segunda-feira, 28 de maio de 2012

A guerrilha da direita em 1964

A Comissão da Verdade tem mexido com os nervos de militares, que se horrorizam com a possibilidade de os torturadores terem, enfim, de pagar pelo que fizeram.
As Forças Armadas Brasileiras estão acima deles.
Alguns, apresentam sempre os mesmos argumentos: a esquerda cometeu atrocidades. Todo mundo sabe disso.
A questão é de ovo e de galinha.
Quem começou tudo? Quem deu o pontapé inicial?
A resposta é cristalina: a direita. Foi ela que deu o golpe militar, em março de 1964, e começou a repressão.
Dado o golpe, todas as resistências armadas a ele tornaram-se imediatamente legítimas. O golpe derrubou um presidente legítimo. Implantou o arbítrio, o inaceitável.
A maioria esmagadora, conforme o clichê, dos que resistiram foi punida com exílio, tortura, morte, prisão, cassação, etc. Alguns ícones da resistência, como Carlos Marighela e Carlos Lamarca, foram executados.
Qual torturador foi punido?
Quem descreve os crimes da esquerda jamais cita os crimes hediondos da ditadura. Por que será mesmo?
Qual crime de Estado, o mais hediondo dos crimes, foi julgado? Até hoje só os torturadores escaparam.
A repressão não esperou o AI-5, desfechado em 1968, para ceifar cabeças. Jorge Ferreira, na biografia de Jango, relembra: “Entre 1964 e 1966, cálculos apontam para 5 mil detidos, 2 mil funcionários públicos demitidos ou aposentados compulsoriamente; 386 pessoas perderam o mandato parlamentar e/ou tiveram os direitos políticos suspensos por dez anos, enquanto 421 oficiais militares foram punidos com a passagem compulsória para a reserva – sem contar os suboficiais. Os maus tratos físicos tornaram-se prática comum nos quarteis. Gregório Bezerra, por exemplo, foi arrastado por um jipe pelas ruas do Recife e, depois, surrado com uma barra de ferro. O almirante Aragão foi brutalmente espancado”. Um começo.
O pau cantou. Thomas Skidmore resume o promissor começo da ditadura em termos de violência: “Quais foram as dimensões globais da repressão? Talvez em sua maior parte tenha ocorrido nos dez dias entre a deposição de Goulart e a eleição de Castelo Branco, embora no Nordeste tenha continuado até junho”. Entre dez mil e 50 mil presos, mortes, expurgos. Na primeira leva de cassados, 441: três ex-presidentes da república, seis governadores, 55 deputados federais e mais uma amostragem de intelectuais, líderes sindicais e outros suspeitos de “subversão”. Mais dados citados por Skidmore extraídos de várias obras, inclusive de americanos como o famoso John Fuster Dulles: até 9 de outubro de 1964, fase ainda de implantação de Castelo, 4.454 aposentadorias forçadas, 1408 demissões do serviço público, 2985 punidos, etc.
A “Operação Limpeza” passou o rastilho no Nordeste.
Não havia guerrilha instalada antes de 1964.
Não me venham com pretensas informações bombásticas.
Peso cada palavra que escrevo.
Segundo o historiador Moniz Bandeira, o mais completo estudioso do governo João Goulart, “os grupos dos onze, ainda embrionários, não dispunham de armas e não chegavam sequer a constituir uma organização política e militar, com um programa de revolução social. As Ligas Camponesas tampouco”. Moniz diz mais. Precisa ser lido.
Sim, havia guerrilha, de direita: “A direita, sim, formava organizações paramilitares, dentro de uma estratégia de guerra civil, a fim de fomentar arruaças, dissolver comícios, promover sabotagens e até desencadear guerrilhas, caso as Forças Armadas se dispusessem a sustentar a implantação de uma república sindicalista no Brasil, proposito este que se atribuía a Goulart. Elementos vinculados ao marechal Odylio Denys armavam os fazendeiros, no sul do país, e o mesmo o almirante Silvio Heck fazia no Estado do Rio de Janeiro e em Minas Gerais, distribuindo petrechos bélicos, conseguidos por intermédio do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e do jornalista Júlio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo. Em vários pontos do território nacional havia campos de treinamento para guerrilha, montados, clandestinamente, pelos militares que conspiravam contra Goulart desde 1961”. É mole? Mais?
Tem mais: “Em Alagoas comerciantes e latifundiários mobilizaram um exército particular de dez mil homens”.
Para ajudar, conta Moniz Bandeira, “cinco mil –norte-americanos, ‘fantasiados de civis’, desenvolviam, no Nordeste, intenso trabalho de espionagem e desagregação do Brasil, para dividir o território”.
Por que tudo isso?
Por que, explica Bandeira, Jango “estendeu aos trabalhadores do campo os benefícios da previdência social, assistência médica, auxílio-doença e aposentadoria tanto por invalidez como por idade, assinou decreto obrigando as empresas industriais, comerciais e agrícolas com mais de cem empregados a proporcionar-lhes ensino elementar gratuito e enviou ao Congresso mensagem que concedia ao funcionalismo público o 13º salário e instituía a escala-móvel para o reajuste dos seus rendimentos”. Era mesmo muito perigoso esse tal Jango.
Para piorar, combateu a especulação, regulamentou a remessa de lucros para o estrangeiro e decidiu fazer a reforma agrária. Segundo Bandeira, um diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Jorge Behring de Mattos, reagiu assim: “Armai-vos uns aos outros, porque nós já estamos armados”. O horror, rotulado de comunista, resumia-se às reformas de base: “Reforma agrária, com emenda do artigo da Constituição que previa a indenização prévia em dinheiro; reforma política, com extensão do direito de voto aos analfabetos e praças de pré, segundo a doutrina de que ‘os alistáveis devem ser elegíveis’; reforma universitária, assegurando plena liberdade de ensino e abolindo a vitaliciedade de cátedra; reforma da Constituição para delegação de poderes legislativos ao presidente da República; consulta à vontade popular, através de plebiscitos, para referendo das reformas de base”. Era realmente um monstro comunista esse Jango!
O Brasil, fulmina Bandeira, numa população de 70  milhões de habitantes, tinha apenas 3.350 milhões de proprietários de terra, “sendo que 2,2%, i. e., 73.737 proprietários ocupavam 58% da área total de hectares”.
Jango ousou dizer que o uso da propriedade deveria estar condicionado ao bem-estar social. Traidor!
Comunista!
Quando Jango foi derrubado, segundo pesquisa do IBOPE, tinha aprovação de 76% da população, sendo que, oito meses antes do golpe, apenas 19% dos consultados achavam o seu governo mau ou péssimo. Em contrapartida, o Partido da Imprensa Golpista estava todo contra ele.
Por que se rebelavam os marinheiros?
Por razões intoleráveis. Por exemplo, o direito de casar. Jorge Ferreira sintetiza: “A situação na Marinha de Guerra era explosiva, sobretudo devido às péssimas condições profissionais dos marinheiros: além dos salários miseráveis, regulamentos absurdos impediam os subalternos de se casarem, impossibilitando-os de, legalmente, constituir família”. Comunistas! Queriam constituir coletivos familiares em vez de ficar com a pátria”. Outros, queriam o direito de ser eleitos.
Em 1962, os Estados Unidos financiaram ilegalmente campanhas eleitorais no Brasil. IPES e IBAD eram fachadas para a lavagem cerebral. Havia a Bancada Americana.
E o comunismo? Onde estava? Comendo crianças? Moniz Bandeira responde: “Sovietes havia no Rio de Janeiro ou em São Paulo? Não. Propunha-se Goulart a abolir a propriedade privada dos meios de produção? Não. O comunismo era a CGT, esse esforço de organização e unificação do movimentação sindical, que as classes empresariais, pretendendo comprimir os salários, queriam interceptar. Era a sindicalização rural. Era a reforma agrária. Era a lei que limitava as remessas de lucros”.
Chega de lorota.
Leio tudo.
Li mais tudo que pude sobre os anos 1960 no Brasil.
Recomendo “Como eles agiam”, do historiador Carlos Fico, sobre os bastidores da tortura no Brasil.
Na apresentação, o historiador Jacob Gorender informa como quem conhece o riscado de cor e salteado: “Com os dados hoje disponíveis, pode-se estimar que cerca de cinquenta mil pessoas tiveram, no período ditatorial, a experência traumática da passagem pelos ‘porões’ e, destas, não menos de vinte mil foram submetidas à violência da tortura. Nos cerca de oitocentos processos por crimes contra a segurança nacional, e encaminhados à Justiça Militar, figuraram onze mil indiciados e oito mil acusados, resultando em alguns milhares de condenações”.
Nossos militares agiram por reacionarismo puro, por cumplicidade com os civis conservadores nacionais e por manipulação dos Estados Unidos, o senhor do golpe.
Vale repetir que tudo começou, ainda em 1962, com esta mensagem edificante de Lincoln Gordon: “Goulart está fomentando um perigoso movimento de esquerda, estimulando o nacionalismo. Duas companhias americanas, a ITT e a Amforp, foram recentemente desapropriadas pelo governador Leonel Brizola. Tais ações representam uma ameaça aos interesses econômicos dos Estados Unidos”.
Os Estados Unidos apoiaram o golpe desde Kennedy.
O IPÊS disseminou a campanha de mídia contra o governo associando-o ao comunismo. O IBAD, também com dinheiro americano, financiou candidaturas a rodo. Já próximo do golpe de 1964, um comunicado ao Departamento de Estados americano entrega tudo: “Estamos adotando medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos católicos”. Assim surgem as Marchas da Família com Deus pela Liberdade.
Em 1979, o Brasil todo pediu a anistia. Mas o texto aprovado foi imposto pela ditadura como uma autoanistia. É o que mostra, como já contei aqui, o livro de Luciana Genro (radical não é ela, mas quem justifica a ditadura), “O Brasil no banco dos réus”. Luciana cita parte do discurso do deputado Airton Soares (MDB/SP) na sessão de aprovação da Lei da Autoanistia: “Não podemos concordar com este projeto, e todo o MDB se manifestou contra. Não vamos participar de farsa alguma montada por um regime que até então torturava, e hoje usa outras maneiras para se afirmar no poder”. Cita também a fala do deputado gaúcho Jorge Uequed (MDB): “Aqui nesta Casa, o projeto vai ser aprovado como o governo quer! Sim, porque o governo conhece as suas lideranças da ARENA, ele as tem na mão, quase que totalmente”. Teotônio Vilella, presidente da comissão especial encarregada de analisar o projeto a ser votado: “A oposição procurou (…) meios de entendimento. Tudo nos foi negado, até a humildade honrada de pedir para insistir”. Luciana resume: “Em uma votação preliminar, o substitutivo do MDB foi derrotado, e a aprovação do substitutivo do relator aconteceu sem votação nominal, apenas com os votos dos líderes”. Qualquer outra possibilidade seria revertida pelos senadores biônicos ou vetada pelo ditador de plantão.
Pode ser que algum guerrilheiro tenha cometido barbaridades e escapado sem punição.
Não é a regra.
A falta de punição é a regra para os torturadores.
Param de tapar o sol com a peneira, de tentar dar lições de História e de vomitar ideologia fazendo de conta que é o contrário. Assumam-se como xiitas, fundamentalistas, radicais, extremistas de direita.
Quanto aos requintes da tortura, pela qual ninguém foi punido, uma sugestão: “Memórias de uma guerra suja”, depoimento do torturador arrependido Cláudio Guerra.
Aviso aos navegantes: não sou nem nunca fui comunista.
Sou contra o marxismo corsário, expressão que me foi cedida por um amigo carioca, que defende o fim do direito autoral.


Do blog do Juremir Machado da Silva.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário