domingo, 10 de setembro de 2023

Sinais exalados


Uma cena neobrasileira. À beira da piscina do condomínio, o pacato vizinho, membro da classe médica, comenta à boca pequena: "Vejam o que fizeram com o homem...é a máfia!" Todos se conhecem, mas o silêncio que se segue é constrangedor. Antes, aparentemente, concordariam, não mais. O "homem" é o ex-mandatário, a "máfia" abrange entidades republicanas como o Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal. No noticiário desfilam acusações gravíssimas, que a alma condominial, cognitivamente dissonante, suprime para metaforizar a República como Don Corleone.

Esse episódio corriqueiro, mas recorrente, é pretexto para observar a vida no seu acontecer específico e tentar trazer à luz aspectos originais do fenômeno da desorientação política, sem o automatismo das categorias normalmente usadas nas ciências históricas. A singularidade da vida pessoal comporta situações e manifestações irredutíveis às objetivações das estruturas sociais. Ignorância, ódio e interesses de classe são influentes fatores coletivos, porém é preciso voltar-se diretamente para a subjetividade enquanto vida histórica na recusa protofascista de enxergar a realidade.

Protofascismo não é exatamente nazifascismo instalado, e sim uma cesura social que penetra como estado de espírito no modo civilizatório. Na prática, uma síndrome análoga às afecções fronteiriças da personalidade que os psicanalistas conheceram como neurose de caráter e hoje se generaliza como "borderline". Um mal-estar ancorado em detalhes e pequenas causas. Sabe-se que, antes da Grande Guerra, os oficiais do exército inglês desprezavam Hitler, não porque fosse nazifascista, mas porque tinha sido cabo na vida militar e pintor de paredes na civil.

Raciocínio semelhante vale para o antilulismo figadal, aversão a um torneiro mecânico sem diploma superior. A confusão entre sindicalismo e revolucionarismo foi sempre má-fé interpretativa das elites. Igualmente, o argumento das pedaladas fiscais para o impeachment de Dilma, agora desmontado como razão de marmelo, foi fraseologia técnica para encobrir a urdidura parlamentar e a indignação senhorial pela PEC das Domésticas. Já o antipetismo entranhado na classe médica tem origem corporativista na vinda de profissionais cubanos.

Hoje como no passado, esquerdismo e comunismo são bichos-papões ideológicos de uma cidadania infantilizada. A subjetividade de largas frações de classes sociais orienta-se por preconceitos, firulas mesquinhas, não por fatores racionais. São sinais exalados de ruínas morais e ignorantismo chapado. Fanatismo não é, assim, insulto banal, mas justa caracterização da consciência protofascista. Não enxergar o real à frente, reduzindo o mundo a um clichê, é a sua lei suprema.


Texto de Muniz Sodré, na Folha de São Paulo

O enigma da esfinge baiana que nos devora


O Brasil descobriu, perplexo, a brutal política de segurança pública adotada pelos governos petistas baianos.

Os conservadores festejam a descoberta e retiram das costas o fardo da responsabilidade exclusiva com a necropolítica direcionada aos negros. Gargalham hasteando suas bandeiras punitivistas encharcadas de sangue e celebram seus companheiros de jornada genocida. Os progressistas enrubescem, ensaiam escapar da induvidosa cumplicidade e forjam explicações negacionistas ou excepcionalistas. Fracassam na tentativa de restaurar a mitologia de que seus governos expressam compromissos democráticos e de superação das iniquidades sociorraciais. 

O enfrentamento do enigma aponta para o perfil racial dos atingidos pela violência de Estado, bem como pela violência das facções criminosas que ocupam territórios desprezados pelo Estado. Também importa considerar a institucionalização da política de segurança pública como intervenção policial letal que se abate sobre comunidades negras marginalizadas, somada à incapacidade estatal de prover a proteção dessas comunidades diante das investidas violentas de grupos criminosos.

O modelo adotado amplifica o acesso e a utilização de armamento e normaliza a violência letal como critério de eficiência policial e criminal.

A Bahia negra governada há cinco gestões pelo Partido dos Trabalhadores expressa o funcionamento da segurança pública herdada do autoritarismo e aperfeiçoada pela transição democrática pós-ditadura civil-militar. Após desbancar o conservador carlismo, o PT baiano optou pela manutenção do modelo herdado e o aperfeiçoou nos seus piores vícios e perversões.

As escolhas políticas incluíram a preservação da genealogia e das práticas institucionais policiais; a adesão à falácia da guerra às drogas; a criação de novas unidades hiperespecializadas em confronto; a apologia ao populismo punitivista; a omissão diante das ilegalidades policiais denunciadas; o ataque aos movimentos defensores dos direitos humanos e do combate ao racismo; e a desqualificação das audiências de custódia, além da sabotagem à instalação das câmeras nos uniformes dos policiais.

Essas políticas materializaram a escalada da violência policial letal, capturada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que colocou a Bahia no pódio desse infame ranking. Em 2022, foram 1.464 pessoas mortas em intervenções policiais. Isto dá uma média de 122 mortos por mês, 28 por semana, 4 por dia, 1 a cada 6 horas. A pesquisa "Pele Alvo: a cor da violência policial", da Rede de Observatórios da Segurança, confirma o público destinatário: majoritariamente homens jovens e negros.

Enquanto não decifrarmos o enigma da esfinge baiana, seguiremos devorados pelo genocídio negro e pela permanente repactuação secular de privilégios entre os segmentos brancos, para além de cores ideológicas e siglas partidárias, unidos sob a bandeira manchada de sangue do "Brasil Tumbeiro".


Texto de Samuel Vida na Folha de São Paulo. Samuel Vida é Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre e professor da Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), é coordenador do Programa Direito e Relações Raciais.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Embaixada de Israel no Brasil declara que Israel não é estado de apartheid


"(...) a embaixada de Israel no Brasil diz, em nota, que o país não é um "Estado de 'apartheid', nem para seus cidadãos árabes, que estão inseridos em todos os campos da sociedade israelense, nem para os palestinos na Cisjordânia".

"No caso da Cisjordânia, por conta dos riscos para a segurança, precisamos agir para garantir a proteção dos cidadãos israelenses, o que em muitos casos afeta a vida dos palestinos que lá residem. O futuro da Cisjordânia é objeto de diálogo entre Israel e a Autoridade Palestina e sua posição legal é de 'território em disputa', a ser discutida bilateralmente", afirma ainda a nota."


Reprodução de parte da coluna de Mônica Bergamo na Folha de São Paulo

domingo, 3 de setembro de 2023

As PMs fazem o que querem


Autorizado pelo ministro Cristiano Zanin, do STF, o ex-comandante da Polícia Militar do Distrito Federal Fábio Augusto Vieira ficou em silêncio durante seu depoimento à CPI do 8 de Janeiro. Chefe da corporação na data dos ataques à praça dos Três Poderes, ele não conseguiu, contudo, esconder a cara de tacho.

Vieira —que está preso— é investigado pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e por infringir a lei orgânica e o regimento interno da PM. A Polícia Federal aponta que a PMDF se omitiu em relação aos ataques. Em mensagens de zap, oficiais em postos de comando espalharam desinformação sobre o sistema eleitoral e incitaram as invasões. Um grupo de policiais se escondeu no banheiro em meio à depredação do STF. Eis uma vergonha digna de se contar aos netinhos.

As investigações vão dizer até que ponto o governador Ibaneis Rocha e o ex-secretário de Segurança Pública Anderson Torres tinham conhecimento dos planos de seus subordinados. A sensação é de que hoje as PMs agem —no Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo e outros estados— com uma independência sem freios, um modelo próprio e brutal. A insubordinação não isenta de culpa os governadores. Estes quase sempre defendem e incentivam os policiais ou lhes passam a mão na cabeça.

O caso do Rio de Janeiro é exemplar. Um capitão da PM está sendo investigado por autorizar uma operação ilegal, com carro e drone particulares, na Cidade de Deus. O voluntarismo resultou na morte de um adolescente de 13 anos.

Um documento da Defensoria Pública do Rio indica que a PM vem tentando dificultar os registros das câmeras corporais, principalmente quando as ações acabam em mortes. As câmeras são desacopladas dos uniformes e as lentes, obstruídas. Imagens teriam sido manipuladas ou apagadas. Quem manda na polícia?


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo