A Comissão da Verdade tem mexido com os nervos de militares, que se
horrorizam com a possibilidade de os torturadores terem, enfim, de pagar
pelo que fizeram.
As Forças Armadas Brasileiras estão acima deles.
Alguns, apresentam sempre os mesmos argumentos: a esquerda cometeu atrocidades. Todo mundo sabe disso.
A questão é de ovo e de galinha.
Quem começou tudo? Quem deu o pontapé inicial?
A resposta é cristalina: a direita. Foi ela que deu o golpe militar, em março de 1964, e começou a repressão.
Dado o golpe, todas as resistências armadas a ele tornaram-se
imediatamente legítimas. O golpe derrubou um presidente legítimo.
Implantou o arbítrio, o inaceitável.
A maioria esmagadora, conforme o clichê, dos que resistiram foi
punida com exílio, tortura, morte, prisão, cassação, etc. Alguns ícones
da resistência, como Carlos Marighela e Carlos Lamarca, foram
executados.
Qual torturador foi punido?
Quem descreve os crimes da esquerda jamais cita os crimes hediondos da ditadura. Por que será mesmo?
Qual crime de Estado, o mais hediondo dos crimes, foi julgado? Até hoje só os torturadores escaparam.
A repressão não esperou o AI-5, desfechado em 1968, para ceifar
cabeças. Jorge Ferreira, na biografia de Jango, relembra: “Entre 1964 e
1966, cálculos apontam para 5 mil detidos, 2 mil funcionários públicos
demitidos ou aposentados compulsoriamente; 386 pessoas perderam o
mandato parlamentar e/ou tiveram os direitos políticos suspensos por dez
anos, enquanto 421 oficiais militares foram punidos com a passagem
compulsória para a reserva – sem contar os suboficiais. Os maus tratos
físicos tornaram-se prática comum nos quarteis. Gregório Bezerra, por
exemplo, foi arrastado por um jipe pelas ruas do Recife e, depois,
surrado com uma barra de ferro. O almirante Aragão foi brutalmente
espancado”. Um começo.
O pau cantou. Thomas Skidmore resume o promissor começo da ditadura
em termos de violência: “Quais foram as dimensões globais da repressão?
Talvez em sua maior parte tenha ocorrido nos dez dias entre a deposição
de Goulart e a eleição de Castelo Branco, embora no Nordeste tenha
continuado até junho”. Entre dez mil e 50 mil presos, mortes, expurgos.
Na primeira leva de cassados, 441: três ex-presidentes da república,
seis governadores, 55 deputados federais e mais uma amostragem de
intelectuais, líderes sindicais e outros suspeitos de “subversão”. Mais
dados citados por Skidmore extraídos de várias obras, inclusive de
americanos como o famoso John Fuster Dulles: até 9 de outubro de 1964,
fase ainda de implantação de Castelo, 4.454 aposentadorias forçadas,
1408 demissões do serviço público, 2985 punidos, etc.
A “Operação Limpeza” passou o rastilho no Nordeste.
Não havia guerrilha instalada antes de 1964.
Não me venham com pretensas informações bombásticas.
Peso cada palavra que escrevo.
Segundo o historiador Moniz Bandeira, o mais completo estudioso do
governo João Goulart, “os grupos dos onze, ainda embrionários, não
dispunham de armas e não chegavam sequer a constituir uma organização
política e militar, com um programa de revolução social. As Ligas
Camponesas tampouco”. Moniz diz mais. Precisa ser lido.
Sim, havia guerrilha, de direita: “A direita, sim, formava
organizações paramilitares, dentro de uma estratégia de guerra civil, a
fim de fomentar arruaças, dissolver comícios, promover sabotagens e até
desencadear guerrilhas, caso as Forças Armadas se dispusessem a
sustentar a implantação de uma república sindicalista no Brasil,
proposito este que se atribuía a Goulart. Elementos vinculados ao
marechal Odylio Denys armavam os fazendeiros, no sul do país, e o mesmo o
almirante Silvio Heck fazia no Estado do Rio de Janeiro e em Minas
Gerais, distribuindo petrechos bélicos, conseguidos por intermédio do
governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e do jornalista Júlio de
Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo. Em vários pontos do
território nacional havia campos de treinamento para guerrilha,
montados, clandestinamente, pelos militares que conspiravam contra
Goulart desde 1961”. É mole? Mais?
Tem mais: “Em Alagoas comerciantes e latifundiários mobilizaram um exército particular de dez mil homens”.
Para ajudar, conta Moniz Bandeira, “cinco mil –norte-americanos,
‘fantasiados de civis’, desenvolviam, no Nordeste, intenso trabalho de
espionagem e desagregação do Brasil, para dividir o território”.
Por que tudo isso?
Por que, explica Bandeira, Jango “estendeu aos trabalhadores do campo
os benefícios da previdência social, assistência médica, auxílio-doença
e aposentadoria tanto por invalidez como por idade, assinou decreto
obrigando as empresas industriais, comerciais e agrícolas com mais de
cem empregados a proporcionar-lhes ensino elementar gratuito e enviou ao
Congresso mensagem que concedia ao funcionalismo público o 13º salário e
instituía a escala-móvel para o reajuste dos seus rendimentos”. Era
mesmo muito perigoso esse tal Jango.
Para piorar, combateu a especulação, regulamentou a remessa de lucros
para o estrangeiro e decidiu fazer a reforma agrária. Segundo Bandeira,
um diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Jorge Behring de
Mattos, reagiu assim: “Armai-vos uns aos outros, porque nós já estamos
armados”. O horror, rotulado de comunista, resumia-se às reformas de
base: “Reforma agrária, com emenda do artigo da Constituição que previa a
indenização prévia em dinheiro; reforma política, com extensão do
direito de voto aos analfabetos e praças de pré, segundo a doutrina de
que ‘os alistáveis devem ser elegíveis’; reforma universitária,
assegurando plena liberdade de ensino e abolindo a vitaliciedade de
cátedra; reforma da Constituição para delegação de poderes legislativos
ao presidente da República; consulta à vontade popular, através de
plebiscitos, para referendo das reformas de base”. Era realmente um
monstro comunista esse Jango!
O Brasil, fulmina Bandeira, numa população de 70 milhões de
habitantes, tinha apenas 3.350 milhões de proprietários de terra, “sendo
que 2,2%, i. e., 73.737 proprietários ocupavam 58% da área total de
hectares”.
Jango ousou dizer que o uso da propriedade deveria estar condicionado ao bem-estar social. Traidor!
Comunista!
Quando Jango foi derrubado, segundo pesquisa do IBOPE, tinha
aprovação de 76% da população, sendo que, oito meses antes do golpe,
apenas 19% dos consultados achavam o seu governo mau ou péssimo. Em
contrapartida, o Partido da Imprensa Golpista estava todo contra ele.
Por que se rebelavam os marinheiros?
Por razões intoleráveis. Por exemplo, o direito de casar. Jorge
Ferreira sintetiza: “A situação na Marinha de Guerra era explosiva,
sobretudo devido às péssimas condições profissionais dos marinheiros:
além dos salários miseráveis, regulamentos absurdos impediam os
subalternos de se casarem, impossibilitando-os de, legalmente,
constituir família”. Comunistas! Queriam constituir coletivos familiares
em vez de ficar com a pátria”. Outros, queriam o direito de ser
eleitos.
Em 1962, os Estados Unidos financiaram ilegalmente campanhas
eleitorais no Brasil. IPES e IBAD eram fachadas para a lavagem cerebral.
Havia a Bancada Americana.
E o comunismo? Onde estava? Comendo crianças? Moniz Bandeira
responde: “Sovietes havia no Rio de Janeiro ou em São Paulo? Não.
Propunha-se Goulart a abolir a propriedade privada dos meios de
produção? Não. O comunismo era a CGT, esse esforço de organização e
unificação do movimentação sindical, que as classes empresariais,
pretendendo comprimir os salários, queriam interceptar. Era a
sindicalização rural. Era a reforma agrária. Era a lei que limitava as
remessas de lucros”.
Chega de lorota.
Leio tudo.
Li mais tudo que pude sobre os anos 1960 no Brasil.
Recomendo “Como eles agiam”, do historiador Carlos Fico, sobre os bastidores da tortura no Brasil.
Na apresentação, o historiador Jacob Gorender informa como quem
conhece o riscado de cor e salteado: “Com os dados hoje disponíveis,
pode-se estimar que cerca de cinquenta mil pessoas tiveram, no período
ditatorial, a experência traumática da passagem pelos ‘porões’ e,
destas, não menos de vinte mil foram submetidas à violência da tortura.
Nos cerca de oitocentos processos por crimes contra a segurança
nacional, e encaminhados à Justiça Militar, figuraram onze mil
indiciados e oito mil acusados, resultando em alguns milhares de
condenações”.
Nossos militares agiram por reacionarismo puro, por cumplicidade com
os civis conservadores nacionais e por manipulação dos Estados Unidos, o
senhor do golpe.
Vale repetir que tudo começou, ainda em 1962, com esta mensagem
edificante de Lincoln Gordon: “Goulart está fomentando um perigoso
movimento de esquerda, estimulando o nacionalismo. Duas companhias
americanas, a ITT e a Amforp, foram recentemente desapropriadas pelo
governador Leonel Brizola. Tais ações representam uma ameaça aos
interesses econômicos dos Estados Unidos”.
Os Estados Unidos apoiaram o golpe desde Kennedy.
O IPÊS disseminou a campanha de mídia contra o governo associando-o
ao comunismo. O IBAD, também com dinheiro americano, financiou
candidaturas a rodo. Já próximo do golpe de 1964, um comunicado ao
Departamento de Estados americano entrega tudo: “Estamos adotando
medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em
curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento
anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos
católicos”. Assim surgem as Marchas da Família com Deus pela Liberdade.
Em 1979, o Brasil todo pediu a anistia. Mas o texto aprovado foi
imposto pela ditadura como uma autoanistia. É o que mostra, como já
contei aqui, o livro de Luciana Genro (radical não é ela, mas quem
justifica a ditadura), “O Brasil no banco dos réus”. Luciana cita parte
do discurso do deputado Airton Soares (MDB/SP) na sessão de aprovação da
Lei da Autoanistia: “Não podemos concordar com este projeto, e todo o
MDB se manifestou contra. Não vamos participar de farsa alguma montada
por um regime que até então torturava, e hoje usa outras maneiras para
se afirmar no poder”. Cita também a fala do deputado gaúcho Jorge Uequed
(MDB): “Aqui nesta Casa, o projeto vai ser aprovado como o governo
quer! Sim, porque o governo conhece as suas lideranças da ARENA, ele as
tem na mão, quase que totalmente”. Teotônio Vilella, presidente da
comissão especial encarregada de analisar o projeto a ser votado: “A
oposição procurou (…) meios de entendimento. Tudo nos foi negado, até a
humildade honrada de pedir para insistir”. Luciana resume: “Em uma
votação preliminar, o substitutivo do MDB foi derrotado, e a aprovação
do substitutivo do relator aconteceu sem votação nominal, apenas com os
votos dos líderes”. Qualquer outra possibilidade seria revertida pelos
senadores biônicos ou vetada pelo ditador de plantão.
Pode ser que algum guerrilheiro tenha cometido barbaridades e escapado sem punição.
Não é a regra.
A falta de punição é a regra para os torturadores.
Param de tapar o sol com a peneira, de tentar dar lições de História e
de vomitar ideologia fazendo de conta que é o contrário. Assumam-se
como xiitas, fundamentalistas, radicais, extremistas de direita.
Quanto aos requintes da tortura, pela qual ninguém foi punido, uma
sugestão: “Memórias de uma guerra suja”, depoimento do torturador
arrependido Cláudio Guerra.
Aviso aos navegantes: não sou nem nunca fui comunista.
Sou contra o marxismo corsário, expressão que me foi cedida por um amigo carioca, que defende o fim do direito autoral.
Do blog do Juremir Machado da Silva.
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