro da estratégia econômica.
Mas em 2008 os bancos quase quebraram e tiveram de ser socorridos, e a economia nunca mais foi a mesma. Esse fracasso levou a um governo de coalizão, em 2010, que está ainda menos alinhado com as políticas dos escoceses, impondo a austeridade enquanto eles preferem ampliar a rede de bem-estar social.
Mas talvez seja na Europa continental que as consequências das trapalhadas das elites sejam mais prejudiciais e perigosas.
Décadas de avanço rumo a um continente unido, liderado pela centro-direita e pela centro-esquerda, criaram uma Europa Ocidental onde existem uma moeda e um banco central únicos.
Mas essa autoridade não contava com a união política, fiscal e bancária que permitiria diminuir desequilíbrios entre os países sem o benefício das flutuações.
Quando tudo veio à tona, os líderes já estavam tão alarmados com os deficits orçamentários que reagiram cortando gastos e aumentando impostos.
Assim, os desequilíbrios acumulados por anos a fio na Europa se refletem em níveis astronômicos de desemprego e em reduções salariais em países como Espanha e Grécia. Mesmo as economias do norte da Europa, Alemanha incluída, têm crescimento baixo ou nulo.
Apesar de a Grande Depressão da década de 1930 ter trazido no início uma contração mais acentuada da atividade econômica, a economia europeia está, seis anos após a crise de 2008, pior do que num momento comparável da década de 1930.
Nas eleições europeias de maio, partidos de extrema-direita e extrema-esquerda obtiveram grandes avanços. Todo o esforço do pós-Segunda Guerra Mundial para construir uma Europa unida incluirá agora partidos que usam imagens nazistas e outros que se consideram comunistas.
O site Huffington Post pode, sem ser acusado de exagero, publicar uma lista intitulada "Os nove mais assustadores partidos de ultradireita atualmente no Parlamento Europeu". Algo deu errado no projeto do continente.
Os detalhes sobre os erros governamentais diferem, assim como dos movimentos que cresceram como forma de protesto. Mas eles são um lembrete de que o poder não é um direito, e sim uma responsabilidade.
E, por mais entrincheiradas que nossas instituições governamentais pareçam estar, elas repousam sobre uma premissa pétrea: a de que os líderes irão cumprir o que prometem.


Texto do The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo

Estou sonhando

Como você sabe se está acordado ou apenas sonhando que está lendo o jornal? Dizem alguns livros de filosofia que não há como saber: sua vida toda poderia ser um sonho. Mas, com um pouquinho de conhecimento de neurociência, a resposta é quase trivial.
É somente no estado acordado que a memória dura mais do que uns poucos segundos e o mundo tem continuidade minutos e horas a fio --diferentemente dos sonhos, nos quais você começa em um aeroporto, atravessa a porta e está na praia, e, no instante seguinte, escalando uma montanha. Se você permanece horas em um mesmo lugar, abre a porta e continua no mesmo prédio, e tem acesso a memórias antigas, você está acordado.
Além do mais, normalmente não temos ciência de estarmos sonhando; dos sonhos, em geral nos lembramos apenas de alguns trechos --os últimos, logo antes de acordarmos. A não ser no fenômeno chamado de "sonho lúcido", quando a consciência se intromete no sonho.
Grupos independentes de pesquisadores mostraram recentemente que o sonho lúcido é um estado misto de sono e consciência, nem lá mas nem ainda cá, no qual o cérebro consegue, ainda adormecido, acessar memórias, saber-se sonhando e até interferir na direção do que sonha.
Isso acontece de maneira espontânea quando o cérebro, em vez de acordar de todo, muda apenas parcialmente de estado e produz atividade elétrica de alta frequência, com cerca de 40 oscilações por segundo, características do estado acordado --mas sem sair do sonho.
Um grupo na Alemanha, contudo, foi além e descobriu como provocar sonhos lúcidos. O truque tem a ver com esperar os voluntários começarem a sonhar, o que pode ser verificado pelo eletroencefalograma e pela perda de tônus muscular, e então produzir à força 40 ondas por segundo na região frontal do cérebro dos voluntários adormecidos, usando um equipamento de estimulação transcraniana.
Em quase 80% das tentativas, a manobra induz sonhos lúcidos, com insight e capacidade de mudar o conteúdo do sonho --sem acordar os voluntários.
Para quem acha que não sonha (o que não é verdade; todos sonhamos, e várias vezes por noite), o brinquedo oferece uma janela para o próprio inconsciente. Mas o grupo vê utilidades mais nobres: por exemplo, oferecer a quem sofre de distúrbio de estresse pós-traumático com pesadelos frequentes uma oportunidade de interferir conscientemente em seus próprios sonhos. Parece ficção científica, mas é só ciência.

Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo.

Falhas na representação parlamentar

As eleições para a Presidência, para os governos estaduais e para o Senado atraem muito mais o interesse geral do que as eleições proporcionais (para a Câmara Federal e as assembleias estaduais).
Passa despercebido como as eleições para deputado estadual e federal afetam as percepções do eleitor sobre os partidos, o sistema político e a política em geral. Tampouco se dá a devida atenção à relevância dessas eleições para a seleção das lideranças políticas.
Nelas estão engajados nada menos que 21 mil candidatos em todo o país, mobilizando mais de R$ 2 bilhões, aproximadamente 40% do total de gastos eleitorais nesta campanha. A julgar pelo passado, futuros governadores de Estado e mesmo presidentes da República estão em meio a esse grande contingente de candidatos (dos governadores eleitos em 2010, 80% passaram pela Câmara Federal e/ou pela assembleia legislativa de seu Estado).
Em boa medida, o desprestígio crescente da política no Brasil pode ser explicado pelas relações que se estabelecem (ou não se estabelecem) entre representados e representantes durante e a partir das eleições a deputado. Qualquer relação de representação requer, como ponto de partida, que o eleitor tenha condições minimamente razoáveis para informar-se sobre os candidatos. Sem isso, como escolher o representante e depois avaliá-lo no desempenho do seu mandato?
Falhas na engrenagem da representação se verificam em todos os sistemas eleitorais, mas, no Brasil, elas são particularmente graves, em especial nas eleições proporcionais.
Tome-se o exemplo de São Paulo, onde 1.318 candidatos concorrem à Câmara Federal e 1.879 à Assembleia Legislativa. Somados, temos quase 3.200 indivíduos correndo atrás do voto dos eleitores por todo o Estado, numa disputa de todos contra todos. Chegamos a esse ponto pela proliferação de partidos, hoje em número de 32, no quadro de um sistema eleitoral que favorece campanhas individuais.
Daí resulta a virtual impossibilidade de se estabelecer uma comunicação significativa entre eleitores e candidatos. Basta assistir ao horário eleitoral: um desfile patético de nomes e números esvaziados de qualquer conteúdo político.
É claro que a política e a sociedade encontram outras formas de se conectar (por meio de corporações profissionais, igrejas, sindicatos, lideranças locais, pela internet etc.). Mas para a grande maioria do eleitorado o processo de escolha equivale à emissão de um cheque em branco para um favorecido sobre o qual se sabe muito pouco. Mesmo o nome do escolhido some da memória poucos meses após a eleição.
Além de ruim, o sistema é caro. Sem ganho para o público, o gasto privado com campanhas eleitorais disparou nos últimos anos (aumento de quase 500% nas eleições para deputados federais de 2002 a 2010).
O estudo "Gastos em Campanhas Eleitorais no Brasil", elaborado por Ana Luiza Backes e Luiz Cláudio Pires dos Santos, da consultoria legislativa da Câmara, mostra que há uma alta correlação entre volume de gastos e sucesso eleitoral (mais de 70% dos deputados federais eleitos de 2010 estavam entre os de campanha mais cara em seus estados).
Assim, é óbvio que seus vínculos preferenciais de representação tendam a ser com doadores de recursos financeiros (empresas) e fornecedores de votos no atacado (igrejas, sindicatos, prefeituras etc.). Não é à toa que o eleitor se sente à margem desse processo.
Ao enfrentar a reforma política, o Congresso precisa encarar essas graves falhas, sob pena de hipotecar o futuro da instituição parlamentar, indispensável à democracia.


Texto de Sérgio Fausto, na Folha de São Paulo

Os proprietários do poder

De uns tempos para cá o PMDB se tornou o grande vilão da política brasileira. É acusado de se oferecer a qualquer governo, trocando votos no Legislativo por um punhado de cargos no Executivo. Além de corromper a administração pública, seu fisiologismo atrelaria o país a uma agenda mesquinha, impedindo transformações estruturais.
De onde vem esse poder maligno? Das urnas. É o partido que mais elegeu governadores, prefeitos e parlamentares desde a redemocratização do país. Ele espelha a vontade do eleitorado nacional --mas mostra o que esse eleitorado realmente é, não o que ele gostaria de ser.
Talvez por isso o PMDB tenha sido tão amaldiçoado nas manifestações de junho: a mão que vota é a mesma que apedreja. Tanto é assim que hoje a legenda lidera as eleições para governador em oito Estados, inclusive no Rio de Janeiro. O que explica esse ressentimento?
Bem ou mal, o PMDB entrega ao eleitor o prato de lentilhas que promete: leva prefeitos aos ministérios, propõe emendas destinando verbas aos municípios, inaugura escolas, postos de saúde, quadras esportivas.
Para entregar as lentilhas, precisa ter acesso ao Executivo --tanto para dirigir as ações governamentais como para liberar recursos para seus redutos. E tem acesso fácil ao Executivo porque está no centro do espectro político, o que lhe dá flexibilidade suficiente para fechar alianças à direita e à esquerda.
A esquerda quer promover a igualdade, e por isso aprova leis em defesa dos trabalhadores. A direita quer preservar as diferenças, logo adota medidas para beneficiar os empresários. Um partido de centro aceita conceder benefícios aos trabalhadores e incentivos aos empresários, desde que tudo fique como está.
No Brasil, o primeiro grande partido de centro foi o antigo PSD (1945-1965), "a voz do Brasil unido". E do PSD saíram os principais dirigentes do moderno PMDB, Ulysses Guimarães (SP) e Tancredo Neves (MG).
Qual é o substrato social de um partido de centro? A propriedade fundiária. Os proprietários fundiários não se identificam nem com os empregadores nem com os empregados, mas formam uma classe à parte. Suas fontes de renda não são impactadas diretamente por variações nos lucros e nos salários, daí sua plasticidade política.
Desalojados da Presidência pela Revolução de 1930, os proprietários fundiários se concentraram no Congresso --hoje os ruralistas representam mais da metade da bancada do PMDB. Como não têm mais força para comandar o país --há quanto tempo o partido não lança um candidato a presidente?--, eles procuram barrar, no Legislativo, todas as iniciativas que possam prejudicá-los.
Em geral conseguem. O PSD impediu a aprovação da reforma agrária no governo João Goulart, e o mesmo fez o PMDB na Assembleia Constituinte. Há dois anos, os ruralistas derrotaram o Planalto em todas as votações sobre o Código Florestal.
É difícil governar sem o centro: o PSD abandonou Getúlio em 1954, fez oposição a Jânio em 1961, rompeu com Jango em 1964. Sabotado pelo PMDB, Collor caiu em 1992.
Após a eleição, o presidente só tem duas opções: ter ou não ter maioria. Quem decidiu a parada foi o eleitor. Este reclama a todo instante que deseja mudar. Mas, quando é chamado a agir, prefere pedir outro prato de lentilhas ao fazendeiro.


Texto de Maurício Puls, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Estabilidade financeira toma o lugar do casamento entre jovens nos EUA, diz pesquisa

Entre todas as etapas marcantes no caminho para a vida adulta, as pessoas estão cada vez mais abandonando uma das mais importantes: o casamento.
Vinte por cento dos adultos com mais de 25 anos, cerca de 42 milhões de pessoas, nunca se casaram, 9% a mais do que em 1960, de acordo com dados de um relatório do Pew Research Center publicado na quarta-feira (17).
A tendência tem se mantido constante há décadas. Desde 1970, cada grupo de jovens adultos tem mostrado uma probabilidade menor de se casar do que a geração anterior. Embora parte da tendência possa ser atribuída ao fato de que as pessoas estão simplesmente se casando mais tarde, as projeções do Pew estimam que um quarto dos jovens adultos de hoje não se casarão até 2030, o que seria a maior porcentagem da história moderna.
Então, enquanto a esquerda e a direita debatem a relação entre casamento, filhos e pobreza, os jovens parecem estar enviando uma mensagem aos políticos: o casamento não está necessariamente no plano. Essa mudança pode remodelar não só as famílias norte-americanas, mas também as políticas de impostos, filhos e benefícios.
Sob muitos aspectos, o afastamento do casamento é resultado da evolução dos papéis de gênero. Mas o declínio também resulta da divisão socioeconômica que se aprofunda no país. Até algumas décadas atrás, o casamento era principalmente uma equação econômica: os homens ganhavam dinheiro para sustentar a família enquanto as mulheres administravam o lar.
Mas com o aumento do controle de natalidade, da tecnologia no lar e das mulheres na força de trabalho, o casamento passou a acontecer menos por motivos econômicos e mais por amor, como a historiadora social Stephanie Coontz descreve em seu livro "Marriage, a History: How Love Conquered Marriage" [literalmente: "Casamento, uma História: Como o Amor Conquistou o Casamento"].
A porcentagem de pessoas com alta renda e escolaridade que se casam ainda é grande e elas tendem a permanecer casadas, de acordo com economistas e demógrafos. Permanecer solteiro é mais comum entre as pessoas de menor escolaridade, negros e jovens, revelou o Pew.
Os homens tem uma probabilidade maior de permanecerem solteiros do que as mulheres, 23% contra 17%. Parte disso se deve ao fato de que a porcentagem de homens entre 25 a 54 anos que não trabalham vem aumentando há 50 anos. Ao mesmo tempo, 78% das mulheres que nunca se casaram dizem que um parceiro com emprego fixo é muito importante para elas, mais do que qualquer outra característica ao escolher um marido. O Pew analisou o grupo de homens empregados e solteiros em comparação com todas as mulheres solteiras e descobriu que há 65 homens empregados para cada 100 mulheres.
Os negros dão mais importância do que os brancos a encontrar um parceiro com um emprego fixo antes do casamento, de acordo com o Pew, e entre os jovens negros solteiros, há 51 homens empregados para cada 100 mulheres.
"Os homens sem diplomas universitários estão indo tão mal no mercado de trabalho que não parecem boas perspectivas para as mulheres em suas vidas", diz Isabel V. Sawhill, codiretora do Centro sobre Crianças e Famílias na Brookings Institution, cujo livro sobre o tema, "Generation Unbound: Drifting Into Sex and Parenthood Without Marriage" [algo como "Geração Sem Compromisso: Sexo e Filhos sem Casamento"], foi lançado na quinta-feira (18).
Mas ela diz que não é um fenômeno totalmente econômico, é também uma mudança de papeis sociais. "Acho que tem algo a ver com o fato de que, na classe profissional, como os homens estão indo muito bem, eles não são ameaçados de forma alguma por uma mulher que trabalhe ou que também seja bem sucedida", disse ela. "Entre os homens da classe trabalhadora, pode ser um pouco mais ameaçador se a esposa ou a namorada ganhar tanto quanto ele e, como resultado, passar a fazer novas demandas."
À medida que o casamento moderno se tornou mais relacionado ao amor do que à sobrevivência, estar casado se transformou em um luxo que está mais ao alcance das pessoas ricas, diz Justin Wolfers, economista que escreve para o The Upshot e estudou o casamento e o divórcio. Os benefícios de compartilhar interesses em comum têm mais chances de favorecer as pessoas que têm tempo e dinheiro para investir neles, disse ele.
Embora o casamento já tenha sido a base da estabilidade econômica, os jovens adultos de hoje veem a estabilidade financeira como um pré-requisito para o casamento. Mais de um quarto daqueles que dizem querer se casar um dia afirmam que não o fizeram ainda porque não estão financeiramente prontos, de acordo com o Pew.
"Se voltarmos atrás uma geração ou duas, os casais literalmente embarcavam juntos e construíam suas finanças e seu pé de meia juntos", diz Kim Parker, diretora de pesquisa em tendências sociais do Pew. "Agora, parece existir essa atitude entre os adultos jovens, de construir seus lares antes de se casar."
Em outras palavras, o casamento deixou de ser a forma pela qual as pessoas organizam suas vidas para se tornar algo com o qual concordam depois de terem feito isso sozinhas.

Texto de Claire Cain Miller, para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: Eloise De Vylder

Vazamento premiado e o fator Youssef

Novembro/dezembro de 1989: com a possibilidade de um candidato metalúrgico chegar ao poder, a elite dominante se uniu para fechar a porta do Planalto. A empreitada produziu momentos inesquecíveis da baixaria eleitoral.
Primeiro foram atrás de uma ex-mulher de Lula para "acusá-lo" de defender o aborto. Não bastou. Com a ajuda da polícia paulista, o sequestro do empresário Abilio Diniz foi atribuído a grupos internacionais supostamente simpáticos ao PT. Fotografias de sequestradores com a camiseta do partido circularam sorrateiramente, de preferência nem tanto.
Também era pouco. Faltava a televisão. Numa edição que o então diretor de jornalismo da TV Globo, Armando Nogueira, admitiu anos depois ter sido enviesada, o debate entre Lula e Collor carregou nas tintas em favor do autointitulado caçador de marajás. Para fechar o cerco, denúncias de fraude em massa na Bahia foram sufocadas para selar a vitória de Collor. O resto é de todos conhecido.
Setembro/outubro de 2014: numa sucessão galopante, "denúncias" e mais "denúncias" aparecem para tentar provar que o governo petista não passa de uma quadrilha de saqueadores. A origem são as tais delações premiadas, diante das quais dispensam-se provas ou evidências cabais. O réu fala o que quiser, e seria um sinal de retardo mental acreditar que vá falar algo em seu prejuízo.
Basta ver as reportagens. Os verbos mais usados são indicam, sugerem, supõem, fazem crer, sinalizam –tudo com muito cuidado para, ao mesmo tempo, espalhar a dúvida e escapar de processos. Chega-se ao ponto de acusar o ex-ministro Antonio Palocci de pedir a doleiros recursos para a campanha de Dilma. Mas a mesma reportagem reconhece não haver provas de que o dinheiro jorrou. Lembra aquela outra peça de ficção, assinada por um hoje influente assessor de governo tucano, que acusava petistas de ganhar por fora, mas declarava, ao mesmo tempo, não ter condição de confirmar ou desmentir as próprias afirmações transformadas em capa! Nota: nada foi comprovado.
O clima agora é parecido, mas os personagens atrapalham a oposição. O frisson do momento é a delação premiada de Alberto Youssef. Mas quem é Youssef? Um mergulho num passado não tão distante mostra que ele foi um dos doleiros usados pelo então operador do caixa do PSDB, Ricardo Sérgio, para "externalizar", num linguajar ao gosto da legenda, propinas da privatização selvagem dos anos 1990.
Youssef é velho de guerra tanto em delitos com em delação premiada. Já fez uma em 2004, na época da CPI do Banestado, quando se comprometeu a nunca mais sair da linha. O tamanho de sua confiabilidade aparece em sua situação atual. Está preso de novo. Quem diz é o Ministério Público: "Mesmo tendo feito termo de colaboração com a Justiça (...), voltou a delinquir, indicando que transformou o crime em verdadeiro meio de vida." É num sujeito com tal reputação que oposicionistas apostam suas fichas.
Resumo da ópera: sem investigação a fundo, nada vale. Espera-se que a esdrúxula teoria do domínio do fato tenha sido enterrada na gestão Joaquim Barbosa, atualmente mais preocupado com tarifas telefônicas. Goste-se ou não, o bueiro escavado em governos pregressos e nas privatizações feitas no "limite da irresponsabilidade" está sendo aberto pelas administrações petistas. Talvez por isso Dilma tenha deslanchado nas pesquisas, enquanto Marina e Aécio (com aquele ar de falsa virgem já inúmeras vezes deflorada) patinam nas intenções de voto. 


Texto de Ricardo Melo, na Folha de São Paulo

Mafalda, personagem dos quadrinhos, comemora 50 anos nesta segunda

Mafalda, personagem dos quadrinhos, comemora 50 anos nesta segunda

Festa oficial ocorrerá no bairro San Telmo, em Buenos Aires, onde a menina rebelde teria nascido



Nos anos de 1960, uma garotinha de classe média de Buenos Aires, indignada com as notícias de violência e guerras, gritou: “Parem o mundo, que eu quero descer”. Essa e muitas outras frases de Mafalda - principal personagem de quadrinhos do cartunista argentino Quino – deram a volta ao mundo, foram traduzidas em vinte línguas e continuam atuais. É por isso que, nesta segunda-feira, velhos e novos fãs da menina inconformista, que vivia questionando políticos, economistas e adultos em geral, vão comemorar seu cinquentenário.

Ao longo de todo o ano, Mafalda e seu criador, Quino, foram homenageados na Espanha, na França e em países da América Latina. Mas a festa de aniversário oficial ocorre amanhã em San Telmo – bairro de Buenos Aires, onde a menina rebelde teria nascido no dia 29 de setembro de 1964. Nessa data, ela apareceu pela primeira vez, em uma tira em quadrinhos da revista argentina Primeira Plana.

Mafalda ja tem uma estátua em San Telmo mas, aos 50 anos, não estará mais sozinha: vai festejar o aniversário com dois amiguinhos, a fofoqueira Susanita (que só pensa em casar com um bom partido e ter filhos) e o materialista Manolito (cujo sonho é ter uma enorme rede de supermercados), que também vão ganhar estátuas nesta segunda-feira.

Baixinha, de cabelos curtos adornados por um enorme laço, Mafalda nasceu com seis anos e – apesar de ter sobrevivido menos de uma década (Quino decidiu parar de desenhá-la em 1973, três anos antes do último golpe militar argentino) – ganhou fama internacional. O escritor e sociólogo italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, chegou a batizá-la de “heroína enraivecida”.

Mafalda comentava os acontecimentos da época: eram tempos de Guerra Fria e ditaduras na América Latina. Mas suas frases, criticando a injustiça social, a destruição do meio ambiente e a falta de sensibilidade dos governantes, parecem ter sido ditas ontem. É o caso da tirinha em que pergunta o que há de errado com a “família humana” e que “todos querem ser o pai”.

Aos 81 anos, o próprio Quino manifesta sua surpresa com a personagem que ganhou vida própria. Em entrevista em abril passado, na inauguração da Feira do Livro em Buenos Aires, ele disse: “Fico surpresa quando vejo como temas que abordei há 50 anos permanecem atuais. Ate parece que desenhei a tira hoje. Deve ser porque o mundo continua cometendo os mesmos erros”.


Fonte: Agência Brasil

Reprodução do Correio do Povo

domingo, 28 de setembro de 2014

Livro mostra crimes e ação política de dinastia dos EUA

CIFRAS & LETRAS
CRÍTICA JORNALISMO

Livro mostra crimes e ação política de dinastia dos EUA

Jornalista expõe práticas de família dona de gigante do setor petroquímico
RODOLFO LUCENADE SÃO PAULO

Danielle Smalley era uma garota linda, de cabelos escuros caindo abaixo dos ombros, franjinha marota, sorriso sempre presente. Aos 17 anos, não temia assumir responsabilidades: era a presidenta do clube de teatro de sua escola.
No dia 24 de agosto de 1996, viu que precisava fazer alguma coisa ao sentir o forte cheiro de gás que tomava conta do pequeno trailer onde vivia com o pai e a irmã no condado de Kaufman, no Texas. O fogão estava funcionando bem, o vazamento deveria ser em algum outro local. E era grande.
Como os Smalley nem sequer tinham telefone, ela se prontificou a ir até um vizinho para dar o alarme. Com o amigo Jason, pegou a velha caminhonete do pai para cumprir a tarefa. A picape de mais de 30 anos rodou uns 200 metros e apagou. Danielle girou a chave. Nada. Tentou de novo.
A explosão espalhou fumaça, fogo e desespero. O pai da adolescente, um mecânico de 40 anos, correu desesperado em direção às chamas, mas não havia chance de encontrar os jovens com vida. Os corpos carbonizados ficaram irreconhecíveis; só foram identificados pelos restos dos órgãos genitais.
O acidente que destroçou a família Smalley também lançou luz sobre as condenáveis práticas empresariais do complexo petroquímico Koch Industries (KI), a segunda maior empresa privada de capital fechado dos Estados Unidos, que no ano passado faturou US$ 115 bilhões.
Por economia, a empresa adiava os trabalhos de manutenção ou deixava sem conserto trechos inteiros de sua rede de distribuição de gás, que se estendia por dezenas de milhares de milhas pelo subsolo dos Estados Unidos. "Nós cometemos erros", admitiu em julgamento Bill Caffey, então vice-presidente da corporação. Disse também: "A Koch Industries é definitivamente a responsável pela morte de Danielle Smalley".
Não só pela morte dos dois jovens como também por uma série de desastres ambientais, crimes empresariais e interferência na política norte-americana, como deixa claro o livro "Sons of Wichita" ("filhos de Wichita", cidade no Kansas onde fica a sede do grupo). A obra tem um extenso e esclarecedor subtítulo: "Como os irmãos Koch se tornaram a mais poderosa e privada dinastia dos Estados Unidos".
O livro é resultado de uma extensa pesquisa do jornalista Daniel Schulman, editor sênior do escritório de Washington da "Mother Jones", organização jornalística sem fins lucrativos especializada em reportagens investigativas, especialmente sobre questões políticas e sociais.
Mergulhando em processos e decisões judiciais, reportagens e livros publicados ao longo das últimas décadas, além de série de entrevistas feitas por ele mesmo, Schulman apresenta a anatomia de um gigante corporativo cuja ação apenas nos últimos anos se tornou mais conhecida.
Seus tentáculos se estendem pelas mais diversas áreas da indústria, do refino de petróleo a toalhas de papel para uso em cozinha. São tantos os segmentos que a revista econômica "Forbes" não crava uma área de atuação para a KI; na sua lista de maiores corporações privadas dos EUA, classifica o grupo como multicompanhia.
O complexo se atirou também à política. Charles e David Koch, os irmãos que comandam o gigante, se notabilizaram nos últimos anos como uma das principais forças econômicas a dar suporte ao grupo direitista conhecido como Tea Party.
O livro mostra que isso não é novidade na família. Fred K. Koch (1900-1967), o patriarca e criador da empresa, foi um dos fundadores da organização racista e ferrenhamente anticomunista John Birch Society. Inculcou nos filhos crenças radicais libertárias, contra a ação do Estado e em defesa sem quartel do livre mercado.
Não conseguiu, porém, dar aos herdeiros espírito de solidariedade fraterna. Ao contrário. Seus filhos se enfrentaram em dolorosas batalhas jurídicas ao longo de anos, que exibiram detalhes sórdidos da vida empresarial e até intimidades dos irmãos.
O livro é mais do que a anatomia de uma corporação e de uma dinastia empresarial. Mostra um pouco do estilo de vida de bilionários e expõe o mundo privado das relações entre corporações e políticos. E diverte o leitor.

"SONS OF WICHITA"
AUTOR Daniel Schulman
EDITORA Grand Central Publishing
QUANTO US$ 30 (432 págs.)
AVALIAÇÃO Bom


Reprodução da Folha de São Paulo

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O caso Lobão e o estilo do Ministro José Eduardo Cardozo

Introdutor de um estilo novo de entrevista coletiva - nas quais não costuma anunciar quase nunca  nenhuma medida, nenhuma política, nenhuma ação de governo - ontem o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo concedeu uma de suas entrevistas-padrão, após a inauguração solene de uma Delegacia Especial da Polícia Federal no Aeroporto Internacional de São Paulo.
Depois do evento, com a entonação grave dos grandes tribunos, o olhar aguçado de quem enxerga na frente, despejou sua frase predileta: “A PF é republicana”. A outra frase predileta é: “as leis foram feitas para serem cumpridas”.
Na hora, ninguém cuidou de perguntar ao Ministro a troco de quê as declarações, algum fato novo?
Soube-se do fato novo em seguida: naquele momento, sem mandado judicial, sem se identificar, policiais da PF invadiram o avião de campanha de um candidato a governador do Maranhão pelo PMDB.
Os jornais online noticiaram simultaneamente a operação e as declarações cívicas de Cardozo:
 “Pouco importa se as pessoas que cometem ilícitos são amigos ou inimigos dos que governam. Pouco importa se aquela pessoa que descumpre a lei tem um poder econômico ou tem poder político, ou se é um simples operário. A polícia republicana tem essa dimensão. É um órgão de Estado. Um governo que respeita uma polícia de Estado se limita a estabelecer diretrizes e não interfere no seu cotidiano.”
Pouco depois o vice-presidente da República Michel Temer, prócer do PMDB – e jurista – denunciou o que considerou uma arbitrariedade e Cardozo foi obrigado a sair das obviedades solenes para os fatos concretos.
Convoca-se então uma reunião de emergência no Palácio do Planalto e todos saem correndo atrás do prejuízo.  Provavelmente a Presidente só foi informada da operação após o grito de Temer.
Após a reunião, o Ministro-Chefe da Casa Civil Aloizio Mercadante foi acionado para acalmar Temer, não o Ministro da Justiça. A missão de Cardozo foi levantar o abuso junto à PF republicana. Finalmente, Dilma exigiu uma atitude de Cardozo.
Um Ministro da Justiça com senioridade imediatamente convocaria o delegado-geral da PF para, pessoalmente, fazer-lhe um relato do ocorrido e das medidas a serem tomadas. Limitou-se a enviar um ofício solicitando “investigação rigorosa”.
Como esse ofício será tratado? Com absoluto desdém, como qualquer requisição de Cardozo à PF. Repito, com conhecimento de causa: com absoluto desdém.
Haverá alguma apuração apenas se a própria Dilma entrar na história.
Segundo a cobertura do evento de inauguração, “Cardozo dedicou quase todo o tempo a enaltecer a atuação da PF”. Essa apologia à PF não tem reciprocidade. A PF, da cúpula à base, trata Cardozo com absoluto desprezo.
O “republicanismo” de Cardozo não se funda em convicções jurídicas apenas, mas em precaução. Elogios são a maneira que encontrou para um pacto de não-agressão com a PF que lhe permita exercitar sua atividade predileta: a inércia. Tipo “eu não incomodo vocês em nada, elogiarei sempre que possível; em troca não me venham cobrar nada, especialmente trabalho”.
Depois do período áureo da PF, sob a orientação de Ministros como Márcio Thomaz Bastos e Tarso Genro, a força foi completamente abandonada na gestão Cardozo.  Esfacelou-se em disputas internas, não arbitradas pelo Ministro, na falta de recursos, na ausência de qualquer política balizadora.
Não é a única falha do Ministro. Cardozo abandonou completamente a questão indígena, em uma falta de ação irresponsável junto a áreas conflagradas; nada se sabe da Política Nacional de Segurança Pública. Houve algum avanço na Copa do Mundo, de integração com as polícias estaduais, porque o modelo de trabalho aplicado exigiu o envolvimento de todos e fugiu da sua liderança.
Sua rotina diária consiste em chegar no Ministério às 11 horas, sair para almoço às 12:30, voltar perto das 16:00 e, em geral, se retirar antes das 18 horas. No Ministério, são comuns processos parados por falta de assinatura, políticas paralisadas, quando batem na sua mesa, reuniões desmarcadas, sempre que tratam de temas sensíveis, nomeacoey adiadas, porque ele se esqueceu de algum detalhe.
Não se sabe o que leva Dilma a mantê-lo no cargo; ou o que o leva a não sair. Seus quatro anos no Ministério são uma demonstração da falta de sensibilidade do governo para questões de Estado e desprezo pelos temas relevantes da alçada da Justiça, mas que aparentemente não sensibilizam a presidente.


Reprodução do Blog do Luís Nassif

Os sofismas sobre a independência do Banco Central

Uma das grandes confusões de economistas e estatísticos se dá na definição das relações de causa e efeito.
Um dos bordões usuais é a afirmação que todos os países com Banco Central independente melhoraram no controle da inflação.
A afirmação é falsa. As pesquisas indicam que a regra vale apenas para países industrializados e com moedas conversíveis.
Funcionário do Banco Central, Márcio Antônio Estrella compilou os principais estudos sobre independência vs inflação, e publicou o paper "Moeda, Sistema Financeiro e Banco Central - uma abordagem teórica e prática sobre o funcionamento de uma autoridade monetária no Brasil e no mundo".
"No tocante aos países emergentes, os estudos são mais escassos e, mesmo os que enfocam países emergentes, vários autores não encontraram nenhuma relação significativa entre inflação e a independência legal dos bancos centrais", diz o trabalho.
Quando se utiliza como critério de independência a rotatividade dos presidentes de BCs, se obtém uma "clara relação inversa entre inflação e a sua independência legal".
***
Por aí se percebe a confusão na definição da causalidade.
A correlação correta não é entre BC independente e inflação em baixa, mas entre BC independente e países industrializados com moedas conversíveis.
Nesses países, a própria estabilidade reduz os riscos de estragos na atuação do BC. A variação das taxas básicas vai de zero a 4 pontos ano. Os efeitos sobre o câmbio são mínimos. Os canais de transmissão dos juros, desobstruídos. É uma situação totalmente diversa de países como o Brasil, no qual a independência funcional do BC permitiu - no início do plano Real - que mantivesse a taxa de juros em inacreditáveis 45% ao ano sem ser contido.
Mesmo assim, como lembrou o Nobel Joseph Stiglitz, na crise, “países com bancos centrais menos independentes, como Brasil, China e Índia, se saíram muito, mas muito melhor do que países com BCs mais independentes, como a Europa e nos Estados Unidos”.
***
Isso se deve a uma característica necessária dos BCs, jamais levantada nas discussões brasileiras: a independência em relação aos mercados.
Segundo um dos maiores estudiosos do tema, o economista norte-americano Alan Blinder, "o acompanhamento das reações dos mercados deve ser realizado sem representar uma submissão da autoridade monetária aos mercados até porque, em muitos momentos, a política do banco central precisa enfrentar e até confrontar o mercado".
***
Hoje em dia, o BC está capturado pelo mercado. Não há a menor preocupação com impactos fiscais e cambiais da política monetária.
Estaria em condições de assumir as prerrogativas de um BC independente. Ser independente significaria:
Poder para definir metas e objetivos e liberdade operacional para definir como atuará para atingi-las.
Irreversibilidade das decisões. No sistema americano, diz o trabalho, nem o presidente nem a Suprema Corte podem anular decisões do Federal Open Market Commitee (FOMC).
Liberdade para definir taxas de câmbio.
Garantia total para a diretoria do BC de que, em conseqüência de suas ações, dentro dos preceitos legais, seus componentes não serão exonerados ad nutum pelo presidente do país.


Texto do Blog do Luís Nassif

Consumo




Por Mandrade ("M. Andrade"?) na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A máquina atua

A máquina atua Funcionários da Cemig, a distribuidora de energia de Minas, receberam e-mails com foto de Aécio e pedido de voto em Pimenta da Veiga, candidato do PSDB no Estado.


Notinha da coluna Painel, da Folha de São Paulo.

A opinião da indústria e da agricultura sobre as soluções de Giannetti

No início deste mês, em 8 de setembro, o jornal Valor Econômico publicou uma entrevista com o conselheiro de Marina Silva, Eduardo Giannetti. O bom trabalho de jornalismo das repórteres Denise Neumann e Catherine Vieira resultou em respostas bastante claras do economista, e surpreendentemente sinceras.
Ele afirmou, por exemplo, que os compromissos sociais do programa de governo de Marina dependem do equilíbrio fiscal para serem cumpridos. Garantiu, além disso, que no caso da vitória da candidata, a indústria deve se preparar para uma “operação desmame”. “Ela [a indústria] está acostumada a chorar e ser atendida. Ela vai ter que se acostumar a uma situação em que será vitoriosa se for bem na competição”.
Para cumprir o compromisso de não aumentar a carga tributária, Giannetti confessou que será necessário cortar despesas. A questão continua a ser: onde? Ele admitiu que é difícil responder de fora do governo, mas identificou “uma extravagância muito grande na expansão do crédito subsidiado no Brasil” e “uma isenção da Cide sobre combustível que prejudica a arrecadação”.
A entrevista repercutiu muito. Principalmente entre os adversários. A presidente Dilma não demorou a se posicionar, demonstrando preocupação com o programa que, ela afirmou, “reduz a pó” a política industrial brasileira, pois “tira o poder dos bancos públicos de participar do financiamento da indústria e da agricultura”.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, seguiu na mesma linha, garantindo em entrevista ao jornal O Globo que as mudanças vão “desmontar a política industrial”. “Vai abrir a economia e submeter a indústria à competitividade. Ou seja, vão quebrar a indústria desse país. Isso se chama tratamento de choque neoliberal. Isso é clássico”, disse.
No entanto, o Jornal GGN procurou especialistas nos setores industrial e agropecuário e a surpresa é que o choque neoliberal foi muito bem aceito e bastante defendido por eles.
O ponto de vista da indústria
Para Carlos Pastoriza, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ), as medidas preparam terreno para uma reforma tributária. “Esse choque político vai provocar uma confiança tão grande que rapidamente as torneiras de investimento nacional e estrangeiro vão voltar a jorrar”, acredita.
Ele afirmou que “os ajustes necessários podem até ter um primeiro momento recessivo”. Mas entende que é um mal necessário. “Vai ter um impacto no emprego, com certeza. Eu vejo o que a Espanha fez. O país está com um desemprego cavalar, de 25%, e cortou gastos, causou desemprego, para sair dessa situação deficitária”, lembrou.
Ainda assim, ele defendeu o caminho proposto por Giannetti. “A entrevista que ele deu está em perfeita sintonia com o que a ABIMAQ acredita. Essas reformas são duras, difíceis, politicamente amargas, mas absolutamente necessárias”.
Na opinião de Pastoriza, o único ponto de atenção - o corte que não pode ser realizado - é no financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para máquinas e equipamentos. “Não pode acabar com o Finame. É a única linha de crédito que existe no Brasil para financiar compras de máquinas. Não existe nem no mercado privado. Essa linha é absolutamente necessária. Se tirar, os investimentos da formação bruta caem pela metade”, alertou.
A opinião do agronegócio
O diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), Luiz Cornacchioni, tem um ponto de vista parecido. Para ele, a fala de Giannetti é sobre “uma reforma fiscal para enxugar o Estado”. “Ele deve fazer o reequilíbrio da carga tributária, reduzindo os gastos públicos”.
As medidas seriam necessárias para aumentar a competitividade do setor agrícola. “Este ano, do ponto de vista da produção, a safra vai ser boa, mais de 200 milhões de toneladas. Mas a gente não tem mais os preços, os patamares hoje são inferiores”, explicou.
O diagnóstico de Cornacchioni aponta para uma queda nos investimentos em máquinas e equipamentos. “O custo de logística é muito alto, três vezes maior do que o dos concorrentes argentinos e americanos. Os investimentos estão paralisados. A conta frete é 25%, então, o que o fazendeiro faz? Tira o pé. Se o trator aguenta mais um ano, não troca o trator. E isso afeta toda a cadeia de fornecedores”.
Questionado se um corte no crédito subsidiado não agravaria ainda mais a situação, ele disse que não, uma eventual perda no poder de inovação do produtor, com o aumento da Taxa de Juros de Longo Prazo, seria compensada pela alta do câmbio. “O câmbio está artificialmente do jeito que está. E deve sentir rapidamente o choque”.
Cornacchioni defendeu também o fim da isenção da CIDE. “O setor sucroalcooleiro está sofrendo como nunca sofreu antes. Não dá pra segurar o preço do combustível e quebrar o setor”, disse.
Inclusive, ele não teme uma onda de desemprego. “Eu sou otimista na questão do emprego. Eu acho que se mantém, pois teremos uma safra muito boa, do ponto de vista da produção. Isso emprega muita gente para plantar, colher e transportar”.
“Eu acho que o Gianetti atacou os pontos que têm que ser atacados. O Armínio Fraga [presidente do Banco Central no governo FHC e principal assessor econômico da campanha de Aécio Neves] ataca os mesmos pontos. Vamos ter um período amargo? Vamos. Mas precisa mexer, ou os impactos no longo prazo vão ser piores”, finalizou.

Reportagem de Luiz de Oueiroz, no Jornal GGN.

Os filhos que a gente (não) quer

"Seu Jairo, amanhã eu devo me atrasar para chegar. Talvez eu nem venha, o senhor me desculpe. Ontem à noite, mataram meu sobrinho, com 16 tiros, ali no Paraisópolis --uma das maiores favelas de São Paulo. Vou ao enterro, porque pude ficar pouco no velório.
Minha irmã está arrasada, seu Jairo. Foi humilhada pelos policiais que foram ver o caso. Pareciam dizer que a culpa tinha sido dela por não ter controlado o filho direito, por não ter prendido ele em casa. Ele mexia com coisa errada, sim, seu Jairo, mas tentamos de um tudo para ele ser uma pessoa do bem, honesta, trabalhadora.
A gente que é pobre de cidade grande, seu Jairo, tem de trabalhar muito, o dia inteiro, para poder sustentar os filhos e tentar dar a eles um pouco dessas coisas todas que vão aparecendo: um tênis de R$ 500, o senhor acredita que tem tênis de R$ 500? Uma roupa da moda, um jogo do computador, um celular que só falta voar.
Ninguém tinha orgulho do Vitinho fazer coisas erradas, não, e minha irmã sofria demais com ele, mas era filho, era amado e é doloroso ver ele ali caído no chão, cheio de balas, parecendo um bicho, seu Jairo.
Quem não quer ter um filho que seja honesto, trabalhador, que cuide da família? A gente não sabe onde erra com eles, seu Jairo. A gente pensa que está fazendo o melhor, a gente briga quando vê uma atitude errada deles, mas existe uma força que acaba arrastando eles para o mal, por mais que a gente reze e peça a proteção de Nossa Senhora."
As palavras e o choro tímido de Geni, minha ajudante, parecem ter-me posto anestesiado, a ponto de não conseguir reagir diante dela, de não conseguir dar-lhe um apoio sincero, daqueles que sustentam o amanhecer do dia seguinte.
Mais tarde, pensei que muitos e muitos filhos não são necessariamente aquilo que os pais sonharam, desejaram e desenharam como reflexo mais bem construído de si mesmos. Os filhos podem seguir os anseios de sua própria natureza ou os caminhos pelos quais os acontecimentos, as desgraceiras, a genética, a sociedade injusta e o diabo os levaram.
Filhos nascem com down, filhos adquirem vícios, filhos apanham na escola porque não são os fortões, filhos machucam os outros, filhos sofrem por preconceitos contra sua sexualidade, filhos fazem tatuagens horríveis, filhos se tornam ateus.
Minha mãe não queria ter um filho cadeirante, Geni, e fez da noite dia para que eu andasse e fosse uma criança como outra qualquer. Mas chegou o momento em que eu quis assumir o meu destino com minhas próprias rodas.
Sim, Geni, entendo que crescer com uma inconformidade física ou intelectual é bem diferente de crescer aprontando crimes, vexames e vergonhas para os pais, mas, muitas vezes, chega o momento em que o controle absoluto que se imagina ter da cria se esvai diante do ímpeto de eles quererem rabiscar o próprio destino.
Penso que mesmo aqueles filhos que são exatamente do jeito que a gente quer podem estar amarrados diante da angústia de fazer aquilo que não querem.
O fundamental, Geni, é buscar a calma na mente por, alimentando a esperança de que os filhos seguissem seus próprios caminhos, ter doado amor, dedicação, suor, ensinamentos, alegria e fé.


Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Patrono da Feira de Porto Alegre editou livro racista e em defesa dos torturadores

Aírton Ortiz foi um editor dinâmico, dono da editora Tchê. Publicou obras de todos os tipos. Uma delas, lançada em 1985, chama a atenção. Chama-se “Brasil sempre”, do sargento do exército e membro do DOI-CODI  Marco Pollo Giordani, e destaca-se por defender o SNI, os torturadores do regime militar e por se apresentar como um contraponto a “Brasil: nunca mais”, obra de referência na denúncia aos crimes da ditadura brasileiro organizada, entre os outros, por D. Evaristo Arns.
“Brasil sempre” tem um capítulo sobre os brasileiros. O conteúdo é escancaradamente racista. Giordani escreve assim no livro: “Penso que o negro, o índio e o mestiço, com esporádicas exceções – e lhes destacando as virtudes afetivas – são castas de rendimentos inferiores. Não quero entrar no campo discriminatório. Meu raciocínio são emanações da realidade”.
Não satisfeito com essa afirmação, que o editor não se constrangeu em publicar, o autor diz mais: “Quando contemplo famílias inteiras de brasileiros – mais precisamente os chamados ‘pelos-duros’ – buscarem alimentos nos lixos das cidades, amontoarem-se pelas margens fétidas de canais de esgotos ou debaixo de pontes, inicialmente não penso num abandono público, mas baseado na luta que tive para vencer na vida, estou convencido da existência de uma escala axiológica hierarquizando padrões raciais”.
Dissertando sobre os nordestinos brasileiros, o autor indaga: “Interessa a quem, pergunto, essa multidão de crianças atrofiadas, com irreversíveis sequelas cerebrais?”. Uma linha antes, falando sobre a pujança japonesa, assegura: “Evidentemente, é um problema racial, educacional e filosófico – eis os três requisitos para a formação de uma elite”.
No papel de planejador do futuro, Giordani aconselha: “Urge, imprescindivelmente, a busca de dois caminhos indesviáveis: um rigoroso controle de natalidade – fundamentalmente nas regiões mais pobres e periféricas dos grandes centros – para que possamos, a longo prazo, obter uma raça mais qualificada…”
O Jornal do Brasil, que apoiou a ditadura, não se conteve ao analisar o texto de Giordani publicado por Ortiz: “Um livro que elogia e valoriza o trabalho e o poder político da comunidade de informações, especialmente do SNI…” A Folha de S. Paulo, que até hoje relativiza os estragos do regime militar, que chama de “ditabranda”, concedeu: “Giordani diz que não pretende contestar o relato das vítimas da esquerda, mas mostrar a parte esquecida”. O autor é bem claro, escreveu o seu livro para contestar a edição de “Brasil: nunca mais”, “faccioso relato de um pretenso grupo de especialistas”. Só isso.
“Brasil sempre” mostra um autor feliz com seus anos de DOI-CODI, indignado com a igreja progressista e cheio de louvações para alguns: “O Brasil construiu o maior e mais poderoso Serviço de Informações de todo o continente sul-americano. Presto aqui uma homenagem a seu idealizador, o inteligente general Golbery do Couto e Silva”
É um livro racista.
Será relançado nesta sexta-feira, por conta do autor, na Livraria Cultura.
É uma vergonha para Feira do Livro de Porto Alegre, que nos 50 anos do golpe militar, ele homenageie o editor de uma obra racista e em defesa dos aparatos de repressão e de tortura. A Câmara Rio-Grandense do Livro jogou bola fora.


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Um número muito evitado na França

Um número muito evitado na França

Por LIZ ALDERMAN

ÉGUILLES, França - O montanhista francês Philippe Plantier estava descendo um rochedo há mais de uma década quando teve um momento de inspiração: ele poderia transformar sua paixão por escaladas em um negócio.
Abriu uma pequena empresa na Provença, no sudeste da França, que atua em estruturas industriais, com montanhistas fazendo pintura e outras tarefas em rapel.
Plantier decididamente não se intimida com alturas, porém se recusa a ultrapassar o número 49. Quando seu quadro de funcionários chegou a esse limite, ele não contratou mais ninguém.
Empregar a 50° pessoa implicaria se enredar em quase 30 regras trabalhistas francesas que levariam a um aumento de cerca de 4% nos custos de sua empresa, a Travaux Grande Hauteur.
Segundo Plantier, isso poderia fazer a diferença entre ganhar e perder dinheiro. Em vez de expandir a empresa, ele montou mais duas com menos de 50 pessoas. Para economistas, as regras para empresas com mais de 50 funcionários são um dos motivos para que a taxa de desemprego na França seja o dobro da registrada na vizinha Alemanha.
Quando ultrapassam o limiar, as companhias são obrigadas a ter um conselho de trabalhadores com sindicalistas, um comitê de saúde e um dissídio coletivo anual.
Com a estagnação da economia, o presidente François Hollande tentou estimular a geração de empregos reduzindo o Código de Trabalho, a fim de facilitar demissões nas empresas e reduções de salários e carga horária em períodos de queda na produção.
Neste verão, ele também propôs banir ou suspender por um tempo as obrigações para quem tem mais de 50 funcionários.
No entanto, como Hollande tem a pior avaliação de todos os tempos, ele corre o risco de entrar em conflito com membros de seu Partido Socialista e com poderosas organizações trabalhistas.
Proponentes do limiar do 50° funcionário afirmam que isso visa proteger os próprios trabalhadores e garantir sua participação na gestão das empresas.
Por sua vez, empregadores dizem que as exigências também prejudicam os negócios. Um estudo feito pela London School of Economics em 2012 mostrou que o custo das regras adicionais era equivalente a cerca de 5% a 10% de aumento salarial. "Isso é um grande obstáculo para o crescimento", concluiu o estudo.
A meia hora de carro ao norte de Éguilles, Tanguy Roelandts, fundador da fábrica de chocolates Puyricard, enfrentou esses desafios quando seu negócio começou a florescer, há dez anos.
Segundo ele, a fábrica era como uma família e as vendas anuais chegavam a cerca de € 10 milhões (R$ 30 milhões).
Mas após ele contratar o 50° funcionário "os resultados pioraram", pois isso onerou em cerca de € 32 mil (R$ 97 mil) os custos operacionais anuais da Puyricard, e Roelandts foi obrigado a dedicar metade de seu tempo para questões administrativas e a burocracia estatal francesa.
O maior problema foi quando Roelandts criou o conselho de trabalhadores. Embora nenhum de seus funcionários fosse sindicalizado, disse Roelandts, sindicatos procuraram os trabalhadores da Puyricard para filiá-los. "Subitamente nos vimos em uma discussão brutal e o tom do diálogo mudou bastante", recorda.
"Na França, o patrão tem a imagem de malfeitor e, se for exitoso, é porque explora os trabalhadores", comentou Plantier.
A ausência de um conselho liderado por um sindicato poderia evitar tensão em uma empresa na qual ele trabalhou estreitamente com os funcionários durante anos. Além disso, diz ele, é difícil administrar empresas separadas, em vez de ter todos os funcionários em uma única folha de pagamento.
"Os empregados pedem para contratar mais funcionários, então eu explico que não é possível", disse Plantier. "Eles aceitam, mas dizem que é vergonhoso."


Reportagem do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo